- A Princesa dos Cervos -
O Bosque das Folhas Amarelas era um lugar agradável para passeios e caminhadas, especialmente das nobres senhoras que buscavam em suas árvores um refúgio da monotonia presente dentro das muralhas da cidade.
Sua formação dava-se ao fato da extrema aproximação da Floresta Amarela nas pradarias onde se localiza a capital, dessa forma, os cidadãos assumiram que a misteriosa floresta estivesse lhes convidando a conhecer suas desconhecidas profundezas. Muitos se recusaram no início, mas devido a beleza exorbitante das árvores, flores e riachos, ao menos uma visita tornou-se necessária. A tarde e as manhãs eram julgadas como o melhor horário para um agradável passeio sob o calor do sol que ainda se erguia no maravilhoso céu rosado. A trilha pelo gramado verdejante fornecia a vista de uma imensidão de árvores finas com folhas que dançavam pelo vento, muitas delas variavam de um claro amarelo para um profundo laranja. Algumas ramificações do riacho atravessavam o caminho a fim de manter a vida da fauna e da flora. Se a sorte estivesse ao lado dos visitantes, a caminhada poderia ser acompanhada pela aparição de alguns adoráveis animais da floresta como os espertos esquilos, as tímidas lebres, os curiosos texugos e as silenciosas raposas.
Os cidadãos em sua maioria detinham a sabedoria de obedecer o horário fornecido para a saída da cidade, pois as horas restantes eram preenchidas pela incessante chegada de viajantes e comerciantes. Dessa forma, há de se manter uma ordem não somente através da lei mas também pelo bom senso.
A manhã permitia que alguns raios solares adentrassem a fechada floresta, o que agradava os que estavam ali presentes. Nove cavalos permaneciam amarrados em troncos onde tentavam buscar algum punhado de grama para pastar. Os animais eram esbeltos com uma musculatura admirável, decerto receberam um excelente trato. Alguns metros longe dali, o som do choque entre metais tomava o ambiente. Uma área coberta de folhas e galhos fornecia o espaço adequado para a prática de exercícios de combate, e era isso que dez indivíduos faziam.
Sete jovens homens formavam um círculo, todos em posição de guarda observando os dois duelistas no centro. Os homens trajavam a comum armadura dos soldados de Asmabel, placas esbeltas com detalhes dourados sobre malha azulada, não usavam elmos, vendo que a ocasião não exigia tal. No centro do círculo, um rapaz de traje carmesim manuseva a espada contra seu adversário, um soldado de armadura asmabeliana. O rapaz mantinha-se na defensiva, segurava a espada com as duas mãos e esforçava-se para repelir os golpes que o adversário lhe direcionava. Ambos possuíam a mesma altura e porte físico. A julgar por suas feições, o soldado não parecia ter mais do que vinte anos. Seu rival possuía uma aparência muito diferente à sua, usava um nobre gibão carmesim com detalhes da cor bege. Não possuía peças de armadura em parte alguma de seu corpo.
O duelo hora alternava entre avanços do soldado e avanços do rapaz, ambos demonstravam um equilíbrio de habilidades, mesmo que seus movimentos não fossem muito ousados ou surpreendentes. O fim do confronto deu-se em um rápido ataque do soldado que investiu furiosamente em incessantes golpes, o rapaz demonstrou temor em sua defesa e acabou por tendo sua espada sendo arremessada para longe de sua mão. Tentou pegá-la, mas foi impedido. Ele foi derrotado.
— Ah, até que enfim! Eu não estava mais aguentando essa luta entre vocês, estava muito chata. — A princesa saiu de sua posição no círculo e começou a andar em direção à espada no chão.
O soldado vitorioso não demonstrou felicidade por seu desempenho. Ele dobrou o joelho direito e virou sua espada para baixo diante de seu rival.
— Peço desculpas pela minha exaltação no duelo, Vossa Alteza. Não foi minha intenção humilhá-lo.
O Príncipe Allanel o observou por um momento, recuperava o fôlego e seu rosto pingava gotas de suor.
— É por isso que eu nem me dou ao trabalho de treinar com os novatos. Eles sempre têm medo de lutar para valer contra nós — disse a princesa entregando a espada na mão do irmão.
— Mas a luta foi para valer — justificou o príncipe. — Quer dizer, deu para ver pelos movimentos dele e os meus que o embate foi de verdade.
— Ah, é claro que foi. Me diga, Carmel, foi antes de chegarmos aqui que o meu irmão te pediu para você pegar leve com ele?
O soldado mostrou-se desorientado. Alternava o olhar entre a princesa e o príncipe em sua frente na dúvida se deveria agir a favor dele ou não.
— Han... eu não...
— Nem precisa responder. Levanta daí, por gentileza? Detesto ver os outros ajoelhados na minha frente. Vamos alterar o esquema de combate desta vez, acho que está na hora de você enfrentar dois adversários de uma vez. Isso certamente ajudará a aprimorar seus movimentos.
O príncipe revirou os olhos analisando a ideia da irmã e julgou que estava na hora de finalmente ser mais ousado.
