O poder de um Castir
*
Os cabelos de Fantin se agitaram, embalados pela força do vento que entrava pelo teto, quando ela se pôs de pé. Devolveu a adaga para Virnan e começou a se afastar, dizendo:
— Não posso fazer isso. Não me peça algo assim.
A amiga sabia que o que lhe pedia era doloroso, mas necessário.
— Não seja tão inocente, Fantin! Acha mesmo que podemos ganhar essa guerra sem derramarmos nosso sangue?!
Ela interrompeu os passos e voltou-se com uma expressão colérica.
— Há uma grande diferença entre ser inocente e não querer tirar a vida de uma amiga!
— Não lhe pediria algo tão custoso se não fosse necessário.
Seus olhos pareciam pedras preciosas na luminosidade mágica daquele lugar. Tinha uma expressão quase fantasmagórica e, por um instante, Fantin a enxergou assim.
— Acha que Marie o faria?! Acha que posso pedir uma coisa dessas a mulher que amo, quando a fiz casar-se comigo, exatamente para que não se tornasse um sacrifício?! Quando lhe prometi uma vida juntas agora e após a morte? Acha que Melina teria coragem de fazer isso à sua sobrinha ou de quebrar o precioso juramento da Ordem, do qual tem tanto orgulho? Acredita que Tamar, aquela alma doce e sensível, que se esconde por trás do amor ao conhecimento, poderia empunhar esta adaga e apagar minha existência?!
Fantin caminhou até ela, cada vez mais revoltada. Os sentimentos instáveis espalhando-se por seu semblante na forma de um forte rubor. A raiva era tanta, que o ar até lhe faltou por um momento.
— E por que acredita que eu teria capacidade para tal?! Por que me joga um ato tão penoso sobre os ombros, quando nem mesmo sua irmã foi capaz de fazê-lo no passado?! — Deu-lhe um safanão na mão que segurava a cópia da adaga e esta lhe escapou entre os dedos e rolou pelo chão até parar na base da fonte.
O característico sorriso irônico dela a atingiu como se fosse um soco no estômago. Se não reconhecesse o brilho da seriedade em seus olhos, acharia que brincava consigo.
— O que fiz para proteger este reino era o meu dever, assim como era o dever de Lyla. — Apanhou a adaga e sentou-se na beirada da fonte, quase no exato local que Lyla sentou um pouco antes de fazerem o ritual. — Não se iluda, Fantin, ela diz que me ama e sei que é verdade, mas se fosse realmente necessário e inevitável para o bem do nosso povo, ela mesma teria arrancado o meu coração.
A mestra experimentou uma desagradável sensação no estômago, como se tivesse comido pedras e, agora, essas lhe pesassem dolorosamente. O riso de Virnan não escondia o azedume que a verdade lhe trazia. Ela continuou, com voz um pouco arrastada e mais baixa que o normal:
— Ela era uma rainha com a vida de seu povo em mãos, não apenas isso. Suas responsabilidades tornaram-se muito maiores quando me tomou aquela pedra e viu o futuro deste mundo.
Fantin tornou a largar-se no banco, enterrando o rosto entre as mãos por um instante longo demais. A cabeça lhe doía e a felicidade que a consumia por ter feito um voto de união com Tamar, já não era suficiente para aplacar a negatividade das emoções para as quais aquela conversa a arrastou. A mirou, desejando ter se deixado convencer por Tamar e ficado na cama pelo resto da noite.
— Pode ser verdade, mas ainda assim ela a protegeu. Encontrou uma forma de salvá-la e apenas tirou Zarif de você — argumentou, por fim.
A risada de Virnan cresceu. Jogou um das adagas no ar, que girou e caiu em sua mão, brilhante, para tornar a ser atirada no vazio. A guardiã começava a se cansar do assunto. Recuperou a adaga pela última vez, então a atirou aos pés de Fantin, onde enterrou-se até a metade no chão.
— O futuro alternativo era muito vago para que pudesse ter certeza de algo. — Recordou. — Então, não é como se tivesse passado noites sem dormir, tentando encontrar a solução. Lyla simplesmente arriscou. Nenhum pacto Castir tinha sido desfeito antes e ela não teria como saber se daria certo.
A outra gemeu, revoltada.
