CAPÍTULO 7
Rua José Boa Ventura, edifício Guimarães
Enquanto Rafael e Benjamim enchiam a cara, Ayla estava apoiada na porta do apartamento, segurando firme a maçaneta e pensando o quanto teve que trabalhar para estar ali. Tudo seria diferente. A vida sem fofocas que sonhara, o lugar para espalhar os livros e dormir até tarde se tivesse vontade. Tinha o seu cantinho, finalmente. Porém, por melhor que fosse sua nova realidade, isso não a faria esquecer dos joelhos maculados pelas dores passadas. Seus pais haviam ensinado que todos, sem exceções, necessitavam ralar os joelhos no chão para entender que deveriam ter mais atenção onde pisavam. Ela tinha.
"Um olho na frente e um no chão, tenha sempre muita precaução." Sua avó recitara essa frase quando a menina tropeçou e quase derrubou o vaso de flores que a senhora mais amava. A ruiva nunca se esquecera daquelas palavras, por mais que fosse muito pequena na época.
Naquele momento, a jovem só conseguia pensar que a partir dali não cometeria mais os mesmos erros. Ao pisar no carpete de bem-vindo, sabia também que estava, além de tudo, limpando os resíduos das falhas passadas. Queria acreditar com afinco nisso.
Retinha conhecimento de que sua melhor amiga conservava um dom para designer, tanto que já estava terminando a faculdade de Arquitetura e já tinha alguns cursos de Designer de Interiores no currículo. Ayla não saberia descrever o quão belo estava tudo ali.
O apê era coberto por uma intensa luz natural, proporcionada por uma parede de vidro que ia do chão ao teto, e permitia a visão de uma paisagem caótica e belíssima. Carros, táxis, ônibus e prédios compunham aquele exuberante e enorme quadro urbano. Uma pintura viva que não se mantinha da mesma maneira por muito tempo.
O espaço amplo e o piso de madeira acinzentada e envernizada harmonizavam com o restante das paredes erguidas em tons de cinza e azul claro. No centro da sala, dois sofás de couro marrom e uma poltrona vermelha se abrigavam ao redor de uma televisão LCD, sustentada por um pequeno suporte fixado à parede, mais a frente, do lado direito, um balcão separava a cozinha da sala, onde todos os utensílios domésticos estavam em seu devido lugar. Além de tudo isso, havia uma mesa grande de granito como seis cadeiras centralizada entre os dois cômodos.
Na parede à frente, três portas – sendo uma delas azul e as demais vermelhas – se conectavam por uma linha fina e arqueada – sem padrão – e de tonalidade tão clara que chegava a ser invisível a olho nu. Alguns centímetros ao lado, uma escada espaçosa interligava o primeiro e o segundo andar do apartamento, onde os quartos e os banheiros residiam.
— Puta que pariu — materializou seu último pensamento e se permitiu largar a bagagem de mão no chão, olhando ao redor como se tudo fosse de cristal. — Todos os apartamentos têm esses detalhes? — A ruiva indagou, fascinada, enquanto se aproximava da parede e com a ponta dos dedos tocava a superfície do vidro, sentindo pequenos furos que juntos teciam desenhos incoerentes e de beleza singular e estupenda.
— Na verdade, não. — Helena encostou a bagagem na parede, fechou a porta com o punho e foi em direção à amiga. — Apenas esse andar do prédio tem esse privilégio. Esses... — disse e fez um gesto com as mãos, indicando a parede à frente. — são vidros refletivos e comuns, na verdade. A única diferença é que eles têm na composição uma camada metálica que trabalha como base na reflexão da luz. Ele permitir total visão de dentro para fora, já no sentido contrário, são apenas espelhos. — Helena explicou em uma versão séria de si mesma. Às vezes, ela mesma se assustava como sua capacidade de aderir informações como aquela. A amiga já não se surpreendia mais.
