Sob a luz do luar
*
— No que está pensando?
Marie afastou a vista das prateleiras repletas de livros e pergaminhos para se concentrar na tia. Gesticulou:
"Naquela noite." — Respondeu, complementando a frase ao fazer um círculo no ar.
— Fala do ritual?
Confirmou com um inclinar de cabeça. Alguns fios do cabelo castanho deslizaram sobre seus olhos, dando-lhe um ar quase infantil sob a luz que adentrava pela janela.
— Foi uma noite interessante — admitiu Melina.
Os dias de repouso devolveram a vitalidade à sua fisionomia. Até mesmo a idade avançada parecia ter diminuído e um sorrisinho discreto imperava entre seus lábios, mesmo quando não desejava fazê-lo. Marie apreciava vê-la daquela forma e atribuía essa transformação ao círculo Castir e os diversos acontecimentos daquela noite.
— Confesso que também me pego pensando nas surpresas que vivenciamos. — A Grã-mestra continuou, aumentando o sorriso. Fez uma pausa, analisando-a com apuro. — Você está com medo?
O banco em que Marie sentava rangeu quando ela se empertigou e confessou:
"Me faço de forte, mas tenho medo o tempo todo. Mas não quero que ela saiba." — Baixou a vista para a tatuagem na mão, deixando claro que falava de Virnan.
Melina fez um gesto displicente e espalhou sua aura mágica à volta delas, enquanto comentava, condescendente:
— Acho difícil que não tenha percebido. Observadora como é!
Marie concordava, mas não podia fugir daquela sensação. Como Virnan tinha lhe dito, certa vez, sentir medo era bom, pois lembrava às pessoas do que era realmente importante para elas e o que tinham de fazer para defender isso. Mesmo assim, era difícil se manter firme quando pensava na noite do ritual. A esposa já tinha muito com o que lidar e não queria que se preocupasse com suas inquietações.
Esperou alguns segundos até ter certeza de que era mesmo seguro falar. Pigarreou duas vezes antes de repreender a tia:
— Anda fazendo isso com muita frequência. — Fez um gesto para a luz que ela emanava e que, aos poucos, foi suavizando até não ser mais visível. — Não quero que se canse.
Melina deslizou um dedo pela madeira lisa e fria da mesa que ocupavam. Era tão lustrosa, que quase podia ver seu reflexo nela, o que a recordava da mesa em sua biblioteca particular na Ilha Vitta. Sentiu um pequeno aperto de saudade ao imaginar como as coisas estariam no seu lar.
Ergueu uma das sobrancelhas.
— Acha que só Virnan aprecia ouvir sua voz?! — Estalou a língua, fingindo estar chateada.
Descansou o queixo numa das mãos, enquanto a outra deslizava até o livro aberto à sua frente. Brincou com as páginas, sem lhes dar maior atenção.
— Sou uma velha; qualquer coisa me cansa hoje em dia. Mas não considero poder conversar com você normalmente, um desperdício de energia.
A tranquilidade que emanava e o carinho contido nas palavras, fizeram a mestra relaxar um pouco e perder-se na contemplação do vai e vem de Tamar entre as prateleiras. Era a primeira vez que visitavam a biblioteca do palácio, mas a Mestra dos Escritos parecia bem à vontade no ambiente, como se aquela fosse sua casa. Atraía a atenção dos bibliotecários locais, que se reuniam à sua volta com perguntas sobre o mundo que ainda não conheciam e dispensava respostas e sorrisos gentis à medida que o assunto se aprofundava.
— É como se ela fosse algum tipo de celebridade para eles. — A grã-mestra comentou. — Posso compará-la, facilmente, a uma das Poetisas de Amaranto, que arrastavam multidões em suas apresentações nos festivais de inverno, quando eu era criança.
Marie inclinou a cabeça para o lado, evocando lembranças dos festivais aos quais ela se referia.