— Se desse errado, tudo que tinha de fazer era esperar que eu morresse. — Deu de ombros, com imagens vagas a lhe invadir a mente. Lembranças do momento em que a irmã desfez seu pacto com o espírito Zarif. — Mas havia uma grande chance de sucesso, porque nunca fui uma Castir comum.
A mestra obrigou-se a afastar a vista da adaga aos seus pés e pousar nela, novamente.
— Lembra-se do que falei sobre ressuscitar alguém ser proibido pela Ordem Castir? — Virnan continuou, agitando os cabelos como se ainda os tivesse longos.
— Que muitos enlouqueciam e acabavam por morrer? — Inclinou a cabeça, assentindo. Como poderia esquecer algo assim? Aquela conversa tinha sido há poucos dias e ainda estava muito vívida em sua memória.
— Por que isso não aconteceu comigo? — Virnan indagou. — Enlouqueci, é verdade, mas ainda tinha consciência de mim.
Tinha se feito essa pergunta milhares de vezes e quanto mais tentava encontrar a resposta, mais longe se sentia de alcançá-la. Cruzou as pernas e enfiou uma das mãos na água. A frieza do líquido lhe ofereceu um pouco mais de clareza aos pensamentos.
— Pensei muito nisso, mas acabei deixando essas indagações de lado quando me uni a Ordem. O que havia de tão especial em mim para conseguir resistir àquilo?! — Expulsou o ar pelo nariz, durante um sorriso sem dentes. — Depois de reencontrar Laio, a resposta me chegou com tanta facilidade, que quase ri da minha estupidez.
Curvou-se para o lado e levou um pouco d'água à face, refrescando-se. Então, tornou a ficar de pé. Suas mãos traçaram gestos no ar, movimentos coreografados e muito diferentes daquelas que ela tinha feito quando dividiu a adaga. Ainda se pareciam com uma dança, mas eram claramente agressivos. Falava, enquanto os realizava:
— Comecei a treinar para me tornar uma Manir quando tinha apenas três anos de idade. Não enfrentei as dificuldades que a maioria dos aurivas passam durante o treinamento, pois cresci em meio a ele. Aprender isso — deu uma sucessão de socos curtos no vazio — era a minha brincadeira preferida e minha mãe sabia que isso me faria mais forte que aos outros.
Parou de movimentar-se e tocou a ponta do banco que Fantin ocupava. Ela se esfacelou como se não fosse nada mais que areia.
— Saber onde e como tocar pode permitir que ganhe uma luta contra um mago poderoso sem lhe roubar a vida. Mas até mesmo o movimento mais simples pode ser mortal para quem sofre o golpe e quem manipula a técnica. Ser um Manir não é apenas aprender a usar alguns golpes marciais, é treinar seu corpo e mente para resistir ao impacto deles. Uma coisa não funciona sem a outra. É preciso harmonia. E quando Lyla me tirou Zarif, ela esperava que a minha mente fosse capaz de resistir àquela agonia, graças a isso.
— Começo a enxergar aquele passarinho de outra forma — Fantin se endireitou sobre o banco, ainda presa àquela sensação desagradável de que algo pesado lhe comprimia o peito.
— Não me ressinto por isso. As decisões dela me trouxeram vocês e a Ordem. E, se estivesse em seu lugar, teria feito igual. — Agachou-se diante dela. — Não podemos escolher fazer apenas o que nos agrada, Fantin. Temos responsabilidades maiores; pessoas contam conosco.
— Mas é da sua vida que estamos falando — retrucou.
— É apenas uma vida, se comparada a um mundo inteiro. Acha que isso não me deixa triste? Me parte o coração pensar que não poderei estar ao lado de Marie e vocês, mas se o fim da minha existência as mantiver seguras e lhes permitir um futuro, me sacrificarei de boa vontade. — Apanhou a adaga. — Não se engane. Isso não é tão nobre quanto estou fazendo parecer. Na verdade, estou sendo egoísta. Pois não quero que as pessoas que amo se machuquem, caso Érion consiga consumir a minha alma. Quero que tenham uma chance, mesmo que não esteja mais aqui.
Tornou a lhe oferecer a adaga e Fantin a tomou, consumida por uma raiva e angústia sem precedentes. Tentava segurar as lágrimas.
— Com certeza, nenhuma delas pode fazer isso. Mas eu também fiz um juramento à Ordem...