— Que tal você?
A princesa virou-se para ele.
— O que?
— Eu quero lutar contra você.
— Você está falando sério?
— Por que não estaria? Não quer me enfrentar?
Ela soltou um riso e o olhou nos olhos por alguns segundos, decerto a sugestão a havia pegado de surpresa.
— Como queira. Ponha-se em guarda.
A Princesa Fenuella retirou sua espada da bainha com notável rapidez, firmou suas pernas e apontou sua lâmina para o rival. Allanel fez o mesmo, mas com um perceptível temor em seus movimentos. Os soldados ao redor os observavam e cochichavam nos ouvidos um do outro. Assim os irmãos permaneceram, ambos aguardando quem ousaria dar a primeira investida.
Fenuella avançou e golpeou a espada do rapaz que por pouco não sofreu um corte. Ela deu continuidade ao duelo com diversas investidas e Allanel optava por desviar dos ataques ao invés de repelí-los. As folhas secas no solo dançavam pelas pisadas e os galhos se quebravam pelos rápidos movimentos dos combatentes. Quando Fenuella cessou os ataques, Allanel parou de fugir. Os dois trocaram olhares para decifrar o pensamento um do outro. Quando a princesa fez um gesto com sua espada, o príncipe entendeu que devia ser sua vez de atacar.
Allanel avançou com golpes mais lentos e a princesa defendeu-se facilmente como se estivesse lutando contra uma criança. O irmão mais novo esforçava-se com golpes em todas as direções mas ela os repelia e desviava com grande facilidade. Quando ambos mediram forças chocando suas lâminas em uma tentativa de derrubar o adversário, Fenuella aproveitou a extrema aproximação para dar um soco no estômago do irmão. Ele recuou seus passos e soltou sua espada para levar as mãos à barriga.
— Você trapaceou! — queixou-se o príncipe dobrando a coluna.
— É que você estava tão focado em me deter com a espada que se esqueceu de se proteger. E não foi trapaça se não estabelecemos nenhuma regra contra isso.
Mesmo após a justificativa, o príncipe não demonstrou contentamento com a atitude da irmã. Na verdade, Fenuella pôde perceber um resquício de ódio na face vermelha e suada do rapaz.
— Me desculpa. Não foi correto da minha parte te derrubar com um soco no estômago. — Ela estendeu a mão para ajudá-lo a se levantar. Allanel hesitou, mas preferiu abandonar a infantilidade.
Quando ela o levantou, ambos guardaram suas espadas na bainha de seu cinto.
— Quem de nós será o adversário agora, Alteza? — perguntou um dos jovens soldados.
— Acho que o treinamento de hoje já foi suficiente para um único dia. A não ser que meu irmão queira continuar apanhando para esses novatos. — Ela deu um ligeiro sorriso para o príncipe.
— Não, já chega por hoje. Quero voltar para o castelo e me limpar.
— Você não me parece muito sujo. Aliás, acho que você comete um tremendo erro em vir para o bosque com esse traje de nobre.
— Eu gosto de usar esta cor, ressalta o meu cabelo. — Allanel teve certeza de escutar algumas risadas abafadas dos soldados atrás de si.
Com o fim do treinamento daquela manhã, os irmãos e os soldados caminharam para pegar suas montarias na finalidade de deixar o bosque. Os cavalos castanhos alinharam-se e seguiram em cavalgada pela trilha em meio as árvores. Haviam apenas nove cavalos pois Fenuella era a única que não tomava os equinos como montaria. Não, a Princesa Fenuella detinha a lealdade de outro animal para montar, um cervo. Este não se comportava como os demais equinos pois não era um servo para o transporte da garota, mas sim um amigo leal.
A passagem das ferraduras dos cavalos ressoava pelo bosque e todos os animais escondiam-se ao sentir o tremor do solo. O cervo Amedune, nomeado pela própria princesa, corria na dianteira da trilha e Fenuella o guiava por uma rédea. Logo atrás o Príncipe Allanel cavalgava em seu corcel e os demais soldados os seguiam em linha reta. Quando todos saíram das profundezas do Bosque das Folhas Amarelas, viram-se na lateral de imensa muralha que rodeava a Cidade de Asmabel.
Após atravessarem o fortificado portão, os nobres irmãos se despediram informalmente dos jovens soldados e partiram em direção à sua moradia, o Castelo da Corte. O dia trazia uma comum alegria aos gentis moradores da cidade, os mais jovens corriam e brincavam pelas ruas enquanto os mais velhos exerciam suas funções diárias sempre mantendo a cortesia.
Quando as pessoas passaram a ouvir o som da marcha de cascos em meio ao seus diálogos, todos apressaram-se em direcionar seus cumprimentos para o casal de nobres adolescentes que desfilavam em esbeltas montarias.
A Princesa dos Cervos exibia uma beleza que não era acompanhada de vaidade. Uma bela garota de dezoito anos com traços delicados em seu rosto, seus lábios possuíam o dom de despertar o desejo dos rapazes que os viam de perto. Seu cabelo castanho ondulado era invejado por muitas, mas Fenuella não se importava com isso. Na verdade, tratamentos mais sofisticados não passavam de uma mera exigência de seu pai, o Rei Grival.