— Era a mesma coisa na minha juventude. Creio que as poetisas ainda causem esse alvoroço. — Deslizou a mão pelo tecido negro da blusa que usava. Lhe agradava as roupas florinae, de corte simples e tecidos finos e delicados, mas resistentes. Continuou a falar de Tamar: — Sempre que a encontro em meio aos livros, não consigo deixar de compará-la com a moça tímida que me servia em Midiane. Amo aquela menina pela devoção que me dedicava e por não ter me deixado sozinha, mas o meu amor pela mulher que ela veio a se tornar é infinitamente maior. Me alegra saber que está feliz com Fantin e que este lugar lhe faz bem depois de tudo pelo que passou. — Seus lábios tremeram ao recordar a morte da amiga e a dor que se assentou em seu peito naquele, quase insano, momento. Custava-lhe acreditar que fora há poucos dias e era, sem dúvida, uma lembrança que queria jogar no esquecimento.
— Creio que este reino fez bem a todas nós. Me refiro no sentido espiritual e de autoconhecimento.
Marie uniu as mãos, encarando o céu além da janela às costas da tia. Uma nuvem negra se apossou do seu semblante e voltou a se concentrar nela.
— Às vezes, tenho medo de que isso tudo não passe de um sonho. — Declarou. — Temo acordar a qualquer momento e me encontrar deitada sobre um altar cerimonial.
Baixou a vista para as mãos, novamente.
— Não consigo esquecer nossa visita à "ele". — Confessou.
Um arrepio percorreu a espinha de Melina.
— Você sabe que não foi planejado — recordou ela. Também não conseguia se livrar de tais lembranças.
— Eu sei. Mas não estava preparada para encontrá-lo naquele momento e descobrir que tem uma aparência... — interrompeu-se, sem saber exatamente como continuar.
— Acho que a palavra que você procura é "inocente". Também me surpreendi, no passado. Ele é bonito demais para alguém que cometeu tantas barbaridades contra seu próprio povo e o nosso. É isso que pensa, certo?
— Sim. Esperava que sua aparência fosse condizente com sua maldade. — Admitiu à contragosto. Estava ligeiramente envergonhada por fazer esse tipo de julgamento.
A tia percebeu o motivo do desconforto que apresentava e, novamente, lhe dirigiu um sorriso benevolente e compreensivo.
— É cruel reconhecer que pensamos de maneira tão fútil. A aparência não tem nada a ver com o que vai no coração de alguém. Todos sabemos disso. Mesmo assim, nos deixamos levar por ela e logo rejeitamos a possibilidade de estreitar laços com uma pessoa, apenas porque está distante dos nossos frágeis padrões de beleza. Não se sinta mal por isso.
Marie concordou, ainda incomodada com a lembrança do rosto de Érion. Naquela noite, quando Virnan retornou para o seu círculo e começou a sussurrar as palavras para encerrar o ritual, um forte nevoeiro as envolveu e quando se dissipou encontravam-se no centro de um amplo salão, onde as paredes ostentavam tapeçarias vermelhas e armas. Tudo parecia ter sido cuidadosamente escolhido para irradiar uma mistura de poder e ódio. Assim, a mestra pensou. Mas depois lhe ocorreu que esta poderia ser apenas uma manifestação da aura do dono daquele lugar.
Como ainda estavam ligadas pelo laço do ritual, todas captaram a profusão de sentimentos conflitantes que tomou a guardiã ao reconhecer o antigo lar da Ordem Castir. Aquele era o templo onde treinou e morou até ser consagrada oficialmente uma Castir e, atualmente, era o lar de Érion, também conhecido como a "Cidade dos Eleitos".
Em algum lugar da vasta biblioteca, alguém deixou um livro cair. O som, apesar de distante, trouxe a atenção de Marie de volta ao presente. Ela mordiscou o lábio inferior e cerrou os olhos por um segundo.