A amiga fechou as mãos sobre a dela.
— O juramento pode ser contornado, você sabe. Não pode matar alguém usando os conhecimentos adquiridos na Ordem, mas isso não impede que se use o que aprendeu fora dela, assim como fiz naquela estrada. — A mestra recordou o rosto sem vida e assombrado do comandante Loyer com uma ligeira náusea. — Além disso, estou lhe dando o direito de fazer isso comigo, então não tema o juramento.
Deslizou um dedo sobre o fio da lâmina.
— Não é tão poderosa quanto é quando está completa, mas servirá ao seu propósito. — Covinhas charmosas se formaram em suas bochechas quando sorriu de um jeito quase infantil. Era como se o teor daquela conversa não lhe pesasse. — Além disso, existem cinco armas tucsianas. Maxine e Lyla conseguiram roubar e esconder quatro delas, mas a quinta ainda está em poder de Lorde Axen.
Virnan lhe fez um carinho na face e ficou de pé.
— Além dessas razões, estou dividindo a minha tucsiana com você porque a natureza da nossa magia é a mesma. Então, quando a verdadeira batalha chegar, se eu não for capaz de convocar o poder dela, você poderá fazê-lo em meu lugar. — Sorriu de novo. — Essa é a resposta à pergunta que me fez. Estou lhe dando essa tarefa porque você pediu.
— Gostaria de retirar o que disse — engoliu o nó que se formou na garganta, amaldiçoando as palavras que lhe disse durante a noite anterior, enquanto se dirigiam para a casa de Laio.
O vento agitou os cabelos de Virnan. Ela passeou o olhar pelas plantas que tomavam o salão e aspirou o perfume que exalavam com uma expressão serena.
— Somos muito parecidas, Fantin. Sei que, apesar de pensar assim, quando chegar o momento, você fará o certo. Escolherá pôr fim a uma vida, a minha vida, em vez da de milhares. Me odeie por isso o quanto quiser. — Retornou para o banco, escondendo o rosto entre as mãos por algum tempo. — Vocês me pediram isso. Aceitaram a responsabilidade. Um Círculo não é só união.
— Inferno! Eu quero te odiar, mas quanto mais você abre a boca, mais sentido suas malditas palavras fazem!
Virnan escorregou a mão pelos cabelos com um sorriso amargurado e Fantin garantiu:
— Eu vou ficar com essa arma idiota, mas esteja certa de que não vou te matar.
— É apenas uma garantia. Uma possibilidade. É preciso pensar em todas elas. — Curvou os ombros, o cansaço cada vez mais presente em suas feições. — De todo modo, você estaria apenas concluindo algo que deveria ter acontecido há três milênios...
Encerrou o assunto ao perceber a aproximação de Marie e Tamar, que surgiram acompanhadas por Bórian. Estampou um sorriso calmo no rosto e Fantin teve ganas de estapea-la, mas repetiu o gesto, com bem menos cuidado, mas de maneira convincente.
Como foi? A mestra indagou e Virnan fez um gesto afirmativo.
— Está tudo certo, tive uma longa conversa com os espíritos no salão de Cazz.
Bórian balançou a cabeça, afirmativamente. Mesmo que não estivessem no salão, todos os espíritos que habitavam a cidade ouviram a voz dela e atenderam seu pedido. Deslizou o olhar até a adaga que Fantin segurava com um vinco a se formar na testa.
— Isso não vai funcionar. Você sabe. — Disse para a antiga companheira de círculo. — Vocês precisam de todas as armas e dividir a sua, não irá ajudar em nada. Apenas diminuirá seu poder.
Ela seguiu seu olhar, confiante.
— É apenas por precaução — deu uma tapinha no ombro da mestra.
O incômodo de Fantin não escapou à Marie. Passou vinte anos ao lado dela, na Ordem, e tinha aprendido a reconhecer suas expressões. O mesmo ocorreu à Tamar. Embora Virnan se mostrasse naturalmente tranquila, essa atitude só acentuou a sensação de que algo havia se passado entre as duas.
— Logo, Laio terá recuperado as armas do esconderijo em que Maxine as deixou antes de me libertar e teremos de ir atrás do machado de Lorde Axen. Até lá, me sentirei mais segura compartilhando a minha tucsiana com Fantin.
