
CAPÍTULO 4
Rua José Boa Ventura, edifício Guimarães
Rafael suspirou, agarrando a caneta e riscando o dia vinte no calendário. Mais uma semana havia passado, e essa tinha sido agitada demais. Além das apresentações, a loira do bar reinava em seus pensamentos, e não pelo fato de ser extremamente bela, e sim pelo que havia deixado para trás: um aviso escrito em letras cursivas e finas.
Não houve um dia daquele semana que não tivesse pensando no bendito bilhete, porém, não queria dar atenção a ele. Sempre que o papel amassado chegava à mente, Rafael tratava logo de focar no trabalho.
Naquele momento, enquanto saía de mais um devaneio, concluiu que os sonhos eram frágeis. Bastava um piscar mais lento que o tempo passaria e ele nem iria ver suas ambições se concretizarem ou ruírem de vez. Imaginou o que sua mãe falaria se falhasse. Era bem certo que ela levantaria o queixo e com os cabelos curtos balançando ao redor do rosto, diria que sonhos sugam energia, e ele não precisava fantasiar, bastava pedir e teria. Era rico. Era poderoso. Mas não queria ser. Queria só... viver.
Havia algo para acalentar seu ego ao menos: tinha conseguido agradar ao novo cliente. O dono do bar não perdera uma única apresentação do músico. Jorge estava sempre lá, embora sua amiga Akira, gerente do lugar, tivesse comentado casualmente que o patrão não costumava aparecer no estabelecimento.
Rafael bocejou, cansado. Embora fosse agradável a sensação de dever cumprido, era de carne e osso. Sem dúvida, precisava de um descanso.
A preguiça corria pelo seu corpo naquele domingo de manhã, e se dependesse dele, ela podia impregnar-se ali por um bom tempo.
Largou a caneca de café forte sobre o balcão e foi até a poltrona. Lançando-se sobre a mesma, ele forçou-se a lembrar o nome da loira. Era algo com Ca... Carina, talvez? Não! Era mais longo, disso tinha certeza. Mas não adiantava, por mais que puxasse pela memória, só se recordava de estar beijando-a quando sentiu a mão dela deslizar até o seu bolso, algo que não deu atenção, mas, ao chegar em casa, acabou lembrando disso e enfiou a mão na calça, puxando de lá um papel. O bilhete. Um ditado infeliz e letras bonitas.
"Que inferno", pensou, socando com força a poltrona.
Buscando calma, respirou fundo e foi até a bateria no canto do apartamento. A enorme parede de vidro fazia com que a luz ali fosse perfeita, e o ar que entrava pela quase invisível lacuna no extenso vidro entregava uma paz para o seu cantinho que apenas ele conseguiria entender o quanto era importante.
Pegando as baquetas sobre o instrumento, ele pigarreou e, com suavidade, começou a cantar e tocar Bem ou Mal, do Nx Zero. A letra o traduzia e era um calmante que não precisava de água para entrar nele. A estrofe inicial o fez sentir orgulho de tudo que conquistou por mérito próprio, a segunda o fez temer pelas escolhas; e a terceira e última que teve tempo de tocar; o deu a certeza de que não estava errado de seguir pela sua própria cabeça. Sua vida, suas decisões.
Para o jovem aspirante a cantor, a música era isso, expressar a vida através das letras e tocar, além de um instrumento, a alma das pessoas.
Às vezes, bastava colocar os fones e se jogar dentro de uma canção que o mundo ao redor sumia; não era difícil se ver dentro de alguma lembrança ou simplesmente esquecido de tudo.
No exato momento em que a última melodia dançou pelo cômodo, Rafael pode escutar seu celular gritar em alguma parte do apartamento. Largando as baquetas sobre a bateria, se pôs a procurar de onde o som estava vindo, entretanto, nada de encontrar o aparelho. Impaciente e temendo que fosse algo importante, fechou os olhos, concentrando-se no toque.
Maroon Five soou no sofá.
Foi inevitável rir ao notar que a voz do vocalista – da sua banda preferida – ecoava entre as almofadas. Caminhou até lá com passadas largas e agarrou o celular entre os dedos, atendendo a ligação no seu décimo toque. Era sua mãe, e pela insistência, ela estava morta de saudades do único filho vivo.
— Bom dia, mamãe! — cumprimentou, sorrindo, mesmo soubesse que ela não podia ver.
— Bom dia, meu amor. Se esqueceu da sua família, foi? — Noemi perguntou, rindo.
Desde que havia se mudado para o apartamento, tinha evitado a casa dos pais. As visitas a mãe haviam sido reduzidas a encontros esporádicos nas festas da família e um ou outro almoço que a Noemi dava e não dispensava a companhia do filho.
