PRÓLOGO
Cristália;
Praça General Gomes;
13 de Agosto de 1984
O ENTARDECER BRINDAVA à cidade com uma bela visão, digna de uma exposição destinada apenas a ela. Do alto do morro, onde a praça pequena e não muito movimentada abrigava dois bancos velhos e uma dezena de árvores antigas, era fácil ver o céu azul manchado de tons de laranja e vermelho por toda a parte, respingando beleza na pequena localidade. Se alguém houvesse parado naquele momento e prestado atenção, teria visto as cores se fundindo pouco antes do Sol se esconder completamente e apagar qualquer vestígio da sua passagem por ali.
Pena que ninguém parou. Não havia um alma ali que se importasse com o pôr do Sol e toda a sua imponência, nem mesmo o casal sentado no banco mais velho da praça, a pouquíssimos metros de distância da beirado do morro, tinha notado a riqueza do acontecimento. A única coisa que importava aos jovens era um ao outro e o vento fresco de fim de tarde, o mesmo que balançava os galhos das árvores frondosas e envolvia os enamorados.
A madeira lascada bem abaixo das coxas incomodava a mulher, mas ela estava decidida a não demonstrar. Queria prolongar a alegria que sentia a todo custo. O ardor bom no peito valia o esforço de resistir ao atrito das farpas na pele negra e lisa. Se ao menos estivesse de calça...
O rapaz, trajando calça jeans e alheio ao incômodo que a companheira sentia, olhou-a com paixão e foi correspondido na mesma intensidade, – embora a repuxada no canto dos lábios dela não tivesse relação com o que o namorado lhe causava – ambos se encarando como se fosse as únicas pessoas do local, o que não era mentira, ao menos até aquele átimo•.
Os moradores não gostavam da região, sabiam que os líderes das facções moravam nos arredores. O moço não tinha conhecimento disso por ser novo no município, porém, a garota nascera e crescera ali, tinha obrigação de temer pela própria pele e a do namorado, no entanto, o prazer do momento a entorpecida tanto que esse detalhe importante a escapava.
O jovem de pele clara e olhos esverdeados curvou-se, ficando a poucos centímetros da boca da amada. A negra à frente deu risada ao sentir a mão do companheiro embrenhar-se em meio aos seus cachos, puxando-os levemente e causando a sensação de que estavam ainda mais colados um no outro.
Um beijo longo foi dado antes que a mulher, ao abraçar o namorado e apoiar seu queixo no ombro dele, para sua infelicidade, acabasse focando na figura que os vigiava com tranquilidade a alguns metros dali. De fato, a madeira incomodava, mas não tinha a mesma força que os olhos negros que a examinavam. Eles davam pontadas além da carne, chegavam a atingir sua alma de forma tão hedionda que seria difícil dissolver o nó que se formou no estômago.
Engolindo em seco, a jovem afastou-se um pouco e, voltando sua atenção para o amado, deu-lhe um sorriso forçado, murmurando:
— Amor, vamos embora. Está tarde.
Sua voz saiu leve, – aquela era uma das suas qualidades: ser calculista até no tom que permitia sair dos lábios – apesar de sentir um calafrio subir pela espinha a cada vez que seus olhos insistiam em cair sobre o homem escorado na árvore mais velha do parque, onde no caule estava gravado, com letras quadradas e malfeitas: N + N = amigas eternas.
— Acabamos de chegar, Nina. — Seu amado afastou-se o suficiente para poder segurar a mão da namorada e encarar seu rosto. — Não se sente bem?
— Gusta, eu preciso ir para casa. Dona Vânia é bem rígida quando quer, você sabe! — peteou. O namorado, mesmo contrariado, assentiu e levantou-se. Oferecendo a mão à mulher, tentou não transparecer a frustração, porém, como a moça já sabia, um toque de lábios longo e de surpresa foi o suficiente para alegrá-lo novamente. Por enquanto, tudo continuaria bem. O homem de olhos assustadores ficaria para trás, e Gusta, claro, ao seu lado. Tudo estava bem e continuaria assim. Nina ansiava por isso mais do que ansiou pela calça jeans. Muito mais.
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Endereço desconhecido
A vários quilômetros da praça, um homem caminhava em círculos, gastando a sola dos sapatos no chão do galpão cheio de armas frias. Corria em suas entranhas o temor de que seus homens, armados até os dentes, agora estivessem mortos. Não era para isso que havia lutado tanto. Não havia sido para sentir-se encurralado que tinha se munido de todos os tipos de proteção possíveis. Já havia matado, já havia estado nos dois lados da tortura, tinha visto pessoas chorarem aos seus pés pedindo clemência, estourara crânios e quebrara dedos, nunca temera a morte ou as consequências do que fazia, mas era justamente o que sustentava-o que o derrubaria se ele não fosse rápido. Sabia quem estava o atacando. Havia colocado o inimigo para dormir sobre o teto da sua família, sem perceber tinha aberto a porta para que um mal pior que ele próprio entrasse na sua casa. Por subestimar a morte tantas vezes, ela parecia estar cobrando seu preço, mostrando que quem regia o jogo era ela, e não ele.
Mais tiros ecoaram do lado de fora, uma sequência de pelo menos 20. O som cessou, rápido como começou. Talvez devesse sair e ir ver o que estava acontecendo. Ele já sabia que fazer isso seria o mesmo que condenar-se a um caixão, no entanto, fugir significava assumir uma covardia que não lhe pertencia. Respirou fundo. Se tivesse que morrer ali, partiria com honra ao menos.
Passando a mão pelos cabelos esbranquiçados, pegou a arma sobre a mesinha ao lado da saída do galpão e abriu a porta em um único movimento. Colocou o rosto para fora, tentando avistar alguém suspeito.
Não existia mais o som de tiros cortando o ar. Todo e qualquer ruído de projéteis sendo usados havia dado lugar a um silêncio perturbador.
A adrenalina nas suas vísceras o fazia provar o sabor de uma sensação que não lhe atormentava havia muito tempo: o medo. Porém, não teve tempo para apreciar ou desgostar o sentimento seminovo, pois, assim que pisou no chão de terra e sentiu o ar puro invadir seus pulmões, também pode avistar um arbusto balançar, mesmo com a ausência de vento.
Um...
Dois...
Três.
Engatilhou a arma e disparou. Um tiro riscou o ar, indo de encontro ao pobre coitado da vez. Um gemido de dor soou aos ouvidos do homem, fazendo um sorriso nascer no seu rosto envelhecido. O velho deu alguns passos para frente, aproximando-se do arbusto e o puxando com as mãos para o lado, na intenção de ver quem havia acertado. Entretanto, não conseguiu concluir o ato. Escutou o rangido de uma arma sendo engatilhada e o cabo metálico e frio dela tocar sua nuca. Se fosse em outra época, teria se virado e tentando lutar pela sua vida, trocaria socos com seu carrasco e faria questão de levar um pedaço dele para casa, seria um ótimo enfeite para colocar na sua prateleira de troféus, mas já era tarde para isso. Seus homens deveria estar todos mortos. Estava velho demais para enfrentar um garoto como aquele. Sabia quem iria ceifar sua vida. E isso era o que mais doía. Não por nutrir carinho pelo seu algoz, e sim por temer o que ele faria com sua família. Se aquele homem quisesse, suas filhas acabaria descobrindo toda a podridão que seu passado escondia.
Engoliu em seco, não por medo da morte, e sim por cansaço. Antes de se render, lembrou-se do rosto das filhas e da sua mulher.
Havia declarado para filha mais velha que todos os problemas dela seriam resolvidos naquele dia, e prometido a mais nova e a esposa que voltaria para casa cedo, mas, ao invés disso, todas as promessas feitas pela manhã seriam aniquiladas ali, naquela noite, tendo apenas uma pessoa como público de sua morte. Porém, o pai daquela garotinha que dormia despreocupada em sua casa, ainda teve forças para dizer:
— Te vejo no inferno.
O som de tiro ecoou aos ouvidos do assassino e o sangue que escorreu pelo buraco na nuca do velho o fez sorrir. Afinal, não era todo dia que se derrubava alguém tão importante. Ali iniciava-se um plano de objetivo ardiloso, e que poderia acabar com muitas vidas, mas, principalmente, uniria muitas outras.
⌛
1. átimo: átomo, segundo, referência a um curto
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