A princesa possuía um gosto particular pela cor azul de forma que seu longo gibão era inteiramente confeccionado de tecido azulado com detalhes dourados. Uma fileira de decorados botões prendia a abertura de seu traje e um cinto preto mantinha sua bainha. Usava calças escuras e botas de couro, estas exibiam sujeira de terra. A relação da princesa com o cervo já havia caído na graça da população, mesmo que alguns ainda considerassem o fato algo incomum e excêntrico. Por sua vez, Amedune era um cervo grande e poderia alcançar a altura de um cavalo adulto. Seu pelo alternava de um castanho claro para branco em algumas partes, ele usava uma sela de montaria e sua galhada causava certa admiração.
Os irmãos desfilavam pela cidade e recebiam acenos e cumprimentos dos moradores. No entanto, os olhos de Allanel foram atentos ao perceber que as pessoas à alguns metros a frente corriam para o lado direito da rua no objetivo de verem e cumprimentarem especialmente a princesa. Poucos eram os que permaneciam no lado esquerdo para saudar o jovem príncipe.
Allanel era três anos mais novo do que a irmã, embora fosse da mesma altura. O príncipe trajava um gibão carmesim com detalhes dourados, possuía um forte apreço por essa cor. Sua calça e suas botas eram pretas e um cinto mantinha sua espada, assim como a irmã. Ao invés de retribuir os cumprimentos lhe direcionados, Allanel ocupava-se em observar a exagerada admiração dos moradores com a bela princesa. Questionava-se se tudo isso dava-se ao fato de ela pertencer à realeza, ou talvez a peculiaridade de montar um animal selvagem ao invés de um cavalo, ou poderia ser as histórias contadas sobre os feitos da Princesa dos Cervos. Seja o que fosse, não conseguia omitir que isso o incomodava.
— Por que eles gostam tanto de você? — questionou o príncipe.
— Ah, talvez seja porque eu sou a única princesa que existe aqui.
Quando chegaram nas redondezas do castelo, ambos se desfizeram de suas montarias e seguiram para o interior dos vastos salões. Allanel retirou-se indo em direção aos seus aposentos e Fenuella dirigiu-se diretamente para as cozinhas do castelo. O local estava movimentado e as cozinheiras apressavam-se em preparar os alimentos das refeições diárias da família real. Quando a princesa surgiu na cozinha sem nenhum aviso prévio, as mulheres pararam seus afazeres e saudaram a nobre garota.
— Bom dia, Vossa Alteza — disseram elas em uníssono.
— Bom dia, garotas, como vai o trabalho hoje?
— Muito produtivo e adiantado — respondeu uma delas.
— Isso é ótimo! — Ela sorriu alegremente para todas. — Cerinela, eu queria perguntar se você viu o meu pai hoje?
— Sim, Alteza, o senhor seu pai deixou o castelo no início da manhã e foi para o Altar dos Ejions. Ele voltou faz pouco tempo. Parece que teve uma audiência com uns estranhos visitantes.
— É mesmo? — Ela pegou uma maçã numa caçarola e deu uma farta mordida. — E você sabe como eram esses estranhos? Ou sobre o que eles trataram com o meu pai?
Antes da cozinheira responder, a inesperada aparição da Rainha Eline fez com que ela se calasse.
— Não é adequado que uma princesa converse assuntos da corte com uma cozinheira — repreendeu a rainha. — Você deveria saber disso, Fenuella.
— Ah, é que eu já conheço a Cerinela há tanto tempo que eu confio em tudo o que ela me diz. Se ela me disser que o rei se tornou o maior coelho do mundo, eu vou acreditar. Se ela me disser que a rainha se tornou a serpente mais mentirosa do mundo, eu também vou acreditar. São laços de amizade, sabe?
Eline fitou os olhos da enteada e um silêncio pairou sob o ambiente. A cozinheira Cerinela assumiu que seria melhor afastar-se para não gerar intrigas. A expressão da rainha mudou de seriedade para uma tranquilidade acompanhada de um tímido sorriso, como se houvesse acabado de receber uma vitória.
— Depois que terminar suas aventuras, faça a gentileza de ir visitar o seu pai. Ele passou um incômodo estresse por ter cedido seu tempo em ouvir estúpidas propostas de guerra.
— Propostas de guerra? Quem foram os que vieram fazer isso?
— Um cavaleiro egocêntrico, um andor vagabundo e uma menina insolente. — A repulsa acompanhava suas palavras.
— Está bem, mais tarde eu irei vê-lo. — Fenuella tentou forçar um sorriso.
Não tendo mais nada a dizer, a rainha virou-se e deixou a cozinha em silêncio. Em mais um ato de seu desapreço pela madrasta, a princesa levou seus dois dedos à cabeça indicando chifres em direção à mulher, o que acabou por arrancar um riso de Cerinela.
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