De repente, ela dobrou-se e as tatuagens em seu corpo começaram a emitir um suave brilho.
— De novo não... — sussurrou, pálida e apavorada.
A dor de Lyla a invadiu como se fosse a sua própria e lembranças do dia em que seu pacto com Zarif foi quebrado chegaram plantando um medo absurdo em seu peito.
**
Lyla vislumbrou as estrelas por uma abertura na copa das árvores. A dor crescia a cada segundo, trazendo a certeza da morte definitiva. Achava engraçado senti-la assim, quando já estava morta. Sangrar também lhe parecia irreal, mas descobriu que o líquido rubro que jorrava para fora de seu corpo era surpreendentemente quente.
Não se arrependia do caminho percorrido até ali, pois tinha feito tudo ao seu alcance para dar uma chance ao seu povo e aquele mundo, mas lamentava deixá-lo tão repentinamente. Lamentava, muito mais, a dor e desespero de Virnan.
Por alguns pares de vezes, desde que fez o pacto com ela, se perguntou se ficaria tão triste e atormentada, caso a perdesse, assim como ficou com Zarif. Apesar da distância em que se encontravam e de não poderem se comunicar mentalmente, como ocorria quando estavam próximas, aquela ligação lhe trouxe a resposta. O medo de Virnan a invadiu e se tornou o seu.
Mesmo que soubesse que um dia teria de deixá-la, não queria fazer isso em meio ao desespero, não queria lhe dar outra estígma. Lágrimas se desprenderam dos seus olhos e as botas de Lorde Axen rangeram em contato com o solo, enquanto ele se aproximava resvalando a lâmina do machado no seu braço, fazendo um corte profundo.
— Não posso matá-la com esse machado porque não tenho essa tal magia espiritual, mas posso machucá-la muito. Vou fazê-la odiar o dia em que teve a maldita ideia de se prender àquela adaga.
Lhe fez outro corte e o grito dela quebrou o silêncio tenebroso da floresta.
— Onde está aquele seu sorriso zombeteiro agora?
Pisou no rosto dela. Uma, duas, três vezes. Lyla se contorceu um pouco, sangue escorrendo entre os lábios feridos.
— E pensar que você costumava ser tão agradável quando estava com Maxine. Diga-me, você sorriu assim quando matou aquele mago por quem ela estava se apaixonando e lhe roubou a alma?
Não esteve presente no momento ao qual se referia. Naquela época, Maxine tinha optado por enfiar a adaga em um baú velho aos pés da cama e manter-se longe daquele espírito "traiçoeiro e mentiroso" que insistia em lhe falar que havia algo de errado com seu irmão e que acreditava que ele tinha se tornado um servo do Cavaleiro Vermelho e, por isso, conseguiu se tornar um mago tão poderoso e que o medalhão com o qual a presenteou e lhe permitia vê-la, era resultado da morte e roubo da alma mágica de alguém.
Maxine decidiu nunca mais tocar naquela adaga, mas a dúvida já tinha sido plantada e passou a observar o irmão com mais apuro. Começou a perceber pequenas coisas, mas ainda se recusava a aceitar a verdade. Entretanto, certa noite, após encontrar-se com um jovem mago que lhe atiçava o interesse e do qual o irmão desgostava, descobriu a verdade. Tinha esquecido, na casa do rapaz, um bracelete que lhe era caro, então retornou para apanhá-lo e acabou por chegar ao local no exato momento em que Illan extraía sua alma.
O lorde a xingou e chutou suas costelas tantas vezes que, ironicamente, ela acabou por perder a noção do tempo. Suor escorreu da têmpora dele, ainda que a noite estivesse fria. Uma dupla de sugadoras balançava-se entre os galhos de uma árvore com um sorriso atormentado, à espera das ordens de seu mestre.
Ilan cuspiu no chão e agachou-se ao lado dela.
— Você foi esperta, majestade. Admito. Outra vez, você estragou meus planos. Meu mestre irá me punir com rigor e vou aceitar isso com um imenso sorriso. Pois, esta noite, eu terei minha vingança.
Passou a lâmina do machado na perna dela e, mesmo em meio a dor, Lyla enfiou duas penas no ombro dele, que recuou com um gemido. O lorde puxou as penas e atirou-as no chão. Um sorriso malvado lhe surgiu. Desferiu novo golpe nela, mas esse não chegou a tocá-la, já que um bastão foi colocado em seu caminho.
