Melissa
A carne é cinza, a alma é chama
Victor Hugo
Melissa
A carne é cinza, a alma é chama
Victor Hugo
Gabriel se viu obrigado a vestir calças de linho, sapatos sociais, camisa branca e gravata. Sentia-se ridículo. No bolso direito da camisa estava o brasão da escola: um escudo medieval bordado de branco perolado com uma cruz vermelho-escura e, ao centro e abaixo, com letras bem desenhadas, o nome da escola.
— Existe mesmo algum lugar no mundo em que as pessoas se vestem assim pra estudar? A gente tá parecendo personagens de anime ou de algum filme da sessão da tarde.
— Você tá reclamando por muito pouco — respondeu Samantha descendo as escadas. Usava uma saia pregueada cinza na altura dos joelhos, sapatos de salto baixo e uma camisa branca com o mesmo brasão. — Queria ver você vestir isso.
— É mesmo, você tá ridícula — zombou ele.
— Pelo menos eu não sou a única. Todas as garotas são obrigadas a vestir essa coisa horrorosa. Qual é o problema de usar jeans?
— Pai, em todos os filmes de terror que acontecem em escolas, os estudantes se vestem assim. — Gabriel tentava afrouxar a gravata enquanto falava. — Pensa bem, podemos ser as próximas vítimas de algum psicopata.
— A vida não é um filme ruim de terror — respondeu Eduardo.
— Ah, por favor. Vocês dois ficaram muito bem. — Regina sorria orgulhosamente. — Merece até uma foto!
— Ah não! — O protesto foi uníssono.
Samantha revirou os olhos e torceu o nariz. Eduardo pegou a chave da velha caminhonete, preferia esperar mais um pouco, mas o haras ainda exigia muito trabalho e, por isso, entregou ao filho.
— Lembra do que conversamos?
— É uma permissão provisória. Só de casa pra escola e da escola pra casa — repetiu o garoto mecanicamente.
— Qualquer deslize e... privilégio suspenso.
— Sim, senhor — respondeu ele, e Eduardo olhou para a filha.
— Não deixa ele ficar enrolando depois da aula.
Ela fez que sim com a cabeça.
A única coisa de que Gabriel estava gostando era poder ir dirigindo para a escola. Alguma coisa boa essa cidade tem que oferecer, pensou enquanto se acomodava no banco do motorista. Samantha, por sua vez, logo que entrou, colocou o cinto.
O caminho foi bastante tranquilo. Ele estacionou com alguma dificuldade e logo cada um foi procurar sua sala. A escola, cheia de alunos, parecia maior que vista do lado de fora. Eram muitos os adolescentes que vinham de carro, bem como os que desciam dos prédios alojamentos. Os universitários se destacavam na multidão, caminhando para os prédios do nível superior, pois não usavam uniformes.
Havia painéis por toda a parte com as listagens dos alunos de cada classe e setas indicando as direções. Samantha logo percebeu que a turma 1º B, como todas as outras, não tinha aula em apenas uma sala, mas se deslocava pelo prédio de acordo com a disciplina.
— Aluna nova? — Ouviu uma voz ao seu lado.
— Sim — respondeu Samantha timidamente.
A garota que perguntava era um pouco mais alta e tinha longos cabelos lisos e negros que ultrapassavam a altura da cintura. Rosto redondo com traços que expressavam uma rica diversidade étnica que ia desde a multiplicidade de povos do oriente às tribos indígenas. A origem diversa da família da garota era de conhecimento geral e um motivo de orgulho do avô, que residia no andar de cima de um restaurante, cuja arquitetura homenageava o passado plural da família, lembrando muito um templo xintoísta, mas com traços da arquitetura budista e elementos do taoísmo, sem esquecer da sabedoria dos povos nativos que viveram naquela terra antes da chegada do homem branco.
— Qual é sua turma?
— 1º B.
A garota sorriu de modo que todo o rosto se iluminou revelando uma beleza única. Os cabelos podiam muito bem figurar a primeira frase que descrevia Iracema, negros como a asa da graúna, emoldurando olhos imensos e misteriosos com cílios longos. As pálpebras rasas como de diversos povos asiáticos e a pele com traços da linda cor dos Guarani.
