Calla
Queimaria do mundo se poderia ser rainha das cinzas
Calla estava recostada na cadeira. Lá fora, o barulho dos jovens indo e vindo pelos corredores era um burburinho distante. Ela os ouvia com desprezo. Que criaturas barulhentas e insuportáveis eram os jovens! Por que as pessoas insistiam em se prender em casamentos falidos, perpetuá-los com crianças e dar o nome disso de felicidade? Que felicidade havia em abdicar a própria paz em prol de seres tão ingratos?
A porta do escritório foi aberta. O novo assistente era um universitário de vinte e poucos anos, óculos de massa, cabelos escuros e pele clara. Esguio, mas ainda faltava tomar forma de homem. Ela não se deu ao trabalho de olhar para ele por mais de um instante.
— Senhora... senhorita.... os...
— Diz logo!
— Padre Tomaz quer vê-la. — Ele conseguiu dizer.
— O que quer comigo?
— O conselho. — O olhar dela se intensificou sobre o rapaz, que deu um passo em falso. — O conselho deseja falar sobre o haras.
Claro que o conselho ia querer falar sobre o haras, ela pensou com um brilho diferente no olhar. Velhos ignorantes e supersticiosos.
Calla fez sinal para que o rapaz saísse. Olhou uma última vez para o espelho: os cabelos presos em um coque perfeitamente em ordem, terno branco e sapatos de salto.
— Uma mulher vai à guerra assim — disse para si.
Havia um único motivo para desejar utilizar o haras nas atividades laborais: confrontar os padres.
O conselho se reunia na igreja, dentro dos terrenos da escola, em uma sala de reuniões amplas. O cardeal Aurélio presidia os Dominicanos; o irmão Pedro, os Franciscanos, e a velha irmã Cristabel representava as irmãs Clarissas. Cada grupo contava com mais dois representantes com direito a voto e veto. Quando Calla entrou, havia apenas um estranho: um padre de barba avermelhada já grisalha em vários pontos, batina surrada e expressão séria. Ela se sentou à mesa e fizeram a oração inicial, que ela ouviu com impaciência.
— Temos a resposta do proprietário? — perguntou o cardeal.
— Estamos um pouco fora do cronograma; mas sim, Vossa Eminência — respondeu ela.
— Que tipo de homem parece ser esse senhor Eduardo? — perguntou Pedro.
— Me parece um homem de família. Tem dois filhos na nossa escola: um garoto rebelde, que foi o motivo de mudar para longe da cidade grande, e uma garota. Não é um homem inclinado a superstições e receberá uma visita dos nossos observadores. Conforme pede o contrato, o haras estará aberto para vistorias técnicas.
Calla sabia que aqueles homens não pensavam em vistorias técnicas.
— Então você levará o padre Bernardo até lá — disse um deles, e ela reconheceu o nome.
Fazia alguns anos que ele aparecia em documentos, em especial nas solicitações negadas, mas nunca o tinha visto pessoalmente, uma vez que Bernardo raramente se envolvia nas questões fora da universidade. O homem de barba deu um meio sorriso que em nada combinava com a dureza de sua expressão.
— Quando?
— Agora — respondeu ele ficando de pé.
Era alto e corpulento. Devia ter quase dois metros de altura, braços fortes para um padre e uma ampla tatuagem que abarcava toda a extensão da mão direita, formando uma cruz templária.
— Senhores, as aulas iniciaram hoje, não posso deixar as dependências da...
— A escola sobreviverá — retrucou ele com autoridade, e os membros do conselho concordaram.
Em menos de meia hora, ela estava dirigindo para o haras, com aquele estranho e silencioso homem no banco de passageiro. Já visualizavam a entrada da propriedade quando ele finalmente falou:
— A igreja não desaprova sua escolha. — A voz dele não tinha o menor traço de gentileza. — Alguma vez a senhora se perguntou por que uma presença tão grande da igreja em uma cidade tão insignificante?
Ela fez que não com a cabeça.
— Porque realmente existe o mal aqui.
Calla não conseguiu conter o riso.
— Normalmente o mal se expressa em escolhas ruins — prosseguiu Bernardo.
— As pessoas são responsáveis pela maior parte dos seus sofrimentos — retrucou ela.
— Não nego. — O padre sorriu. — Mas algumas vezes os males no coração das pessoas acordam algo pior e mais antigo. Às vezes, as pessoas esbarram com coisas e lugares que não deviam ser pisados por humanos, o mal que surge dessas raras ocasiões é escuridão. Escuridão que consome a alma e ofusca a percepção do certo e errado.
— Não sei aonde o senhor quer chegar.