— Mas se ele é tão poderoso ao ponto de nos atrair em meio à um ritual, me pergunto se é mesmo possível vencê-lo.
Melina encerrou a brincadeira com as páginas do livro; o fechou devagar e empurrou para o canto da mesa, onde havia uma pilha de livros escolhidos por Tamar. Novamente, entendia e compartilhava as dúvidas da sobrinha, mas não estava disposta a gastar energia com conjecturas.
— A rainha não previu os resultados disso. Então, como em qualquer outra situação na vida, cabe a nós fazermos nosso destino. Talvez a gente perca, mas pelo menos iremos tentar fazer algo à respeito.
Esticou o braço até alcançar a mão dela e demorou-se a lhe fazer um carinho.
— Eu não estava disposta a entregar a sua alma para ele, assim como Virnan também não estava. Ela pode ter mentido para conseguir mantê-la a salvo, mas o fez por amor e você está feliz por isso também. O mínimo que podemos fazer é trabalhar para vencer essa guerra e construirmos um futuro pacífico para todos os povos deste mundo. — Deu de ombros, projetando o lábio inferior para frente. — Reconheço que a paz que almejo pode ser um tanto utópica, mas não deixa de ser um sonho agradável. Isso à parte, desejo um futuro que você possa compartilhar com a mulher que ama e que eu possa desfrutar dos poucos anos que me restam, assistindo essa felicidade. — Soltou a mão dela, tornando a sorrir.
Passos suaves chamaram a atenção delas para o retorno de Tamar. Ela trazia meia dúzia de pergaminhos junto ao peito. Tinha um sorriso ligeiramente incomodado pela presença de Bórian, que seguia ao seu lado. Quando alcançaram a mesa, a mestra largou-se em um dos bancos, disfarçando um suspiro. O espírito cumprimentou Melina e voltou-se para Marie, indagando:
— Poderia ter alguns minutos de sua atenção?
**
— Isso está ficando muito perigoso — Mequias se queixou.
Ele apeou do cavalo, lançando olhares cuidadosos para as árvores.
— Concordo — disse Jeil, também atento ao ambiente. Tudo estava silencioso demais e isso lhe parecia um mau presságio. — Estamos nos esgueirando pela fronteira de Midiane, contornando o nosso próprio exército, como se fôssemos um bando de malfeitores. Se Lorde Axen nos encontra, estaremos a um passo do cadafalso. Se os midianos nos encontram, acabaremos por dar início, de vez, a essa maldita guerra!
Todos os olhares recaíram sobre Anton. Este, por sua vez, manteve o silêncio. Não estava com humor para discutir com os companheiros e já começava a se habituar com os comentários e desconfianças que estiveram presentes em toda a viagem.
— Não precisam se preocupar com essas coisas agora — disse uma voz feminina.
Mãos escorregaram para as armas, enquanto os olhos percorriam as árvores em busca daquela que falou e, também, de outras pessoas. Não havia ninguém.
— Aqui em cima — a voz tornou a falar em tom jocoso.
Todos ergueram os rostos para a copa da árvore sob a qual se abrigavam. Um pássaro grande e vermelho repousava sobre um dos galhos mais baixos. Ele virou a cabeça um par de vezes, encarando-os, antes de bater as longas asas e voar até o chão, onde assumiu a forma humana.
— Diabos! — Belard exclamou, empunhando a espada.
Lyla riu, fazendo um gesto de descaso.
— Guardem as armas, senhores. São inúteis contra mim. Além disso, meu objetivo aqui é pacífico.
— Quem é você? — Belard não estava nenhum pouco disposto a guardar a espada, assim como os demais.
Ela deu alguns passinhos e sentou sobre uma das raizes da árvore, que se projetava do chão como se fosse um galho.
— Não sou sua inimiga — garantiu.
Em um voto de confiança, Anton guardou a espada e cruzou os braços.
— Você também é um espírito, certo? — A voz lhe saiu áspera, após tanto tempo de silêncio.