Com surpresa, ele encarou o guardião Petro, que o empurrou para trás com um golpe no ombro sadio.
— Então, a Ordem está mesmo escolhendo lados! — Reclamou.
Petro girou os bastões.
— Ainda não. Mas, apenas desta vez, vou quebrar as regras da irmandade e dar uma surra em um imbecil arrogante!
Após enviar o aviso mágico, ele não conseguiu ir adiante na fuga. Mesmo que Lyla já estivesse morta e soubesse se defender, ele era um protetor. Custava-lhe deixar alguém para trás. Tinham ido juntos àquela missão e juntos retornariam para Valesol.
Usou o outro bastão para golpear o rosto do lorde, que foi jogado para trás e desviou, por centímetros, de um golpe desferido pelo Comandante Guil. No fim, todos pensavam da mesma forma e optaram por voltarem juntos. O lorde rugiu, tomando uma distância segura deles, principalmente de Miqueias que, de todos, era o que mais lhe ofereceria perigo por ser um Manir.
— São um bando de idiotas por voltarem por essa maldita. Diferentemente dela, vocês não se tornarão espíritos. — Sorriu, cruel. — Então, tenham uma boa morte.
Miqueias avançou em direção a ele.
— Não sabe o quanto esperei por este dia... — ele disse. A espada em uma mão, enquanto a outra mantinha os dedos em posição rígida para desferir o primeiro golpe manibut que tivesse a chance.
Os ombros do lorde tremeram quando riu. Fez um gesto no vazio e as sugadoras se aproximaram dele. Mas os homens não podiam enxergá-las.
— Cuidado! — Lyla advertiu, sob a proteção do guarda pessoal do príncipe de Bévis. Seu nome era Dagui. Ele a tomou nos braços e começou a se encaminhar para as árvores, a fim de aproveitar a cobertura que os outros forneciam. No entanto, um tentáculo grosso se enrolou em seu pescoço. Ele deixou Lyla cair e foi erguido do chão. Sufocava, as pernas balançando no vazio.
Os companheiros assistiam a cena horrorizados, pois não conseguiam enxergar o inimigo. Lyla fez crescer as penas nos dedos. Estava tão machucada que mal conseguia se mover, mas, ainda assim, conseguiu atirá-las na sugadora que atacava Dagui. O monstro rugiu de dor e acabou por soltar o rapaz.
O comandante Guil se aproximou dele, apenas para constatar que seu pescoço fora quebrado.
— Mas que inferno foi isso?! — Ele indagou, assustado.
As penas de Lyla cresceram novamente.
— Pegue! — Ela disse. — Essas coisas não podem ser feridas por suas armas, mas isso pode machucá-las. São espíritos, por isso não as vêem.
A voz dela se tornava cada vez mais fraca.
— Não deviam ter voltado. Pegue isto e fujam na primeira oportunidade que tiverem.
Antes de conseguir pegá-las, o comandante foi atirado para o lado por uma das sugadoras. Miqueias tentou ir em seu socorro, mas foi empalado por um tentáculo e atirado contra uma árvore. O comandante ergueu-se, aturdido, e cortou o ar com a espada. Encontrou resistência e tentou nova investida.
Enquanto isso, Petro mantinha o foco em Lorde Axen, pois acreditava que aquilo se tratava de magia e, se o derrubasse, seus companheiros estariam em segurança. Atirou-se sobre ele, conjurando uma proteção para o corpo e reforçando a resistência dos bastões, mas o lorde sorriu de lado, deu um passo para trás e agitou o machado.
Os bastões do guardião e sua proteção mágica foram rompidos. Um corte largo e profundo surgiu no peito dele, que curvou-se, saboreando o próprio sangue. Mesmo assim, tomou uma posição de ataque, tornando a conjurar nova proteção. Novamente, o machado do lorde a quebrou e rasgou sua carne.
Ilan riu alto e cheio de escárnio. Fez um gesto para o vazio e Petro viu-se imobilizado por algo invisível. Sentia como se uma serpente estivesse a se enroscar em seu corpo e lutou ferozmente para se libertar, mas de nada adiantou. Acabou se rendendo a falta de ar que o aumento da pressão lhe trouxe e reparou que o comandante se encontrava na mesma situação.