— Mãe! — repreendeu. — Sabe que não posso está aí todos os dias, mas sempre que dá vou visitar vocês — defendeu-se, embora se sentisse um tanto culpado, afinal; ser filho único sempre foi uma responsabilidade a mais, a qual teve que carregar desde criança, sem direito a reclamações. Além disso, sabia da vontade que a mãe tinha de ter uma filha, entretanto, por culpa do parto difícil, nunca poderia realizar seu sonho – o tão piscar mais longo tinha sido dado por ela e o tempo fora cruel. O dono dos olhos azuis tinha cravado na consciência um delito que não era seu.
— Poderia passar alguns dias conosco! — Ela sugeriu, e pelo tom da voz estava sorrindo do outro lado da linha.
— Não posso. Um dono de bar me contratou. Vou tocar lá durante um mês. — Rafael explicou, orgulhoso, mesmo sabendo que a mãe, muito provável, não gostaria da notícia.
— Rafael Almeida, herdeiro da maior empresa de publicidade do Brasil, agora toca em um barzinho qualquer?! — esbravejou, irritada, e se houvesse algum resquício de alegria em seu semblante antes, não havia nem vestígio dele mais.
— Mas é isso que me faz feliz! Ser o herdeiro da maior empresa de publicidade do Brasil, nunca me fez feliz, mãe! — Fez questão de enfatizar o modo como se referia à empresa. Faltava pouco para o nojo dançar em suas palavras.
— Eu e seu pai fizemos aquela empresa crescer pensando em você, sabia disso?! Por qual motivo renega o que é seu por direito? — Pareceu triste, e por mais que Rafael não quisesse ceder, sentia-se mal por não ser o filho que os pais queriam. No entanto, não conseguiria e nem queria voltar a entrar naquele prédio, e muito menos naquela sala. Melhoras ruins demais escondiam-se nas paredes, mas muito pior eram as boas...
Era muito para ele. Sempre seria.
— Mãe, preciso desligar.
Escutou ela suspirar do outro lado da linha e mesmo que não pudesse ver, uma lágrima deslizava pelo rosto da mãe. Não era pelo fato do filho renegar o que era dele, e sim por não poder dizer nada além daquelas palavras vazias e materialistas.
— Tudo bem. Te amo, filho. Só pensa um pouco, você merece mais que isso.
Desligou o celular.
Rafael suspirou, quase entristecido, contudo, um clique na mente o fez lembrar do karaokê ao lado do bar a algumas quadras do apartamento. Precisava de uma bebida. Caminhando até a mesinha da sala, apanhou o fecho de chaves e a carteira. Antes de bloquear e guardar o celular, ainda olhou a hora e se assustou ao ver que já eram 6h da tarde.
— Bem, ou espaireço ou enlouqueço.
O caminho até a portaria foi regado a olhares atravessados dos outros vizinhos. Alguns deles odiavam o barulho que o rapaz fazia dia e noite, outros apenas admiravam-o. Precisava lembrar de terminar o cômodo acústico no andar de cima do seu apartamento. Ligava muito para o que os outros pensavam e, embora pagasse caro para poder tocar ali, estava na hora de ter um cantinho só seu para poder fazer o seu barulho.
— Oi, Sr. Luís! — cumprimentou o porteiro assim que colocou os pés na portaria e avistou o senhor franzino e de cabelos brancos.
— Oh! Bom dia, meu jovem. Não tem apresentação hoje? — O velho abriu um sorriso amarelo e caminhou até o balcão, se jogando no banquinho atrás dele e puxando alguns papéis. Rafael o seguiu, apoiando os braços na madeira do móvel.
— Hoje não, Senhor Luís. Domingo é dia de folga. — O rapaz informou, batucando os dedos no próprio braço. — E o senhor, não tira folga? — Aquela sim era uma dúvida que a tempos o tomava. Desde que havia se mudado, o velho porteiro parecia não ter saído de folga nem mesmo por alguns dias.
— Ah! Meu jovem, folga eu não tiro há muito tempo. — Ele disse com pesar e as rugas no seu cenho eram uma confirmação da maturidade e do cansaço.
— O senhor deveria estar é aposentado, aproveitando a vida. — O mais novo comentou sua opinião, forçando um sorriso. Se sentia mal por não poder ajudar ao amigo, no entanto, sua amizade já era o suficiente para arrancar risadas do velho homem. E quando não se tinha família, aquilo era muito.
— Jovem Rafael, aposentado eu sou, mas isso não quer dizer que posso parar de trabalhar. — Arrumou os papéis e encarou o rapaz. — Meu jovem, você pode me chamar apenas de Luís. Desde que veio morar aqui, só me chama de senhor Luís. — O idoso comentou e um sorriso alegre preencheu seus lábios.