Um sorriso gracioso apareceu nos lábios dela.
— Sim, Anton. Mas sou diferente daquele que os visitou há alguns dias. Sou um spectu. Sei que sabem o que isso significa e, mesmo que não saibam, não irei perder tempo explicando. Então, basta que entendam que meu poder e natureza atual é semelhante ao do dragão que serve ao Cavaleiro Vermelho. — Notou o mal-estar que a informação causou. — Meu nome é Lyla e sirvo à mulher que os convocou.
A ironia no seu sorriso assentava a desconfiança deles, mas era algo que Lyla não conseguia evitar. Achava divertido assistir aquela conversa muda, feita através de olhares sugestivos e ligeiros inclinares de cabeça.
— Onde ela está? — Anton quis saber.
Ela descansou o queixo na mão.
— Sua localização não é importante, no momento.
— E o que é? — Iberion rosnou. — Viemos até aqui, arriscando nossos pescoços, porque essa mulher é uma manir, segundo Anton afirmou. E, também, houve a visita daquele espírito. Mas a cada minuto que passamos aqui, olhando para você, não consigo deixar de pensar que tudo não passa de um truque. Você, provavelmente, é uma maga de Midiane que nos atraiu até aqui para desfalcar as principais lideranças do exército de Axen e...
Lyla desfez o sorriso, assumindo a postura séria, que muitas vezes usou quando ainda era uma rainha.
— Nunca ouvi tamanha besteira! — O cortou. — Me pergunto como alguém tão estúpido pode ter se tornado um Manir e ainda liderar uma família.
O rosto de Íberion se contraiu de ódio e Lyla o desprezou com um estalar de lábios. Estivera observando eles por algum tempo e, na sua opinião, apenas três ou quatro daqueles homens mereciam algum crédito.
— Me desculpem por isso — obrigou-se a dizer, diplomática. — Estou sendo injusta com vocês, acabei esquecendo que não são os aurivas do meu povo e não devo ter grandes espectativas.
Era o tipo de desculpa ácida, insultante e contraditória que a irmã costumava usar. Acabou se perguntando se aquele laço não estava corrompendo sua personalidade e transformando-a numa nova Virnan. Conteve a vontade de sorrir com o ridículo da ideia. Sempre fora assim, mas controlava-se para evitar conflitos, já que era uma nobre.
Anton mudou o foco da conversa. Também estava agastado com a dureza das palavras dela, mas não discordava totalmente, afinal sempre achou Ibérion um parvo.
— O que deseja de nós?
— Que nos ajudem a impedir a guerra que seu lorde planeja — respondeu.
Jeil sorriu com escárnio. Enfiou a espada na bainha, irritado.
— Não acredito que fiz uma viagem tão longa para nada. Isso não está em nossas mãos!
Novamente, Lyla deixou notas de desprezo na voz.
— Então, vocês não são Manirs de verdade. Não passam de um esforço perdido. Sendo assim, devo matá-los agora e realmente desfalcar o exército de Axen.
Fez os dedos se tornarem penas longas e afiadas. Eram tão rígidas que mais pareciam de metal. Ficou de pé e andou até Jeil, mas Anton se interpôs entre eles.
— Nós somos a Irmandade Manir — afirmou.
— Até o momento, tudo que vejo é um torpe arremedo da verdadeira Irmandade. O que quer que sejam hoje, nem de longe possuem a nobreza de seus ancestrais. Não se parecem, em nada, com os homens e mulheres que marcharam ao meu lado para além das fronteiras de Flyn, sabendo que tinham como destino a morte, na pior das hipóteses, e na melhor delas, o exílio. Os verdadeiros Manirs, apesar de serem guerreiros, não apreciam a guerra. Pelo que posso ver, essa mentalidade não se aplica a vocês.