— A senhorita convive com os irmãos da minha fé tempo suficiente pra saber um pouco mais que as pessoas comuns. Há um grande mal enterrado no coração dessa cidade, muito possivelmente atrás da maldita cortina de névoa, e a igreja precisa se certificar de que esse mal continue longe das pessoas. Mas não faremos isso mantendo a propriedade vazia, porque ela sempre encontra um modo de atrair pessoas. A experiência nos mostra que, o que quer que esteja atrás da névoa, fica mais controlável quando há pessoas morando na casa da colina. Mas nunca pudemos controlar quem mora na casa, ela escolhe quem vai acolher e quem vai expulsar.
— Quem vai enlouquecer — completou ela com deboche.
— Há muito tempo, quando a propriedade ainda era nossa, ela não nos escolheu. Naquela época, muitos dos nossos enlouqueceram, sumiram ou se suicidaram. Por isso, vamos continuar observando à distância, até encontrar a raiz do mal. — Ele ignorou seu tom.
— Estou surpresa que tenha sido tão honesto quanto às intenções do conselho. Mas se pensam assim, por que concordaram? Por que permitir que eu leve alunos para lá?
— Vejo que não acredita em uma palavra do que eu digo.
— Definitivamente não, mas estou curiosa.
— O fato de a casa ter aceitado moradores depois de décadas — admitiu ele sem rodeios. — Esses moradores não pertencem à nossa paróquia, de modo que não podemos simplesmente entrar e sair da propriedade. Os estudantes são uma desculpa para termos acesso.
— Se pensa que a névoa é perigosa, me parece contraditório que use alunos dessa forma.
— A propriedade não é perigosa durante o dia, no horário das atividades. É a noite que a névoa desce como um véu cobrindo cada palmo dessa terra.
— O senhor já viu?
O padre fez que sim. Ela parou o carro. Tinha avisado Eduardo por telefone. Ele e a esposa aguardavam o visitante, que fez questão de ver toda a propriedade e a casa principal.
Calla observava em silêncio enquanto o homem fazia perguntas sobre a família, seus hábitos e as noites na casa. Por fim, ele pediu para irem ao limite da propriedade, além do bosque, onde começava uma fina névoa de cor leitosa. A fonte de todas as estúpidas superstições, ela pensou.
De volta à escola, jogou-se na cadeira do escritório e tentou relaxar o corpo. O que aquele padre estava querendo? Perguntou a si mesma, estalando as juntas dos dedos. Ela esperava que sua opção pelo Estrela d'Alva fosse causar alguma comoção e desagrado; no entanto, ele veio com aquela conversa cheia de gratidão e superstições estúpidas.
Havia pedido os registros da fundação do mosteiro e da paróquia dominicana. Não que realmente se importasse com as lendas locais, mas se os padres tinham tanto receio e interesse naquele lugar, ela queria saber o máximo possível. A vida dela era um eterno embate entre sua competência e desejos contra a vontade patriarcal que dominava a escola e, consequentemente, a cidade. O conhecimento por si só já era uma arma, e Calla usaria todas as armas que dispusesse para se impor, ou, pelo menos, incomodar os padres, que ditavam regras como se fossem donos da verdade.
Os registros eram públicos; contudo, nada fazia menção a uma sede anterior. Estaria o padre mentindo? A igreja não era acostumada a se desfazer de propriedades. Porém, lá estava, perto da estranha casa que se erguia no topo da colina, o local para fixar a bandeira da procissão. Havia também os vitrais da casa, coloridos, alguns adornados com anjos. Não os anjos gorduchos do rococó barroco. Anjos suaves e esguios que lembravam Michelangelo.
Se as terras foram da igreja, por que não comprar de volta? A explicação do padre não a convencera. Bernardo podia ser um sacerdote, mas tinha olhos astutos, e duvidava muito que ele realmente acreditasse que a maldita casa escolhia os moradores, embora Calla suspeitasse que ele via o mal no nevoeiro que descia da floresta. Como todo mundo na cidade, Bernardo precisava de uma razão para as histórias de loucura. Calla preferia culpar os casamentos consanguíneos que não eram incomuns na cidade. Apesar de tantos estudantes vindos de fora, poucos deles ficavam e, entre os moradores fixos, todos eram meio aparentados.
Repentinamente, ouviu uma voz masculina, sensual e leve ressoando através do vento:
— Bela, inteligente e perigosa.
Ela procurou ao redor, alarmada, mas não havia ninguém ali.
— Deve ser o cansaço — disse para si mesma guardando os documentos.
A escola já estava vazia e o sol começava a se pôr. Pegou a bolsa e seguiu para casa.
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