- A Casa da Justiça -
A Casa da Justiça foi a terceira construção a ser erguida após a fundação da Cidade de Vordia nos auges do Tempo da Ascensão. Na época, o Rei Esderion, segundo monarca a assumir legitimamente o trono, julgou que seria necessário um lugar em especial dedicado somente aos julgamentos de atitudes imorais e prejudiciais entre os habitantes da recém construída cidade. Em uma época em que as leis da Sagrada Crença Alial ainda não estavam formalmente estabelecidas, os acusados tinham seus destinos sentenciados somente através da única vontade do rei. Dessa forma, um dia de mau humor era sinônimo de punições e lamentações daqueles que eram subjugados ao soberano.
O funcionamento da Casa da Justiça era essencial pois este se tornou um dos lugares mais importantes na Cidade de Vordia e essa afirmação era considerada incontestável entre o povo vordiano. Nos dias atuais, a avantajada construção detinha o dever de manter a ordem e preservação das leis estabelecidas na sociedade, deveres esses que eram executados através de julgamentos e assembleias. Apesar da soberania da monarquia, viu-se necessário a divisão dos poderes julgadores no tribunal, afinal a justiça jamais seria feita se tal dependesse somente do entendimento de um homem, por mais sábio e nobre que este fosse.
O interior do local era espaçoso, com uma grande área quadrangular no centro onde os acusados eram mantidos algemados em grilhões. Nos lados direito e esquerdo, estavam sentados uma grande quantidade de pessoas, esses eram cidadãos de origem nobre que eram convidados a assistirem os julgamentos a fim de incentivá-los a obterem conhecimento e interesse na área da jurisdição. Além da nobreza, também estavam presentes os parentes e conhecidos dos acusados pois esses eram convidados a presenciarem a sentença de seu familiar. No fundo do centro do local e diante da grande porta por onde todos entravam e saíam, havia uma estrutura de madeira que elevava três figuras; um defensor, um juiz e um andor.
Remior, o defensor do acusado, era um homem magro que transmitia uma aura orgulhosa, como se esbanjasse a certeza de que seu conhecimento lhe garantiria a vitória; permanecia sentado na cadeira da esquerda. Omiran, o Andor Conselheiro, exibia uma feição de desinteresse e por vezes transmitia a impressão de estar cochilando ao longo dos discursos. Seu dever como assistente no tribunal era garantir que a Crença Alial fosse respeitada e mantida em acordo com as decisões tomadas; ele estava sentado na cadeira da direita. Entre o defensor e o andor, elevava-se a cadeira mais alta da estrutura e sentado nela estava a maior autoridade não somente do tribunal mas também em todo o reino. Valandir assumia uma postura ereta em seu assento, com os braços posicionados rigorosamente sobre a mesa e os punhos fechados. Exibia sua coroa de prata e trajava sua clássica vestimenta de seda negra.
— Ele é um aproveitador! — esbravejou a mulher que acusava o homem no centro do tribunal.
— Senhora, ofensas e acusações superficiais não a beneficiarão neste julgamento. Mantenha uma postura civilizada ou sua acusação será desconsiderada.
A mulher de meia idade recuou sua exaltação diante da repreensão de Valandir. Por um momento ela sentiu-se como uma menina sendo educada pelo rigoroso pai.
— Peço desculpas, Vossa Majestade. — Ela curvou a cabeça.
— Reformule sua acusação, se desejar seguir adiante.
A mulher virou-se para o acusado novamente. A raiva e o desgosto estava evidente em sua face cansada. A julgar por suas roupas, ela não pertencia à classe nobre da cidade pois usava apenas um vestido simples de tecido cinzento. O acusado, por sua vez, parecia ter se lembrado de manter uma boa impressão na presença de tantas pessoas desconhecidas, ele usava um paletó escuro com uma calça em ótimo estado e botas lustrosas, uma típica vestimenta masculina entre os vordianos.
— Esse homem é o meu irmão — a mulher continuou. — , filho da minha mãe e do meu pai que já são falecidos. Eles morreram de uma enfermidade que... enfim. Antes de morrer, minha mãe passou o direito da casa dela para mim e meu marido, para que pudéssemos criar nossos filhos. Mas agora, somente agora, esse meu irmão resolve aparecer nas nossas vidas dizendo que tem o direito de ficar com a casa para ele, já que ele é o único filho homem e também o filho mais velho. Mentiras e mais mentiras!