O lorde disse às sugadoras para não os matar. Queria que vissem o fracasso de seu esforço. Ergueu Lyla pelo pescoço.
— Vou retalhar você e depois a darei para os meus "animais" de estimação devorarem. — Falava das sugadoras.
Encostou o machado no peito dela, mas, de repente, foi repelido por uma força brutal. Lyla caiu ao chão e um círculo se elevou do seu peito, emanando tanta luz que, por um momento, foram cegados. Quando a luz desapareceu, havia uma mulher parada ao lado do spectu. Os cabelos curtos e a capa vermelha balançaram ao sabor do vento que varreu o local.
— Maxine... — Ilan sussurrou, mas logo percebeu o erro. — Não, você não é ela.
Virnan encarava o corpo machucado de Lyla, os punhos cerrados e trêmulos de ódio. Perguntou:
— Como você se atreveu a pôr essas mãos imundas nela?! — Sussurrou. — Como ousou machucá-la?! — Ergueu o olhar para ele.
O lorde engoliu em seco, surpreso com a ira naqueles olhos de uma cor preciosa, mas recuperou-se logo. Abriu um sorriso de menosprezo.
— Entendo... Você é ela, Virnantya L'Castir. Achei que fosse mais alta.
— E eu achei que fosse menos estúpido, mas agora entendo porque Érion o escolheu. — Deu um passo à frente, criando um círculo que se espalhou pelo lugar, erguendo uma barreira mágica a volta deles e revelando as sugadoras para os guerreiros aprisionados. Guil e Petro não conseguiram esconder a surpresa de ver aquele inimigo. No chão, junto a uma árvore, Miqueias gemeu e cuspiu sangue.
— Meus amigos me chamam de Virnan, mas você pode me chamar de "morte".
Axen trincou os dentes.
— "Ele" disse que você era arrogante, mas nunca pensei que fosse tanto. Meu mestre ficará feliz quando levar sua cabeça para ele.
A resposta dela foi um sorriso debochado, que mascarava o tamanho do ódio que lhe tomava. A dor de Lyla ecoava dentro si. O sofrimento dela a preenchia ao ponto de achar que iria sufocar. Essa sensação a atormentou durante todo o caminho até ali e as imagens de terror que sua mente projetava não a prepararam para a realidade.
As tatuagens em seu corpo brilharam um pouco mais forte, graças a agitação da sua magia. Assim como o laço do pacto que fizeram atraía Lyla para si, sempre que se encontrasse em perigo de vida, o mesmo ocorria em relação ao spectu. E foi assim que um círculo a envolveu no meio do salão lunar e a fez desaparecer diante dos olhares atônitos da esposa e amigas.
Apanhou as penas que Lyla tinha tentado entregar ao comandante e atirou-as nas duas sugadoras. O movimento foi rápido, mas as criaturas desviaram do ataque. No entanto, as penas mudaram a trajetória, impulsionadas por uma corrente de ar e ficaram-se no peito de ambas. Gritos de agonia elevaram-se, arranhando os ouvidos sensíveis da castir, enquanto os corpos desintegraram, tornando-se uma pilha de pó que foi absorvida pelo círculo. Os dois guerreiros caíram, exaustos de tanto tentarem resistir àquela prisão.
Sugando todo o ar possível para os pulmões, Petro engatinhou em direção aos bastões partidos. Encarou Virnan como se ela não passasse de uma alucinação. Estava inclinado a aceitar isso como verdade, mas o fato de que os acontecimentos dos últimos dias e daquela noite eram extraordinários manteve seus pensamentos claros.
O lorde ergueu o machado e a golpeou, assim como fez com Petro. Este, por sua vez, tornou a conjurar uma proteção para si e o comandante, enquanto tentava alcançar Miqueias. Ele gritou para a companheira do círculo protetor da Ordem:
— Cuidado!
Seu aviso não era necessário, nem a preocupação. Virnan estava bem ciente dos movimentos do lorde e suas intenções assassinas. Nada lhe aconteceu. O machado se chocou com uma parede de ar. Irritado, ele continuou golpeando, mas o resultado era o mesmo. Virnan o encarou com um sorriso assassino a rasgar os lábios.
— Me diga, Lorde, como você quer morrer?