Miqueias engoliu em seco e trocou um olhar significativo com Anton. Ambos compreenderam, ao mesmo tempo, quem era a mulher diante deles. Curvaram-se em uma reverência singela. Era insano que aquilo pudesse mesmo estar acontecendo, mas como o mago axeano tinha afirmado em outro momento, aquele era um mundo repleto de magia e mistérios. Coisas extraordinárias aconteciam o tempo todo e depois de seu encontro com Virnan, tinha decidido abrir sua mente o máximo possível.
— Perdoe-nos, Majestade. — Miqueias disse, humilde. — Não fazíamos ideia de que falávamos com a rainha de Flyn.
Com o canto do olho percebeu que os outros, incluindo Ibérion, também lhe prestavam reverência. Não pela descoberta, mas porque costumavam encarar Miqueias como o líder da Irmandade. Lyla sorriu, debochada, e voltou a sentar-se. As penas afiadas voltaram a ser dedos, os quais ela escorregou entre os fios longos do cabelo.
— Estou morta, senhores. Não sou mais uma rainha, então não há necessidade de reverências e palavras enfeitadas. Sinceramente, aprecio que seja assim. Era desgastante ter que tomar cuidado com as palavras para não ferir o ego de algum nobre afetado.
Reparou na chama da curiosidade que se acendeu neles.
— Realmente, não temos tempo para explicações. Mas se a mulher que fui em vida tiver alguma influência sobre vocês, peço que me ouçam com atenção.
— Continue — Anton pediu, quebrando o silêncio que começava a se tornar incômodo.
Ela sorriu, desta vez com suavidade. O vento soprou, balançando a copa das árvores e gerando um som agradável. O sol logo iria se pôr e os pássaros começavam a buscar o local de descanso entre as folhagens espessas. O spectu ergueu uma sobrancelha, farejando o ar, como Virnan costumava fazer.
— Não quero me repetir, então vamos aguardar os outros convidados. Eles estarão aqui em alguns minutos. — Mirou um conjunto de arbustos, já captando os primeiros sons dos cascos dos cavalos.
***
— Pelo o que vejo, esta noite não terei sua companhia na cama. — Fantin brincou, observando Tamar depositar uma pilha de livros sobre uma mesa no canto.
A bibliotecária a encarou, séria.
— Quantas vezes terei de lhe dizer que nada é capaz de me roubar de você por muito tempo?
Aproximou-se da cama. Fantin estava jogada sobre ela, com os cabelos em desalinho e olhos inchados pelo sono recente.
— Tinha de me distrair um pouco, enquanto você dormia após sua aventura noturna com Virnan.
Sentou na beirada do leito e, imediatamente, foi puxada para o centro dele. Acomodou-se sobre o corpo da companheira.
— E agora que estou desperta, o que pretende fazer?
— Tenho muitos planos e todos envolvem a ausência de roupas — sorriu, maliciosa.
Fantin amava aquela face de Tamar. Aquele era um lado seu, que somente ela conhecia.
— Mas, infelizmente, isso terá de esperar. Virnan gostaria de nos falar daqui a pouco e pela carranca que estava exibindo quando me comunicou isso, problemas nos aguardam.
Sentou um beijo rápido nos lábios de Fantin e fez questão de sair de cima dela, mas a mestra não a soltou. Em vez disso, aumentou a pressão dos braços em volta do seu corpo.
— Case-se comigo, agora.
Tamar pensou ter ouvido errado. Inspirou devagar e preparou-se para perguntar o que ela tinha dito, mas Fantin repetiu a frase com mais ênfase.
— Case-se comigo, agora. A Grã-mestra já aprovou nossa relação...
— Por que isso tão de repente?
— Não é de repente. Já tinha lhe dito que minha intenção é me tornar sua consorte. Desejo isso há muito tempo.
— É verdade, mas achei que o faríamos ao retornar para a Ilha Vitta. — Conseguiu se desvencilhar do abraço dela e sentou. Fantin fez o mesmo.