— Seremos colegas. Meu nome é Melissa.
— Sou Samantha.
A garota puxou Samantha pelo braço.
— Já saquei a sua, você é meio tímida, né? Pode vir comigo. Não vou deixar você se perder ou alguém te tratar mal.
Samantha sentia que tinha acabado de ser adotada como um cãozinho perdido.
— Como veio parar aqui?
— Compramos o haras Estrela d'Alva.
Melissa parou imediatamente. Seus grandes olhos cinzas encararam a garota de cima a baixo como se esperasse encontrar algo diferente. Por um momento, Samantha achou que tivesse uma cauda de sereia ou alguma outra coisa que justificasse aquele estranho e constrangedor instante.
— Então é mesmo verdade — disse ela por fim. — Conseguiram empurrar a fazenda fantasma em uma família inocente.
— Não é uma fazenda fantasma — Samantha se defendeu. — É um haras.
— Que seja. — Melissa deu os ombros. — Metade da cidade tem pavor de lá, mas convenhamos — ela abaixou a voz —, muita gente tem curiosidade também.
Samantha ainda observava a garota sem ter certeza se queria continuar aquela conversa.
— Desculpa se eu fui grosseira. — Ela parecia sincera. — Quando os garotos queriam infernizar algum calouro, o obrigavam a invadir a tal casa. Chamavam de teste de coragem. Pensa pelo lado positivo, você será considerada a garota mais corajosa dessa escola.
— Não sei se quero tanta atenção — suspirou Samantha.
— Tem vinte anos ou mais que os donos tentam vender aquela propriedade, mas todo mundo nessa cidade tem medo daquele lugar por causa da floresta e do nevoeiro. Todo mundo conhece pelo menos uma história assustadora daquele lugar. E alguns dizem que a casa costuma enlouquecer os moradores.
— A casa é bem legal — ela pensou um pouco e concluiu —, mas é meio decepcionante, já que desde que mudamos não vimos nenhum fantasma, mula sem cabeça ou morcegos vampiros.
— Gosto do seu senso de humor. — Melissa sorriu. — Ah, mudando de assunto, não é muito bom sentar nas fileiras da frente. Só pra ficar claro: isso aqui parece uma escola, mas é uma selva. Toda sala tem uma "estrela" ou mais que se vangloria das notas e, se for um particular, nem sempre joga limpo. Ou seja, se você senta na frente e o professor gosta um pouco de você, vão fazer da sua vida um inferno.
— Já passou por isso?
— Eu não — respondeu ela com um tom de arrogância. — Quem tem juízo sabe que é bom ter medo de mim.
Melissa não tinha cara de ser do tipo encrenqueira. As aparências enganam, Samantha pensou.
— Difícil acreditar que alguém tenha medo de você.
— Aqui um bolsista, se não quiser virar escravo de um particular, deve ter garras afiadas. — Ela deu de ombros.
— E como sabe que não sou uma aluna particular?
— Não sei, mas você não me parece perigosa, malvada ou insuportavelmente arrogante.
Por um instante, pareceu haver fogo sob a superfície cinza dos olhos dela.
— Precisa saber, eu nunca comecei uma briga e nunca bati em alguém que não merecesse. — Melissa se viu obrigada a se explicar. — Posso dizer que é culpa da minha criação. Quero dizer, vovô é budista e curte toda aquela coisa Zen, mas me ensinou que não se pode fechar os olhos para o sofrimento alheio. Agora diz que aprendi bem demais. Diz que se fosse um século atrás eu teria liderado as aldeias dos nossos antepassados na revolta contra os colonizadores. — Ela fez uma pausa. — Dá pra acreditar que meu tatataravô se apaixonou por uma Guarani? O mais incrível é que no lugar de fazer como os outros estrangeiros, ele não tentou roubar ela da tribo, ele ficou na aldeia aprendendo os costumes do povo até ser aceito.
Samantha estava encantada com a explosão de sinceridade. Melissa falava tudo que vinha a cabeça, mas não tinha uma única gota de presunção em suas palavras.
A conversa foi interrompida quando o sinal ressoou no colégio.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro