Florinae
*
Melina acompanhou o baile das chamas na fogueira, absorta à curiosidade que inspirava. Revolvia as lembranças do dia em que deveria ter morrido no altar do Cavaleiro. Regressou à esteira em silêncio. Sentou devagar, deixando-se envolver pelo cheiro da madeira a queimar. Uniu as mãos sobre o colo.
— Nunca contei sobre isso a ninguém. Sempre que me perguntavam sobre a pessoa que me salvou, dizia que não recordava de nada. Mas eu ouvi sua voz e vi o seu rosto. — Mirou Virnan.
Captou dela apenas um dar de ombros. A guardiã parecia ausente de si mesma, envolta em um aspecto abatido e doentio. Nem mesmo o sorriso, que já tinha lhe abandonado os lábios, parecia ser o mesmo. Não era nenhuma surpresa, já que sua saúde ainda inspirava cuidados.
— Sim, pensando bem, ela se parecia com você. — Melina concluiu.
Fez um gesto no vazio, brincando com os fios grisalhos que se soltaram de seu coque.
— Ela era tão jovem quanto você. Astuta, corajosa, impetuosa, mas também era bondosa. Fiquei ao seu lado por alguns dias. Para ser sincera, não sei quem cuidou de quem naquela época. Ela se feriu gravemente e eu também não escapei incólume.
As roupas não permitiam que enxergassem as marcas em sua pele. Marcas deixadas pelas garras afiadas do dragão. Mas essas não eram tão profundas quanto aquelas que ficaram em sua mente e que, apesar de terem se passado cinquenta anos, ainda a faziam acordar gritando no meio da noite.
— Como você sabia? — A voz lhe escapou, ligeiramente falha.
Virnan escorregou pelo tronco da árvore até o chão. Afagou a vegetação sobre a qual sentava, rendendo-se a um prazer que, há muito, não sentia. Cerrou os olhos por alguns instantes. Desejava deitar-se ali e desfrutar aquela sensação até que a morte viesse lhe buscar. Mas ainda tinha muito que fazer antes disso. Respondeu devagar:
— Sei, porque ela me contou no dia em que morreu.
Enfiou uma das mãos na terra, recordando o dia em que Maxine Dastur cruzou seu caminho. Aspirou o ar, mas o cheiro que lhe chegou não era o da floresta nem o da fumaça que se elevava da fogueira. Tampouco, era do sangue, tanto o seu próprio quanto o dos homens que matou na estrada, e que ainda se encontrava em seu corpo mesmo que em pequenas quantidades. O cheiro que lhe invadiu as narinas vinha da memória de paredes rochosas, estreitas e sufocantes de uma câmara.
Na escuridão daquele ambiente, em meio à confusão mental em que tinha sido jogada, deu-se conta da mulher que a encarava com um sorriso um pouco débil. Em contrapartida, os olhos continham uma certeza absoluta, expressando o desejo de ir adiante com o que tinha planejado, não importando as consequências.
Algo naquela mulher a recordou de si mesma, mas estava tão despedaçada que não conseguia se concentrar em sua figura ou no que dizia até que avistou Lyla ao lado dela e, juntas, elas a tiraram das trevas.
A voz de Alina a arrancou da lembrança, Virnan voltou a abrir os olhos e a sensação de sufocamento lhe abandonou. Piscou algumas vezes para se situar.
— Não faz sentido. — A bibliotecária depositou a caneca de chá sobre um tronco, enquanto o castanho inquisidor dos olhos de Marie se devotava a Virnan. — Aquele homem a confundiu com essa tal Maxine. Não faz sentido ela ser uma idosa. Pelo menos, não da forma que ele falou. Mas se for, acaso ela é sua mãe ou uma parente?
Os ombros da guardiã balançaram à medida que ria alto, afastando de vez a imagem dos olhos amarelados de Maxine.
— Ah, não, Mestra! Ela não é minha mãe. Maxine nunca conheceu os anseios de um coração materno. Mas, sim, temos um parentesco, ainda que distante.
Ela perdeu-se no fundo da caneca, admirando o líquido escuro e fumegante. O vapor se erguia dele, carregando um cheiro adocicado que a recordava de outro momento importante em sua vida, o dia em que conheceu Lyla. Através da fumaça, procurou o rosto pálido e translúcido dela, recordando a frase que lhe disse quando despertou. Ela não estava à vista. Contudo, agora que a pedra no cabo da adaga estava descoberta, conseguia sentir sua presença.
Se a aceitasse como seu spectu, senti-la seria como sentir a si mesma. Estariam ligadas por um pacto mágico. Seriam duas e, ao mesmo tempo, uma. Lyla a protegeria e, se esse laço fosse realmente poderoso, sua magia poderia retornar.
Mas Virnan não queria isso, não desejava ter Lyla ligada a si por um voto eterno e sagrado e odiava tudo que as colocou em lados opostos e ergueu uma barreira na amizade. Entendia as atitudes que ela tomou no passado, mesmo se ressentindo. Mas, ainda assim, havia uma escuridão em seu peito; algo nocivo que não lhe permitia perdoá-la. Entretanto, o que não conseguia mesmo fazer era se perdoar, ainda que estivesse certa de que todas as decisões que tomou eram necessárias. Como Lyla disse, estava bem ciente de seu crime quando o cometeu, só não imaginava que a punição seria tão cruel.
Tomou um gole longo do chá. Ainda sentia o sabor férreo do sangue em sua boca e ansiava por um banho para que pudesse se livrar dos vestígios na pele. Fungou algumas vezes, afastando alguns fios de cabelo da face.
— Deixemos a história do Cavaleiro para outro momento. Basta saber que ele foi aprisionado em uma das centenas de cavernas neste reino. — Disse.
— Não é nenhuma novidade — Verne reclamou, escorregando os dedos pelos olhos até o nariz. Estava cansado de meias verdades e histórias incompletas. — Você poderia deixar de enrolação?
Ela colocou a caneca no chão, enfiando a outra mão na terra. Caeles ainda estava vivo. Sentia isso nas pontas dos dedos, no cheiro da floresta, nos pequenos sons que os companheiros não podiam captar, mas que eram uma adorável sinfonia em seus ouvidos.
Aquele reino resistia à destruição de que foi vítima e isso a preenchia de uma estranha paz.
— Há seiscentos anos, dois jovens em fuga se depararam com essa caverna e entraram nela para escaparem de seus perseguidores. Ignoraram os avisos e permaneceram nela até o anoitecer. Então, um deles decidiu explorar o lugar e descobrir se as lendas eram verdadeiras.
Retirou as mãos do chão e admirou a cor negra do barro que as cobria. Sorriu, satisfeita por não encontrar uma cor vermelho sangue.
— Quando encontrou o centro da caverna, deparou-se com estátuas que formavam um círculo. Enquanto outras no centro dele tentavam escapar.
Fixou os olhos no vazio, como se pudesse visualizar a cena que narrava.
— As estátuas usavam armas de verdade. A invasora, pois era uma garota, percebeu o seu valor. Eram adornadas com joias e um pouco de metais preciosos; diferentes de tudo que seus jovens olhos já tinham visto. Ora, ela era uma ladra, e estátuas não podiam reclamar o que lhes foi tirado. Não é mesmo?
Ergueu a vista para o lorde, fazendo um gesto suave.
— Ela roubou as armas e partiu com o irmão no meio da noite, sem imaginar a destruição e sofrimento que trariam para esta terra. Os dois jovens se chamavam Maxine e Ilan Dastur.
Verne inflou o peito, rejeitando a ideia com um gesto antes mesmo de se pronunciar:
— Impossível! — Afirmou.
— Ninguém pode viver tanto tempo! — Fantin concordou, reparando em uma pequena mancha escura que começava a crescer na blusa da guardiã.
Por sua vez, Virnan sorriu devagar, esticando-se como um felino ao se pôr de pé. Retirou um pouco de água do odre próximo a esteira que ocupava, mais cedo, e lavou as mãos. Falava enquanto isso:
— Maxine Dastur tinha seiscentos e dezessete anos quando morreu. Seu irmão não deve ser muito mais velho que isso.
Verne passou a mão nos cabelos, irritado. Deu a volta na fogueira, estacando diante dela. Naquele momento, ela parecia ainda menor. Talvez fossem os ferimentos e sofrimento dos dias nas mãos de Loyer, mas parecia melancólica, mesmo deixando os sorrisos provocadores aparecerem, vez ou outra.
— Pare com as brincadeiras, Guardiã. Eu quero a verdade!
Ela inclinou a cabeça para trás, encarando-o de volta.
— Você é terrivelmente chato e sem visão, Badir. — Afastou-se dele e se agachou diante da fogueira, fitando o fogo e girando a adaga nas mãos. — Vivemos em um mundo repleto de magia. Há forças ocultas e extraordinárias aqui. Elas nos conectam e elegem seus preferidos. Estes, são os magos.
Enfiou a mão no fogo e as chamas se afastaram.
— Mas somos todos frágeis e mortais. — Melina concluiu.
Alina recuperou sua caneca, derramando o líquido frio aos seus pés. O que a grã-mestra dizia não era exatamente a verdade e deixou isso claro:
— Mas, como Virnan afirmou, a magia tem seus eleitos. Algumas lendas dizem que os Enaen eram quase imortais. Faz sentido presumir que outros povos, como os florinae, que eram seus descendentes diretos, tivessem herdado sua longevidade. Alguns pergaminhos antigos falam de amuletos e magias temporais. São muitas possibilidades.
Alisou o queixo, pensativa.
— Neste caso, seria o tal sangue auriva? — Quis saber.
Virnan riu, admirando a sabedoria daquela mulher. Nunca se esforçou para formar laços com a Mestra da Biblioteca, eram muito diferentes, pensava. Contudo, lhe dedicava um grande respeito e lamentava que tivesse passado os últimos vinte anos de sua vida aguardando a concretização de um destino cruel. Era por causa dela, das eleitas anteriores e muitos outros que faria sua existência naquele mundo valer à pena.
— A longevidade sempre fez parte da Casta Auriva — explicou.
— Casta?
Fez um gesto displicente.
— Sim. Histórias longas, lembra? Tenho várias. — Voltou a dizer. — Falo dessa mais tarde.
Marie sentou ao lado de Melina. Já tinha uma boa ideia das histórias dela. Viu muitas em seus sonhos e ainda que não tivesse ouvido a verdade absoluta, já sabia o que esperar. Entretanto, seu coração torcia para que as suspeitas que tinha, não se revelassem a realidade.
— A razão de viverem tanto tempo foi o Cavaleiro. — Virnan continuou.
— Não consigo entender.
— As armas que Maxine roubou pertenciam aos guardiães que prenderam o Cavaleiro. Assim como fazemos um círculo de cura na Ordem, eles fizeram um círculo de armas. O Cavaleiro teria ficado preso por toda a eternidade, provavelmente morrido, se eles não entrassem naquela caverna.
— Se é verdade, o lugar deveria ter sido protegido. — A mestra observou, cada vez mais curiosa.
— Está correta, Mestra. — Virnan falou, satisfeita pela astúcia dela. — A entrada da caverna continha um círculo. Na verdade, vários. Todos possuíam poderosas conjurações de proteção que mantinham as pessoas afastadas do local. Não sei se foi um acaso ou desejo das forças mágicas que governam este mundo, fato é que os irmãos eram descendentes do povo que aprisionou o Cavaleiro e, portanto, as magias protetivas da caverna interpretaram eles como guardiães.
O vento soprou, balançando a copa das árvores. Ao longe, o som esganiçado de um animal encontrando a morte se elevou e Lorde Verne supôs que Fenris tinha conseguido capturar o jantar daquela noite.
— Não consigo acreditar que duas crianças gananciosas fizeram tudo isso. — Fantin declarou, depositando o olhar sobre Marie. Ao seu lado, Verne fez o mesmo e cruzou os braços sobre o peito largo, fincando as unhas nos braços.
Melina já não se questionava se o que a guardiã contava era a verdade. Algo lhe dizia que era, então indagou:
— Você sabe por que ela me salvou? — Passou a mão pela face enrugada. — Naqueles dias, quis muito perguntar a ela, mas não tive coragem. Eu queria viver e estava vivendo. Era tudo o que importava.
Virnan voltou a brincar com a adaga, trocando-a de mão repetidas vezes. Parecia hipnotizada pelo objeto.
— Ela fez porque descobriu a verdade há um pouco mais de cem anos. — Respondeu.
— Que verdade?
— A de que Ilan sempre esteve à serviço do Cavaleiro Vermelho e ocultou dela o fato de que, quando roubou aquelas armas, o libertou de sua prisão.
O maxilar do badir se contraiu.
— Então, nunca estive muito longe da verdade. — Ele disse. — Sempre acreditei que Lorde Axen desejava o poder do Cavaleiro, mas se ele o serve, já o tem.
A guardiã concordou, acrescentando:
— Ele tem bem mais que isso... — Foi misteriosa.
Fantin deu uma volta em si mesma.
— Mas aquele sujeito da estrada disse que o Lorde de Axen aguardava a irmã para derrotarem o Cavaleiro juntos. — Comentou ela.
— Não é preciso um grande esforço para entender isso. — Virnan pontuou. — Uma mentira bem contada conquista corações ansiosos para servir a um bem maior. Foi assim que ele uniu as casas de Axen e justificou seus crimes. — Estalou os lábios, revoltada. — Maxine era apenas uma ladra, uma garota humilde que se tornou uma criminosa para sobreviver. Antes de vender as armas, ela descobriu como usá-las e, obviamente, não entregaria aquele tesouro a outros.
Balançou a cabeça, buscando as lembranças da estranha conversa que tivera com a mulher em questão.
— Não tenho todos os detalhes, ela só me deu os que realmente interessavam e, na época, não me encontrava em condições de receber tantas informações. Enfim, ela rompeu com o irmão e tentou salvar o eleito de Primian, mas já era tarde demais. Então, cinquenta anos depois, conseguiu resgatar a de Midiane.
Focalizou a grã-mestra que parecia ter envelhecido mais dez anos nos últimos minutos.
— Ela possuía a adaga e o arco. Acreditou que poderia derrotar o Cavaleiro com eles. Mas Maxine não tinha o dom necessário para usá-los da forma correta. Mesmo que tivesse, não conseguiria vencer.
— Por que? — Melina quis saber com voz falha.
— Porque foi preciso o sacrifício de uma rainha e de três dos guerreiros florinae mais poderosos para aprisioná-lo. — Virnan sorriu estranhamente, como se estivesse lamentando algo e o tom que usou na frase seguinte reforçou a impressão. — Se o círculo estivesse completo... Talvez assim, eles tivessem conseguido...
Voltou a se concentrar no fogo.
— Mesmo não possuindo o dom, Maxine conseguiu ferí-lo naquele dia. Algo impressionante para alguém como ela. Sabem, não existem muitas pessoas capazes de usar uma arma tucsiana. — Ergueu a adaga, demonstrando que falava dela.
O vento soprou novamente, espalhando fagulhas pelo ar. Uma delas caiu sobre a lâmina da adaga e a arma brilhou suave por alguns instantes.
— Mas você consegue usá-la. — Verne comentou, com a testa franzida.
Cada nova revelação aumentava a sensação de um peso a comprimir seu peito, assim como ocorria quando se preparava para entrar em um campo de batalha. Os pelos na nuca dele se eriçaram com a certeza de que a morte os rondava.
Outra vez, um sorriso estranho visitou os lábios da guardiã.
— Não mais. — Ela revelou.
— Todos vimos o que fez com ela — o príncipe retrucou.
— O que fiz, nem de longe se aproxima do real poder desta arma. Eu não posso mais usá-la do jeito certo e, se tentar, minhas forças serão drenadas de imediato. Desmaiei depois daquela demonstração, não foi?
A expressão zangada dele se apagou ao perceber o que o incomodava em Virnan. Não era seu envolvimento com Marie ou o jeito zombeteiro. Sim, aquele sorriso convencido o irritava, mas o que o incomodava de verdade eram os olhos. Não a cor, mas a falta de calor que, vez ou outra, lhes tomava. Estava certo de que se encontrava diante de alguém que conhecia a guerra de um forma que ele nunca vivenciou.
— Ainda há algo que não esclareceu, Guardiã. Você admitiu para aquele mago que o sangue do Lorde de Axen corre em suas veias. Se não é filha de Maxine, o que isso quer dizer, então?
— Quer dizer que, de certa forma, somos parentes muito, muito, muito distantes.
Ela fez um muxoxo, passando a mão sobre os cabelos.
— Na Ordem, somos conhecidos apenas pela função que desempenhamos nos círculos e o primeiro nome. Em verdade, há muito tempo que não pronuncio meu nome completo.
— Diga — ele pediu.
— Virnantya Dashtru. — Como o esperado, o som daquele nome não lhes disse nada, mas lhe trouxe uma nota de saudade.
Vasculhou o lugar em busca de Lyla, novamente. Ela costumava chamá-la de Virnantya para provocá-la, pois sabia que não gostava desse nome.
— Obviamente, o Dastur de Maxine e Ilan é uma variação de pronúncia. — Alina concluiu, prendendo os cabelos castanhos com uma fita azul marinho.
A guardiã deu de ombros, confirmando.
— Tudo o que disse, Guardiã Virnan, levanta outra questão. — Era a primeira vez que Verne pronunciava o nome dela e o fez como se estivesse engasgado. — Há detalhes em sua história, que remonta ao passado deste reino, do povo florinae e do Cavaleiro. Você mesma afirmou conhecer a real história dele. Então, lhe pergunto, quem é você?
Ela passou a mão na testa, afastando uma mecha dos cabelos negros.
— Por que insistem em fazer as perguntas erradas? — Respondeu. — Quem eu sou não é importante. Nunca foi.
Melina se demorou a contemplar o rosto jovem, juntando tudo que o que aprendeu sobre ela nas últimas semanas. Ao seu lado, Marie parecia absorta, e isso lhe deu a certeza de que ela tinha chegado à mesma conclusão. A princesa se endireitou e disse:
"Deixemos isso para mais tarde. Virnan ainda não está bem, já recomeçou a sangrar." — Se aproximou dela.
Virnan pousou a mão onde uma mancha de sangue se avolumava no abdômen. As pernas fraquejaram e Fantin, que se encontrava às suas costas, impediu que caísse.
— Eu estou bem — garantiu, tentando se livrar dos braços da outra.
— Não mesmo, mas vai ficar depois que passar por um novo círculo de cura. — A mestra retrucou. Sem aviso, a colocou no colo e antes que desse um passo à frente, ela já tinha perdido os sentidos.
"Venham!" — Marie chamou, apanhando uma bolsa de couro, junto a esteira. E tomou a frente, seguindo para as árvores em direção ao pequeno lago atrás delas.
Verne travou o maxilar, ouvindo os passos delas se afastarem. Se voltou para Alina, que ajudava a grã-mestra a se erguer. Ainda não estavam completamente descansadas, mas fazer um novo círculo de cura na água equilibraria o gasto de magia e amplificaria os resultados. Provavelmente, Virnan só precisaria de uma ou duas pequenas sessões depois disso. Algo que uma das ordenadas poderia fazer sozinha, sem se desgastar.
— Essa mulher tem o hábito de se ferir ou perder os sentidos nos momentos mais reveladores. — Resmungou o badir.
Mestra Alina empurrou um pedaço de madeira para a fogueira.
— Duas palavras naquela conversa com o axeano me chamaram a atenção. — Disse, fazendo Melina interromper os passos antes de alcançar as árvores. — Uma delas encontrei em um pergaminho antigo, há muitos anos. A outra jamais ouvi, mas o pouco que Virnan esclareceu me deu uma direção. Não se sabe muito sobre os floras. A maior parte da sua história se perdeu, mas um dos muitos pergaminhos antigos da biblioteca da Ordem, fala que sua sociedade era dividida por um sistema de castas. Quando ela fez referência a isso, recordei esses escritos. No topo da sociedade florinae estava a Casta Deminara, de onde saíam os governantes. Na base dela estavam os Aurivas.
Se aproximou da grã-mestra.
— Pelo o que me lembro, a maioria deles era composta por guerreiros, protetores e guardiães. Apesar disso, eram considerados inferiores entre seu povo, pois possuíam uma magia tida como fraca ou inexistente.
Melina inflou os pulmões e soltou o ar devagar. Já tinha chegado àquela conclusão minutos antes, mas ainda lhe custava acreditar que pudesse ser verdade. A bibliotecária finalizou:
— Acredito que Virnan seja florinae.
**
— Estou bem, Marie! — Virnan afirmou e foi ignorada pela mestra, que lhe atirou um cobertor sobre a cabeça.
Recostada a uma árvore, Fantin observava as duas. A grã-mestra tinha retornado para o acampamento com Alina, satisfeita e cansada após o círculo de cura que tinha feito no lago. A princesa secou os cabelos da amiga e Fantin a ajudou a tirar a blusa molhada, única peça de roupa que vestia naquele momento, e também a faixa que recobria o ferimento na barriga. Marie o apalpou, mas só restava um corte aberto, cuja cicatrização se iniciava.
A mestra iniciou um novo ritual curativo, mas Virnan lhe prendeu as mãos e a afastou.
— Eu estou bem. Juro!
"Você estava quase morta quando chegamos aqui." — Protestou a mestra.
— Você nunca foi dada a exageros, não comece agora. — Virnan repreendeu esboçando um sorriso. — Basta que me faça outro curativo.
Fantin retirou uma faixa limpa da bolsa que Marie tinha levado.
— Ela tem razão, Marie. Acabou de passar por um círculo de cura e não há motivo para que você se desgaste assim, forçando seu próprio corpo. Amanhã eu mesma cuido dela. — Lhe entregou a faixa e a amiga acabou se rendendo.
De fato, Marie estava muito cansada, mas o desejo de ver a guardiã completamente sã a levava a agir daquela forma insensata.
Virnan sorriu, deixando que fizesse o curativo na barriga, enquanto Fantin cuidava de enfaixar o braço esquerdo. Inspirou fundo.
— Sei que não é agradável, mas esse cuidado é um afago em meu coração. — Falou. A frase não foi proferida para Marie. Esperava isso da sua mestra, diante dos fortes sentimentos que tinham uma pela outra, mesmo que ela jamais os tivesse admitido. — Obrigada, Fantin.
O embaraço da mestra arrancou um sorriso de Marie e uma piscadela marota da guardiã.
— Você é irritante e arrogante, mas é uma boa mulher, Virnan. Sinceramente, seu passado não me interessa. O que me importa são as ações do presente e o que busca para o futuro. — Fantin recuperou-se, zangada pelo ardor nas bochechas. Era a segunda vez que a protetora lhe causava aquela reação.
— Matei pessoas naquela estrada. — Virnan recordou.
Fantin finalizou o curativo, dando um tapinha suave no ombro dela. Marie fez o mesmo e se afastou para assistir a conversa das duas.
— Aos meus olhos, Guardiã, você estava lutando pela sua vida e a de suas companheiras. Tirou outras vidas, é verdade, mas o fez sem quebrar o juramento que fez à Ordem. Estou certa de que Mestre Milan e Mestre Calisto não lhe ensinaram a usar a espada daquele jeito. — Capturou um leve arquear de lábios dela e fez uma pausa para limpar a garganta. — O que acabei de dizer é a verdade, seu passado não me interessa. Mas me satisfaria uma curiosidade?
Ela inclinou a cabeça afirmativamente.
— Quantos anos tem de verdade? Conhecimento não é sinônimo de idade, mas você sabe demais sobre o passado deste reino e muitas outras coisas. Por vezes, tenho a impressão de que é mais velha do que aparenta e pela forma que narrou seu encontro com Maxine, essa sensação se tornou mais sólida. Tenho certeza de que todas nós pensamos o mesmo.
Virnan buscou o olhar de Marie. Ela não a fitou de volta, em vez disso parecia concentrada no lago que refletia a luz alaranjada do sol que começava a se pôr. Voltou-se para a mestra.
— Eu não sei — respondeu.
Marie pareceu acordar de seu devaneio e se pôs mais ereta, ainda concentrada na paisagem.
— Passei muito tempo ausente da realidade para contá-los, Mestra. — Arqueou um dos cantos da boca. — Mil, dois mil, dez mil... — Sorriu mais largo, fitando Marie de novo. — Sinceramente, não tenho ideia de quanto tempo se passou desde que vi o céu de Caeles pela última vez antes do meu caminho cruzar com o de Maxine.
Fantin inflou as bochechas e soltou o ar devagar. Era bem mais do que esperava obter como resposta e não lhe escapou o mal-estar que se instalou na face da companheira de círculo.
— Obrigada pela sinceridade. — Agradeceu a mestra.
Ela fitou o céu alaranjado por um instante, então caminhou de volta para o acampamento, dizendo:
— Acho que vocês precisam conversar. Não se preocupem, cuidarei para que não sejam interrompidas.
— Não quer saber o como, Mestra? — Virnan indagou, curiosa.
Fantin se voltou para responder:
— Agora, não. — Sorriu e retornou para o caminho.
Ia com passos gingados, o coração acelerado pela surpresa e, agora, certeza de que ela poderia mesmo ser florinae, como Alina tinha lhe dito em uma conversa sussurrada antes de retornar com a grã-mestra para o acampamento. Se Virnan conhecia mesmo a verdadeira história do Cavaleiro, talvez pudesse conhecer uma maneira de impedir o sacrifício de Marie.