— E esses pontinhos, são enfeites? — Ayla franziu a testa, se afastando um pouco do vidro. Helena caminhou até o sofá de couro, se jogou nele e olhou por cima do ombro.
— Eu acredito que sim. Sempre que eu vinha observar a reforma, eu ficava horas encarando essa parede e não conseguia entender muito bem o significado deles... Bem, se é que tem. — Colocando a cabeça no encosto do sofá, fechou os olhos. — Até cheguei a perguntar ao professor Leonardo, aquele com cara de malvado, lembra que te falei sobre ele? — Franziu a testa, recobrando a expressão abobadada do pedagogo ao ver a imagem que a jovem registrou no celular. Ayla assentiu. — Então, apesar de ser um dos melhores professores na área de tecnologia arquitetônico, não conseguiu dizer do que se tratava isso. O que me leva a crer que seja apenas uma excentricidade do antigo dono — ponderou, crispando os lábios.
— Você se torna tão culta quando fala sobre arquitetura, senhorita — Ayla comentou, sorrindo e caminhando até a amiga.
— E você quando narra sobre algum livro — Helena retrucou, levantando-se e ficando ao lado da ruiva. — Bem, no andar de cima tem três quartos e três banheiro; e eu sei, um exagero. Enfim, em uma dessas portas — Meneou a cabeça para frente, indicando as três portas —, há um presente para você. Adivinha o que é? — A expressão divertida que se alojou na face da jovem fez Ayla arregalar os olhos.
— Você não...
— Sim. — Helena sorriu, travessa. — Atrás dessa porta — Apontou para frente — há uma biblioteca lotada dos melhores livros. Se você quiser pode ir ver agorinha mesmo. Eu preciso arrumar minhas coisas, tomar um banho e comer algo. — Quando a palavra "comer" atingiu os tímpanos da ruiva, foi inevitável sentir o estômago roncar.
— Confesso que estou muito curiosa, mas eu também estou cansada e faminta — expôs seu estado, caminhando até a mala e a apanhando.
— Eu sabia que estaríamos um caco, por isso mandei minhas malas direto para cá. Elas devem estar todas no segundo quarto do andar de cima.
— Então o meu quarto é o primeiro? — Ayla inquiriu, apontando para as escadas, e recebeu da amiga um breve aceno positivo. — Hm. Tudo bem. Mas me fala a verdade, foi você que comprou os móveis? — Conhecendo Lena, pressentia que ela não teria poupado esforços para deixar o apartamento a cara das duas, e pelo que havia observado até ali, de fato, tudo estava perfeito e ao gosto de ambas.
— Nós duas compramos o apartamento — Ayla não era boba, sabia: Lena tinha pago a maior parte. O dinheiro que Lili, como a amiga a chamava, ganhara trabalhando para a mãe não poderia pagar metade daquele apartamento, nem em seus sonhos — e seus pais ficaram de mobiliar — explicou, fazendo a ruiva enrugar a testa, não gostando de saber daquilo. — Não seja ranzinza, Lili, foi uma troca justa. Nós duas gastamos praticamente a mesma coisa e ganhamos a mobília de presente. — Helena sorriu, dando de ombro, embora soubesse que não fora assim.
— Vou fingir que acredito. Aliás, se vamos viver juntas, todas as despesas serão divididas, ok? Amanhã mesmo eu vou procurar um emprego. — A ruiva afirmou, fincando involuntariamente o pé no chão. Helena pigarreou, ciente de que não adiantaria retrucar a amiga.
— Já que todas as cartas estão na mesa, podemos ir ver os quartos? — brincou em uma tentativa de fazer a amiga relaxar. Ayla sorriu, enlaçou seu braço da negra e subiram as escadas.
O corredor, de tamanho médio, abrigava quatro portas: dois quartos do lado direito e no esquerdo um cantinho de hóspedes e um banheiro. A ruiva não demorou a escancarar a primeira porta que viu e, claro, sentir o queixo cair. Tudo do seu agrado. Nada do que reclamar.