— E quais seriam as mentiras que a senhora alega que o seu irmão tenha dito? — indagou Remior, o defensor. — Qualquer cidadão aqui presente pode afirmar que esse homem é alguns anos mais velho do que a senhora. Além do mais, não é preciso ter olhos para saber que ele é um homem e você é uma mulher, com todo o respeito.
Se a fala do defensor possuiu o objetivo de insultá-la, a mulher não mostrou sinais de revolta com o fato, afinal ela compreendia que um escândalo em tais circunstâncias poderia ser extremamente prejudicial para sua causa.
— Mas isso está errado — afirmou a acusadora. — Mesmo ele sendo homem e o filho mais velho, não pode tomar o direito que foi me dado! Minha mãe jurou para mim e para o meu marido que toda a sua propriedade passaria a ser somente nossa e de mais ninguém!
— O que nos garante que isso de fato aconteceu? Por acaso a senhora possui algum pergaminho com o juramento de sua falecida mãe? Algo que prove que está falando a verdade?
A mulher engoliu suas palavras.
— Não... não tenho nenhuma prova aqui agora.
— Vossa Majestade, nobres senhores, a própria acusadora afirma que não possui nenhuma prova que garante a veracidade de sua palavra. Muitos são os casos de mulheres que tentam negar o direito dado àqueles que o merecem para que tenham benefícios próprios. O que nos garante que essa senhora não seja mais uma dessas enganadoras?
— Não! Eu não estou tentando enganar ninguém! Ele não tem o direito de tomar o que é meu!
— Diga-nos — iniciou Valandir. —, a senhora possui o conhecimento das leis de herança familiar estabelecidas em nossa sociedade?
— É claro que eu sei quais são as leis, Majestade.
— E ainda assim mantém sua palavra e a sua causa?
— Mantenho, sim. Eu estou dizendo a verdade.
— Há uma maneira de saber se realmente está dizendo a verdade. A senhora por acaso se incomodaria se o Andor Conselheiro visse as lembranças em sua mente?
A mulher olhou para o lado direito da estrutura onde Omiran permanecia sentado com seu bastão preto apoiado no ombro.
— Não... não me incomodo. Não tenho nada a esconder.
— Omiran — ordenou o rei.
O velho andor se ajeitou na cadeira e olhou fixamente nos olhos da mulher. Esta estava receosa, com a testa transpirando e as mãos agitadas. Um momento de silêncio se apoderou do tribunal, todos os nobres e parentes presentes permaneciam mudos e apreensivos sobre o resultado do julgamento.
— A acusadora diz a verdade, Majestade — concluiu o andor.
— Mas isso ainda não a garante o direito de defraudar a herança do irmão — afirmou o defensor. — Ele é o filho homem e é mais velho, todos podem comprovar isso.
— Omiran — continuou Valandir. — Para que não haja dúvidas à respeito, cite as exatas palavras que estão escritas no livro sagrado que detém as leis da Crença Alial.
— Sim, Majestade. O livro sagrado afirma que o primogênito, ou seja, o filho mais velho, tem total preferência em tomar posse de heranças materiais que seus antecessores deixarem após seu falecimento, sendo esse filho homem ou mulher.
— Não restam mais dúvidas — adiantou-se Remior. — O acusado, sendo o filho mais velho, tem o direito de reclamar a herança dos falecidos pais.
— Não! Isso não está certo! Ele não merece! — a mulher alegou em desespero.
— Ora, não cabe à senhora decidir se ele merece ou não. O caso está encerrado.
— Omiran — Valandir o chamou novamente. — É de meu conhecimento que a Sagrada Crença Alial também estabelece termos sobre bens e propriedades. Cite quais termos são esses.
— As escrituras afirmam que todo cidadão, seja pertencente à nobreza ou não, detém o direito de condicionar termos sobre os seus próprios bens e propriedades enquanto estiver vivo e são.
— Acusado, aproxime-se. — A voz de Valandir saiu imponente e foi ouvida claramente por todos no local. O homem que até então era proibido de falar ou interromper o julgamento, assumiu que estava prestes a receber o beneficiamento pelo resultado do caso. — Responda-me, qual ofício ou trabalho você exerce?
A pergunta foi inesperada e causou estranhamento em todos ali presentes. O homem não entendeu ao certo o objetivo por trás do questionamento e temeu que sua sentença fosse prejudicada pela resposta que ele deveria dar.
— Eu... sou proprietário de um estábulo, Majestade.
— Acusadora, eu lhe dirijo a mesma pergunta.
A mulher viu-se desorientada, temeu que sua resposta influenciasse na sentença que seria dada. Pensou em mentir, mas lembrou-se que estava sendo observada pelo Andor Conselheiro que certamente estava analisando não só sua postura mas também sua mente.
— Eu sou uma camareira, Majestade. Trabalho para um dos senhores nobres que estão aqui no tribunal.
O som de baixas risadas seguidas de pigarros espalhou-se pelo local. Alguns dos espectadores trocaram palavras no ouvido um do outro na troca de deduções sobre o que estava prestes a ser enfim decidido.
— As escrituras que determinam nossas leis afirmam que o proprietário dos bens detém todos os direitos sobre suas posses. O acusado possui a preferência para reclamar a herança, devido sua condição de primogenitura. No entanto, antes de morrer, a sua antecessora decidiu que seria a filha mais velha quem receberia seus bens, afinal ela detinha todo o poder de escolha sobre o que estava em sua posse. Estábulos são locais cuja importância é essencial para qualquer cidade, ainda mais uma grandiosa como essa em que vivemos. Logo, há de se julgar que o ganho monetário desses locais é consideravelmente alto. Creio que também não seria inadequado o uso da moralidade neste caso.
Todos os olhares foram ao encontro do rei na elevada cadeira. Remior virou seu corpo por completo após ouvir o pronunciamento do monarca, a incredulidade estava estampada em sua face. Acusado e acusadora trocaram olhares de desafio, ambos com a ansiedade de receber a palavra final que decidiria seus destinos.
— Em nome da justiça e pelas leis da Sagrada Crença Alial, eu Valandir, Rei do Reino de Vordia, Comandante Supremo das Forças Vordianas e Décimo Oitavo Monarca, decido que a acusadora receberá o total direito de posse da herança que lhe foi prometida por seus antecessores. O acusado permanecerá com seus próprios bens e está isento de sofrer punições por este caso. Esse é o encerramento deste julgamento.
Os cochichos e sussurros tomaram conta do lugar. Todos trocavam opiniões sobre o resultado do caso, alguns demonstravam concordância enquanto outros permaneciam com dúvidas sobre a suposta justiça pregada. Por outro lado, a mulher viu-se prestes a cair em lágrimas pela felicidade de enfim ter conseguido aquilo que lutou para manter, uma casa para sua família.
— Majestade! — Remior o chamou. — Apesar do caso ter sido declarado encerrado, eu deixo claro aqui a minha insatisfação com a decisão tomada.
— Eu lhe darei um conselho, defensor Remior. Ao invés de revoltar-se com as decisões tomadas por aqueles acima de você, preocupe-se com o pagamento que você deixará de receber pela sua fracassada defesa do acusado.
Valandir não se deu ao trabalho de olhar para o homem ao dizer suas palavras. Este, por sua vez, piscava os olhos repentinamente em busca de um raciocínio que viesse confrontar a fala do rei.
— Isso... isso que foi feito aqui não foi justiça. Sua Majestade julgou o caso por suas próprias convicções e entendimento. O que foi decidido não é a lei!
— Nesse reino, a minha vontade é a lei.
Após os segundos de silêncio estabelecido entre os dois, Valandir levantou-se de sua elevada cadeira e desceu os degraus da estrutura de madeira. Passou por Omiran e logo gesticulou com uma mão para que dois guardas viessem em seu encontro na intenção de escoltá-lo para fora. À cada passo que dava, uma trilha de silêncio se estabelecia entre os presentes que calavam-se diante da aproximação de seu rei. Assim, em passos largos e audíveis, o monarca deixou a Casa da Justiça.
Omiran apanhou seu bastão e apoiou-se no mesmo para levantar-se de sua aconchegante cadeira. No entanto, quando estava prestes a sair pela portinhola de madeira, algo invadiu sua mente. O velho andor fechou os olhos firmemente enquanto uma avalanche de informações perturbava sua cabeça. Sua mão enrugada tremeu no esforço de manter-se de pé apoiado em seu bastão. Quando finalmente viu-se liberto do inesperado fenômeno, a consciência subitamente retornou e com ela veio a dúvida sobre qual conduta deveria assumir nesse momento. Julgou que o mais correto seria correr para alertar o rei sobre a informação que acabara de lhe chegar. E assim o fez.
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