— Na atual situação, não temos nem certeza se conseguiremos ver o próximo alvorecer. Não me entenda mal. É maravilhoso estar ao seu lado e ser sua companheira, apesar disso só estar acontecido há poucos dias. Mas o sentimento que lhe dedico é tão profundo, que não posso deixar de querer mais. Tenho pensado muito nisso nos últimos dias... No que será de nós se, por ventura, morrermos.
— Nos tornaremos espíritos e seguiremos nosso caminho até as Terras Imortais. — Concluiu sem voltas, era a realidade mesmo. Mas ainda não compreendia onde ela queria chegar com aquela conversa. Não que a desagradasse casar-se, muito pelo contrário.
— É disso que estou falando — Fantin agitou-se. — Quando você morreu, a dor que senti foi indescritível. Pensei que a tinha perdido para sempre. — Cerrou os olhos para afastar a imagem daquele incidente. Passou a mão no rosto, exasperada. — Eu quero que seja para sempre. Entende? Quero estar ao seu lado até o último suspiro e, quando morrer, quero continuar amando e sendo amada por você.
Tamar, finalmente, compreendeu.
— Você quer uma união assim como a de Virnan e Marie.
— Sim! Esses dias que passamos aqui, têm me mostrado o quanto esses sentimentos são valiosos. A maioria dos espíritos daqui, ainda demonstram afeto pelas pessoas que estão vivas. Mas pelo o que entendi, quando fizerem a passagem para as Terras Imortais, eles não terão tanto significado. Em um primeiro momento, poderão procurar a companhia daqueles que conheceram em vida, mas eventualmente se afastarão e participarão desse novo mundo de outra forma. Eu não quero perder o que temos, mas entendo se você achar que não pode fazer um voto desses comigo.
A mão de Tamar estava trêmula quando pousou na sua e teve de se esforçar para conseguir falar com coerência.
— Não entendo porquê insiste em duvidar da força do meu amor. Eu te amei desde a primeira vez que a vi, sonhei com você todas as noites, desde então. Agora que estamos juntas, também não posso imaginar perdê-la.
— Então, você aceita?
— Nada me faria mais feliz.
** **
Os braços de Marie eram uma adorável prisão. Era assim que Virnan pensava, enquanto a mestra a abraçava por trás. Não importava o quanto estivesse preocupada; naquele abrigo sempre encontrava a paz. Recostou-se um pouco mais ao corpo dela.
A noite tinha chegado havia algum tempo, estrelada e enluarada. Uma agradável brisa percorria a cidade, carregando os aromas da floresta que a cercava e misturando-os com os cheiros das residências.
Ela estava exausta.
Não teve nenhum repouso após regressar ao palácio. E suas preocupações aumentaram depois de receber a mensagem de Lyla. Mas junto com Lorde Verne e Melina, traçou nova estratégia e apressou-se a "soprar" os novos planos para a irmã. O fez nos jardins e aproveitou o isolamento do lugar para tomar um pouco de alento.
Em determinado momento, interrompeu o passeio para dedicar um pouco de atenção ao luar. Foi quando captou os passos e o perfume de Marie. Recebeu com prazer seu abraço, enquanto reacendia o círculo na pele, que lhe permitia a palavra sem receios de a machucar.
— Estava com saudades — a mestra sussurrou, aumentando a pressão em seus braços. — Mal nos vimos hoje cedo. E foi pior ao longo do dia. Diga, preciso ficar com ciúmes de Verne e Fantin? Tem estado mais em companhia deles do que comigo.
Uma gargalhada gostosa escapou da esposa. Virnan inclinou-se para o lado, a fim de lhe sapecar um beijo na bochecha. Marie a soltou, permitindo que se voltasse completamente, então a puxou para si, sentando as mãos em sua cintura, possessiva.
— Acha mesmo que o seu ex-noivo conseguiria ser seu rival?! — Zombou. — Por alguns pares de vezes estivemos a ponto de entrar em combate.