No centro do quatro, jazia uma cama larga, de madeira escura e adornada por enfeites de bronze, com a superfície coberta por lençóis finos. Do lado da cama, uma escrivaninha grande e um notebook aberto em cima da poltrona cinza ao lado da pequena mesa. Colado na parede contrária, um guarda roupa grande se estendia até próximo a porta do banheiro e, na outra extremidade do móvel, uma porta de vidro dava acesso uma sacada, de onde podiam avistar boa parte da cidade. Vários quadros de família e das duas amigas encontravam-se espalhados pelas paredes cinzentas com borrões azulados, a única diferença do andar de baixo.
Havia uma foto em especial: toda a família de Ayla estava em um piquenique que sua tia Beatriz sempre organizava todo ano. Quando finalmente entrou no quarto, notou que havia um espelho de corpo todo do lado da porta e foi inevitável sorrir. Realmente, só podia estar sonhando.
— Quem decorou esse quarto? — Sua voz saiu faiscante de alegria. A amiga sorriu, aliviada por ter agradado.
— Eu e sua mãe pensamos em cada detalhe, mas é claro que ainda falta você acomodar todos os seus outros pertences. Seu pai ficou de trazer tudo na terça, não é? — inquiriu a morena, indo até a porta. Ayla apenas concordou como um som abafado de "hmm". Quando Helena se virou, notou que a amiga já estava com o rosto afundado em meio aos travesseiros, aproveitando a maciez da capa.
— Se eu fui para o céu, não ouse me tirar daqui. — A ruiva gracejou, levantando o pescoço para ver o rosto da amiga. — Sabe que te amo, não é?
— Você não tem jeito, Ayla! Eu vou ir tomar banho e descer para fazer algo para comermos — gargalhou, atravessando a porta e deixando a amiga sozinha. — A SENHORITA TRATE DE TOMAR BANHO. OS LENÇÓIS ESTÃO LIMPOS. — Ayla ainda pode escutá-la gritar entre o corredor e a porta do outro quarto. Sorriu. Afinal de contas, havia trocado uma mãe por outra. Mas, no fim das contas, gostava das duas e não se importava de fazer uma ou outra coisa para agradar.
Se levantou da cama, despiu-se com rapidez e foi se banhar. A verdade é que estava morta de fome e se sentindo muito cansada. Não demorou mais que quinze minutos no banho e menos de cinco para se vestir.
Se preparava para descer e ver se Helena já estava lá embaixo, entretanto, não resistiu ao teclado gritando por ela. Mesmo que fosse apenas sua imaginação, resolveu acatar o chamado.
Afastou os cadernos sobre a escrivaninha e segurou o aparelho portátil nas mãos, o depositando em cima da mesinha e abrindo-o. Deixou as teclas ao alcance dos dedos e as palavras perfurando sua alma. Sentou-se na poltrona, a puxou para mais perto, e se acomodou melhor, sorrindo. Não demorou para que abrisse o Word e começasse a digitar.
"Quando era mais nova, acreditava que todas as pessoas gostavam de se ajudarem. Afinal, sempre que eu via mamãe precisando de ajuda, papai ia lá e se oferecia para ajudá-la. Me espelhava neles. Sentia que deveria ser daquele jeitinho.
O problema foi que eu cresci. E quando cresci, percebi que as coisas não era assim. As pessoas não olhavam-se de verdade, não paravam seus afazeres para trocar cuidados quando se machucavam, não ligavam umas para as outras. Ninguém se importava, de fato, com o outro.
Mas, mesmo assim, cresci me baseando nos meus pais, que me forneciam tudo. Desde carinho e apoio a broncas e elogios. E, no final, aprendi que meus problemas são só meus, mas que não faz mal pedir ajuda a alguém. Enfim, entendemos com o andar dos ponteiros do relógio que, mais cedo ou mais tarde, somos surpreendidos por novas experiências e mudanças, e só nos resta aproveitar o que ele fornece: Tempo para mudar ou para ser mudado para a melhor. E acima de tudo, para fazer a mudança nesse vasto mundo."
