Predador
Meu espírito se consumia em fogo e sombras, ele pensou
Ela tinha longos cabelos prateados que cintilavam ao luar e sua voz murmurava no vento. Havia imensa compaixão em seus olhos quando o via sozinho no alto do rochedo. De todos os mistérios que conhecera em sua longa existência, o andarilho noturno talvez fosse o mais intrigante.
Briseida conhecia bem os limites de sua prisão sagrada. Isolados do mundo em uma existência semimaterial, eles podiam ver as vidas dos homens irem e virem além da floresta, mas esses, por sua vez, não podiam alcançá-los dentro da névoa.
Entre aqueles que tentaram, muitos perderam suas vidas entre as árvores, incapazes de encontrarem a saída. Dos poucos que foram capazes de vê-los, a maioria perdeu a sanidade, aos poucos, enredados nas tramas milenares que os amarravam ali. O que era pior? Morrer sozinho em um reino de fantasmas ou retornar com a mente dilacerada? Ela não sabia. No entanto, ele não enlouquecera.
Recostada em um tronco de árvore, observava-o. Quantos anos faz? Perguntou-se. O tempo corria diferente dentro e fora do véu de bruma e, às vezes, só conseguia contá-lo nas mudanças que o corpo dele exibia.
Briseida o conhecia havia tempo suficiente para considerar que humano era um termo relativo se usado para ele, que, nascido de um ventre de mulher mortal, ao crescer exibia cada vez menos do verdadeiro sangue humano. Atormentado, feroz e obscuro.
Ela sentia que os únicos momentos em que o andarilho encontrava um pouco de paz era quando se deixava vagar pela praia que ele chamava de Praia das almas penadas. Uma das muitas formas de provocar Vince.
À noite, depois de esgotar as forças do corpo, ele subia para o alto do rochedo, de onde podia ver os espíritos se movimentando entre as árvores: sombras etéreas, cheias de uma bondade e compaixão que, às vezes, beiravam a crueldade. Os primeiros a conhecer a sua ferocidade e os primeiros a testar seus limites. Eram, provavelmente, os únicos que poderiam ser considerados algo próximo a amigos.
Briseida temia o que poderiam estar soltando no mundo humano: uma fera perfeitamente dissimulada em modos requintados, roupas elegantes e uma mente afiada.
Sentia-se tola e emotiva, pois já não conseguia deixar de ter afeto por ele, nem de nutrir esperança de que algum dia pudesse vencer as trevas da própria alma e ascender como algo melhor. Perguntava-se se o via como o filho que não tivera em vida. A ideia certamente repugnaria Vince, mas desconfiava que Christopher se sentisse do mesmo modo que ela.
O velho mentor estava sempre com os olhos nele. Infinitamente paciente.
Briseida já tinha reparado que o andarilho gostava de lâminas. Armas de fogo eram comodidades do mundo moderno, mas lâminas antigas, moldadas pelo espírito, eram perfeitamente silenciosas, indetectáveis. Exigiam perícia, maestria e contato físico. Ele gostava do peso da espada, e Christopher era um bom professor: dera a ele o gosto pela literatura e pelas ciências e era um adversário melhor ainda, quase incansável sob a luz da lua.
Mas era Vince quem o divertia. A repulsa do espírito flamejante por ele temperava o combate forçado, os limites do corpo e da própria humanidade a qual se agarrava.
Briseida era diferente: sabia que poderia ser feroz, mas nunca o presenteara com um combate real. Ele não sabia quais eram suas verdadeiras armas, embora o testasse com as adagas gêmeas que trazia na cintura. Ela preferia passar o tempo cultivando a floresta, o jardim. Dentro da névoa, cada flor, cada árvore, cada nascente conhecia o seu toque sutil e, por vezes, era possível ouvi-la cantando ao vento.
Soube que fora uma curandeira no passado, quando era feita de carne e sangue. Talvez sentisse falta e, por isso, dedicava ao cultivo de ervas medicinais e ensinou a ele o nome e uso de tantas quando ele se permitiu aprender. Ensinou modos de manipulá-las que a medicina humana sequer poderia conceber.
Para o andarilho, havia certo prazer em ser quem era, apesar de amaldiçoado. Especialmente quando seus olhos viam através da escuridão com a mesma clareza que sob o sol, seus ouvidos podiam captar as menores sutilezas da voz humana: medo, alegria, mentira, orgulho, vaidade, paixão, desejo. Nada lhe escapava aos sentidos, como se todas as pessoas fossem livros abertos.
Não havia mistério fora daquele lugar e, por isso, seus pés sempre o traziam de volta.
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