— Pode deixar senh... que dizer... Luís. — Rafael deu risada, se erguendo e ajeitando a postura. — Eu vou indo, Luís! — despediu-se, recebendo do senhor um aceno afetuoso, e saindo da portaria.
Enquanto caminhava em direção ao karaokê, agarrou o celular e discou para o melhor amigo.
— Oi, Rafa! — Benjamim atentou.
— Oi, Ben! Preciso espairecer e queria saber se você pode me encontrar no karaokê aqui perto de casa. E aí, pode? — Foi direto ao ponto, esperando que o amigo aceitasse. Precisava de alguém para ajudá-lo a chegar em casa depois. Pretendia se embebedar até esquecer tudo, já que nem a música estava conseguindo isso.
— Claro. Te encontro daqui a pouco. — Benjamim desligou a ligação e Rafael voltou a caminhar em direção ao karaokê.
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O karaokê era composto por um bar e uma lanchonete. Na parte do botequim, apenas maiores de idade podiam entrar, o que não impedia de alguns jovens burlarem as regras. Separado por uma parede grossa de vidro, do outro lado estava o Cyber Café. A única coisa que ambos os locais possuíam em comum era o palco e uma televisão enorme presa por um suporte na parede, onde as letras das músicas rolavam pela tela.
Rafael já estava havia algum tempo sentado no banquinho, permanecia escorado no balcão a admirar a parede de vidro. Atrás dela havia um casal jovem sobre a plataforma. Eles estavam abraçados e pareciam cantar alguma música conhecida que, por efeito da parede, Rafael não conseguia ouvir. A garota, mais baixa que o rapaz, tentava acompanhar o ritmo, sem muito sucesso, entretanto, tinham feições de genuína felicidade nas faces.
Chegava a ser bonito observar um amor recente e ingênuo, embora soubesse que com o passar dos anos, o brilho que preenchia os olhos dos dois morreria aos poucos, ou talvez durasse mais, só para acabar ao cair da noite. Contudo, isso era apenas o que as experiências do jovem sonhador diziam. Mesmo tendo os pais como exemplo de amor duradouro, às vezes, sem querer, acabava por notar como os olhos da mãe perdiam o brilho ao fitar o marido, mesmo que ainda parecesse haver um laço forte entres os seus progenitores, e isso o desmotivava a acreditar no amor.
Um dia, havia muito tempo, jurara para uma menina que a amaria até o último suspiro das suas vidas, no entanto, o amargo relógio andou e a promessa ficou esquecida. Balançou a cabeça, precisava esquecer isso, e estendeu a mão para o barman, chamando-o.
— O que deseja, senhor? — A fala do funcionário era arrastada e o uniforme chegava a doer de tão límpido.
— Vodca. Uma dose forte de vodca. — Sorriu, forçado, e esperou que o homem saísse para que voltasse a atenção para o palco do bar novamente. Agora uma garota, por volta dos seus 20 anos, cantava no botequim. Ela não olhava para a tela do karaokê, apenas deixava as palavras saltarem da boca e preencher o ambiente com a melodia de fundo. "É afinada", constatou ele.
Quando enfim a bebida estava em suas mãos, seu amigo, Benjamim, atravessou a porta do bar e foi até ele, tocando no seu ombro e chamando sua atenção.
Rafael sorriu, ergueu o copo na direção do barman e acenou para que trouxesse outra dose. Enquanto isso, caminharam até uma mesa, onde poderiam se acomodar melhor quando passassem da conta.
Os dois amigos ficaram a noite conversando e bebendo. Vez por outra, Rafael ameaçava subir no palco e cantar, entretanto, era impedido pelo segurança novato que estava crente de que um bêbado não se entenderia muito bem com o microfone.
Afinal de contas, o que tanto um jovem rico, com uma habilidade tão bela, poderia desejar esquecer? A pergunta parecia simples, mas a verdade era que ela desencadeava diversas outras portas e soltava os seus demônios..
Rafael fez suas escolhas, e uma delas foi, naquele momento, era a de se deixar levar pela diversão e esquecer o passado, nem que fosse por alguns minutos. Entretanto, o homem que observava do outro lado da rua não se importava com essa decisão.
— Garçom, traz mais duas.
''Não acredite em todos. Eles guardam mais segredos do que pode imaginar. Nunca esqueça que o pior cego é o que não quer ver, meu amor.''
Seria preciso muita bebida mesmo para esquecer essas palavras.
— Pensando bem, traz logo uma garrafa, amigo.
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