Marie estalou os lábios, fingindo irritação. Deixou-se admirar o brilho jocoso nos olhos dela, encantada com a forma que sorriam, mesmo que os lábios não o fizessem.
— É, você tem razão. Verne não faz o seu tipo.
— Por outro lado, Fantin não me desagrada! — Continuou a provocá-la, divertida com a expressão que a brincadeira lhe plantou. — Você fica linda quando está com ciúmes, sabia? Dá vontade de jogar charme para alguém, apenas para vê-la dessa forma.
— Você é cruel! — Marie acusou em meio a um sorriso e lhe roubou um beijo longo e sugado. Tinha tanta sede dos lábios dela, que acreditava poder passar a eternidade daquela forma.
Virnan tornou a rir, recuperando o fôlego que ela tirou. Escorregou as mãos pelas suas costas.
— Sinto sua falta o tempo todo, Marie. Por mais preocupações que tenha, você jamais abandona meus pensamentos.
Era em momentos como aquele, que todos os receios de Marie desapareciam. O medo sempre existiria, mas quando estava com Virnan, ele era apenas uma sombra. A puxou para si, novamente. E a manteve entre seus braços pelo máximo de tempo possível.
— Isso é tão bom — Virnan sussurrou com o rosto enfiado em seu ombro. — Queria não ter que me afastar.
Marie afrouxou o abraço.
— Então, não se afaste. Fiquemos assim o quanto desejar.
— Que tal "para sempre"?
— Ficarei com as pernas doloridas — riu. — Mas tudo bem, se pudermos mudar de posição, vez ou outra. — Beijou-lhe a testa, depois lhe acariciou o local. — Deveria descansar um pouco. Esta será uma longa noite, também.
— Já estou descansando entre seus braços.
— Por mais que adore quando fala assim, tenho de reclamar. Sabe que me refiro a uma cama e algumas horas de sono. Não pode continuar se sobrecarregando dessa maneira.
Desde que ela assumiu o trono, não passava um único dia tranquila. Eram reuniões, visitas aos alojamentos do exército, preparações e vistorias das armas, entre outras coisas. Verne e Melina a auxiliavam com mais frequência, assim como Joran. Marie e as outras também estavam engajadas nos planos, mas suas funções eram muito distintas e menos cansativas até o momento. Além disso, no dia anterior, elas tinham feito um novo ritual e, assim que o encerraram, Virnan e Fantin partiram para o bairro auriva.
— Prometo descansar direito amanhã. De preferência, espero ter você ao meu lado.
— É uma promessa?
— Ainda duvida?! — Lhe beijou suavemente e deixou-se ficar no aconchego de seus braços por mais algum tempo.
Foi Lorde Verne que as separou, ligeiramente constrangido por fazê-lo. Ele as observava havia alguns minutos, entretido em uma discussão interna sobre o modo como se sentia ao vê-las daquela forma. Acabou por afastar as indagações após um forte suspiro. Tinha feito uma promessa a si mesmo e iria cumpri-la. Analyn ficou no passado, agora só havia Marie, sua cunhada. Nada mais.
Pigarreou alto.
— Desculpe interromper, mas já está tudo pronto.
Virnan espreguiçou-se como um felino.
— Esta vai ser uma longa, muito longa noite.
** **
A comitiva midiana havia chegado ao local marcado para o encontro com os líderes estrangeiros, meia hora antes. Estes, por sua vez, estavam atrasados.
A medida que o tempo passava, a apreensão crescia. E, após um momento de deliberação, decidiram que permanecer ali, não era seguro. Começaram a retornar para Valesol, mas não chegaram a percorrer uma centena de metros, quando foram cercados por um grupamento de soldados axeanos.