Às vezes, nem a própria ruiva entendia bem o que escrevia, apenas jogava sentimentos na tela e, quando os achava controversos demais, apertava o botão de delete e os esquecia. E esse foi o caso daquele. O dedo pressionou a tecla e com um clique anunciou que já não havia mais nada na tela.
Entretanto, não estava triste por apagar um texto, os motivos que a fizeram derramar uma lágrima sobre o teclado foram outros. As palavras e a vida são delicadas, e acabam por exigir que se saiba errar, reconhecer e buscar acertar mais à frente. Afinal de contas: Ou permitia o perdão a si mesmo ou viveria um inferno em vida.
Fechando o notebook, levantou-se e caminhou até sacada, se sentando no chão frio e permitindo-se pensar na vida. A jovem entendia que mudar de casa não era só levar as bagagens para outro lugar. Era bem mais que isso. Aquelas paredes, a partir dali, eram as expectadoras da sua vida.
"Se os raios de sol se mudam todos os dias e sempre voltam ainda mais belos, o que de mal pode haver em uma mudança?" Era o que o pai dizia aos filhos quando os pequenos temiam as transformações naturais da humanidade.
E os dois, mesmo tão imaturos na época, já sabiam que acabariam levando aquela simples comparação para o resto das suas vidas. Porém, Ayla, no findar daquela noite enquanto observa o céu estrelado; acabou por questionar a veracidade das palavras do pai. Talvez ele estivesse errado, afinal.
Possivelmente o seu progenitor havia se deixado influenciar pela opinião alheia, dando beleza e significado a uma mera estrela quente. Mas não poderia negar o quanto era intrigante perceber que uma simples analogia entre o sol e a ação de "mudar" havia exercido seu papel durante muito tempo e por gerações a fora.
Ela gostava de ver o sorriso do pai ao falar sobre aquilo e, por muitos anos, ela também sorriu, tão ou mais maravilhada do que ele. Para a sua versão de dez anos, chegava a ser acolhedor olhar para o patriarca e sentir que diante de si encontrava-se o seu exemplo de vida e de esperança. No entanto, naquele momento, em um fim de domingo, com as costas apoiadas na parede de cascalhos e as pernas esticadas sobre o piso de granito, a jovem teve medo de quem era e quem queria ser.
Será que conseguiria se permitir mudar?
Por que tinha tanto medo de se esquecer do que realmente tinha importância?
O quanto poderia ser difícil provar a si mesma que era capaz?
Permitiu a si mesma prestar atenção no prédio à frente, onde as luzes dos apartamentos iam uma a uma se apagando e deixando um vazio martirizante na ruiva. Deveria estar fazendo o mesmo que todos ali: dormindo. Mas não, preferia deixar sua mente divagar e imaginar as situações mais singulares possíveis. Pensou-se em algum lugar perto dali um casal não estariam discutindo sua relação, enquanto os filhos assistam tudo com lágrimas nos olhos ou... alguém poderia estar sendo assaltado e ferido. Eram hipóteses plausíveis na mente da jovem escritora. O tilintar de passos no assoalho do corredor acabaram por afastar os pensamentos conturbados da ruiva.
— Lili? Cadê você? — A voz da Lena soou através da porta da sacada, e mesmo abafada, a preocupação era nítida na sua entonação.
Ayla levantou o braço direito, esticando os dedos longos e os batendo no vitral. Lena respirou aliviada e foi até ela, escancarando a porta e olhando à amiga com atenção.
— Você deveria ter decido uma hora atrás — alertou, buscando a mão da ruiva. — Vamos, eu já fiz algo para comermos. — Sorriu e puxou a amiga, saindo ambas da sacada e caminhando em direção ao andar de baixo do apartamento. Seria a primeira noite no novo lar, e ambas esperavam que tudo corresse bem. Nada de drástico aconteceria ali mesmo, mas na esquina...
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