Ele tornou a golpear a barreira. Desta vez, reforçando o machado com magia, mas tudo que conseguiu foi que o ar que a cercava se espalhasse pelo lugar e balançasse as folhas e galhos das árvores em torno.
— Eu sou Ilan Dastur, sou o Lorde de Axen, não pense que pode me matar tão facilmente. Esmagarei esse seu sorriso com a sola das minhas botas!
Tentou novo golpe.
— Dastur... — ela sussurrou. — Dashtru. Você não merece carregar este sobrenome, diferentemente de Maxine.
A barreira caiu e ela deu um passo para o lado, desviando do machado. O lorde interrompeu o golpe ao perceber o movimento e mudou a trajetória da lâmina, obrigando-a a inclinar-se para trás. Virnan aproveitou o movimento e deu uma cambalhota; sorriu de lado.
— Fique parada e lute! — Ilan berrou. Atirou o machado nela que, outra vez, se esquivou. A lâmina atingiu uma árvore e esta se partiu como um pergaminho, então retornou para as mãos dele ao ser conjurada.
Cada vez mais furioso, Ilan segurou o medalhão que usava no pescoço. Cipós, que despencavam das árvores, pareceram ganhar vida e a perseguiram por alguns metros, até que ela ficou fora de alcance. A vegetação rasteira que os cercava começou a crescer, envolvendo as pernas dela até tomar todo o seu corpo.
Axen mal cabia em si de tanta satisfação, quando se aproximou dela. Os olhos luziam como os de um animal ao se aproximar da presa.
— Fique quietinha de uma vez, para que eu possa arrancar sua cabeça! — Ele falou, erguendo a lâmina.
Um risinho baixo e provocativo se projetou dela.
— Criança idiota! Ter esse machado e usar esse medalhão abominável para ampliar sua magia miserável, não faz de você um adversário digno para mim. Não passa de um vermezinho traiçoeiro que irei esmagar.
As plantas que a envolviam se despedaçaram quando ela fez um pouco de força. Afinal, era uma auriva e a força física de sua casta não podia ser comparada a de um humano.
— Tenho ouvido o seu nome nos últimos doze anos, até mesmo Maxine me falou com admiração de seu poder. Mas pelo o que acabei de ver, sua magia não passa de uma piada. Nem mesmo essa coisa odiosa em seu pescoço a torna digna de interesse. — Fez uma careta de nojo. — Até aquele bastardo do comandante Loyer lutava melhor que você e ele nem tinha magia!
Aproximou-se, libertando o ódio que sentia.
— Você foi um bobo por unir-se à Érion, mas essa estupidez não o poupará de pagar por ter machucado a minha irmã! Vou lhe mostrar o poder de um Dashtru de verdade.
Ilan tentou atacá-la novamente, mas como ocorreu nas vezes anteriores, ela se esquivou e diminuiu ainda mais a distância entre seus corpos. Daquela maneira, ele não tinha como atacá-la com o machado. Sendo assim, ele buscou o punhal longo na cintura. Estocou em direção ao rosto dela e até lhe arranhou a bochecha, mas Virnan deslizou dois dedos por seu antebraço e deu um pequeno soco próximo ao cotovelo.
Instantaneamente, o lorde axeano largou o punhal. A dor o atingiu com tanta intensidade que ele sequer conseguiu gritar. Seus ossos pareciam ter derretido. Mesmo com a curta distância, tentou empurrá-la com o machado, mas ela fincou dois dedos em seu abdômen, que nem mesmo a couraça foi capaz de proteger. Os dedos dela continuaram a resvalar pelo seu corpo, atingindo os pontos mais dolorosos existentes. A agonia o tomava a cada toque.
Por fim, ele acabou por largar o machado e cambaleou por alguns metros até chocar-se com a parede mágica do círculo. Virnan apanhou a tucsiana, que brilhou forte em sua mão, irradiando um poder que o lorde jamais sentiu. A Castir passou os olhos e os dedos pelo fio da lâmina que tinha pertencido a Bórian, enquanto Ilan se deixava cair de joelhos com um pequeno rio de sangue a lhe escapar pelos lábios.
— Esse é o poder dos verdadeiros Dashtru. Manibut, a arte de interromper o fluxo de magia do corpo de um mago — ela disse, erguendo a mão livre. — E, este, é o poder de um Castir.
Fechou a mão e o ar fugiu dos pulmões dele.
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