Eles eram muitos e as lâminas surgiam de todos os lados. Respeitando sua própria proposta, os midianos estavam em um grupo de cinco pessoas, onde uma delas era a princesa. Por mais valentes, fortes e habilidosos que eles fossem, não tinham a menor chance de escapar dos axeanos e apenas estariam buscando uma morte cruel e violenta, se reagissem. Mesmo assim, eles formaram um círculo em volta da princesa, dispostos a morrerem por ela.
O vento agitou a folhagem das árvores à volta deles. Os axeanos se dividiram para dar passagem a um homem. Ilan Dastur caminhou entre as duas fileiras de soldados e parou a poucos passos dos midianos.
— Ah, finalmente nos encontramos, Princesa Emya. — Ele sorriu, debochado.
— Lorde Axen, veio negociar um acordo de paz? — A princesa indagou, mantendo uma postura rígida.
A firmeza em sua atitude, incomodou o lorde. Ele havia se acostumado a despertar o medo e apreciava assisti-lo dominando as feições de suas vítimas. Naquele momento, não podia ver o rosto dela, já que o capuz da túnica estava jogado sobre sua cabeça, assim como ocorria a dois de seus subordinados.
— Sua paz frágil e inútil não me interessa — escarneceu.
— Hum. Neste caso, não temos nada a conversar. Então, peço que ordene a retirada de seus homens. Estas terras pertencem a Midiane e vocês estão invadindo.
Ilan caiu na gargalhada.
— Você é ousada, princesa. Gosto disso. Sempre ouvi dizer que era apenas uma sombra a seguir as ordens de seu marido e pai. Fiquei um pouco surpreso ao saber que viria para Valesol com um objetivo tão... "nobre". Mas, como pode notar, foi tudo em vão. Midiane já me pertence.
— Tudo que noto é o seu delírio, senhor. Conta com uma vitória que ainda não aconteceu e não acontecerá. Nossos vizinhos podem ser seus aliados, mas...
— Aliados?! — Ele riu. — Não seja tão ingênua. Não tenho aliados. Aqueles tolos, são apenas um joguete. Pobres iludidos pelo medo de uma ameça antiga. Imbecis que sequer perceberam que a verdadeira ameaça é aquele que vos fala e que enchem a boca para chamarem de amigo. Jamais se deram ao trabalho de investigar os rumores de que eu era o responsável pelas mortes das eleitas. Pobres idiotas!
Ele fez uma pausa, encarando as estrelas que surgiam através de um espaço entre duas árvores.
— Bem... A esta hora acho que devo usar a palavra no passado. Eles "enchiam". Neste momento, devem estar a caminho das Terras Imortais.
A princesa cerrou os punhos.
— Você não teria coragem — disse, com voz trêmula.
O lorde ergueu as sobrancelhas. Não sabia se aquela tola inocência lhe irritava ou lhe fazia rir.
— De matá-los?! É claro que teria. Aliás, eu tive.
Novamente, a descrença imperou na voz da princesa:
— Mas qual seria a vantagem disso? É insano!
— Não considero isso uma vantagem. Na realidade, sempre foram meus planos. — Arqueou os lábios, cada vez mais por não poder lhe ver os olhos. — Você ainda não entendeu, princesa? Eu não quero apenas Midiane, eu quero tudo. E já que é assim, assistirei vocês se matando, acusando uns aos outros pelas mortes de seus governantes. E a cada vida que partir, mais poder meu mestre terá!
Lhe deu as costas.
— Achei que este encontro seria mais divertido. — Soprou o ar, enfastiado. — Nem sei a razão de lhe contar todas essas coisas...
Fez um gesto para os soldados e eles se aproximaram mais dos midianos.
— Enfim, não tenho todo o tempo do mundo, nem interesse em lhe explicar meus desejos. A noite vai ser longa e eu tenho de estar à frente do exército quando Valesol cair. Quando o dia raiar, caminharei por suas cinzas.
Voltou-se.
— Então, vamos partir para o que interessa, princesa: A sua morte!
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