Fantin, interrompeu os passos para fitar o crepúsculo mais uma vez, antes de desaparecer atrás das árvores com um sorriso largo.
Virnan abraçou-se dentro do cobertor, incomodada com a possível reação de Marie. Contudo a mestra não se manifestou por um longo tempo. Cansada de esperar algum sinal dela, falou:
— Eu sempre fui uma protetora, Marie. — A mestra abandonou a contemplação do firmamento para se concentrar nela. — Nasci para isso. Quando entrei para a Ordem, almejei uma posição no Círculo Protetor porque me encontraria nele. Não que os outros círculos não me satisfizessem, apreciei a passagem por todos os anteriores, mas você há de concordar que minha personalidade não combina muito com eles.
Marie inclinou a cabeça, concordando.
— De certo modo, a Ordem me devolveu a mulher que um dia fui. — Tocou a testa no exato local da tatuagem e explicou: — Não é uma marca de morte, ainda que possua uma relação com ela. Significa que eu era exatamente o que sou para a Ordem hoje: Uma guardiã.
A mentora não conseguiu esconder o alívio, porém afastou-se. Precisava de um minuto com seus pensamentos, pois já sabia o que ela iria lhe dizer a seguir. Marie caminhou até a margem para lavar as faixas sujas e a blusa dela. Dedicou-se àquela tarefa por um tempo, ciente dos olhos da guardiã sobre si, a lhe admirar os movimentos e as formas.
Torceu a blusa para retirar o excesso de água e a atirou sobre um galho seco, repetindo o processo com as faixas. Quando acabou, ainda se demorou para responder, encarando o rosto belo e jovem que não poderia ser comparado à idade que tinha.
"Eu sei." — Disse, por fim. — "Durante esses dias, sonhei com você todas as noites. Sonhos estranhos e muito vívidos. Alguns eram suaves, outros aterradores."
Abraçou-se, desprezando o fato de que também se encontrava molhada até a cintura.
— Conte-me sobre eles. — Virnan pediu.
"Eu não quero."
— Por quê? — A guardiã insistiu.
"Porque tenho medo de que você me confirme que eles são reais." — Mas eram, Marie estava certa disso. Contudo, ainda se agarrava ao desejo de que não fossem.
A guardiã fitou o chão, indagando:
— E se eles forem? Fará alguma diferença na maneira como me enxerga?
Marie se aproximou.
"Sempre que você revela algo, me assusta. Tocar sua magia foi acolhedor e ao mesmo tempo aterrador. O que disse há pouco é... Não sei o que pensar!" — Confessou, também baixando a vista por alguns instantes.
— O que o seu coração diz?
Marie tornou a olhá-la, sem esconder a confusão que a tomava.
"Diz que você não era feliz e se culpava pelas coisas que teve de fazer nos campos de batalha. Que há muito ódio em você, mas, também, há amor."
Fez uma pausa, organizando os pensamentos.
"Acredito que os sonhos que tive são lembranças suas e a grã-mestra concorda. Acha que quando nos unimos através da minha magia, as retirei de você, mesmo que não fosse minha intenção. Aliás, nem sabia que podia fazer algo assim."
A protetora balançou a cabeça, compreendendo. Estava surpresa, mas isso lhe poupava as palavras e estava cansada demais para se entregar às lembranças naquele momento. Pousou as mãos na cintura de Marie, receando ser repelida.
— Todo mundo tem arrependimentos, tristezas e medos. Os meus se misturaram e me destruíram. Então, eu encontrei a Ordem; encontrei "você" e juntei os meus pedaços. Eu te amo, Marie! Quando estou com você, o passado não importa. Ainda que eu tenha responsabilidades para com o futuro.
"Eu não sou a mulher que você precisa." — Marie gesticulou sem muito vigor.
— Que bom, porque eu nunca "precisei" de uma mulher ou de um homem! — Virnan sorriu. — Sempre desejei encontrar alguém que fizesse meu coração bater forte, apenas por estar perto. Alguém que me trouxesse a calmaria com um olhar, que me aquecesse com um sorriso. Alguém cuja presença me dissesse que estou em casa. Você é essa pessoa, Marie. Independente de sexo ou idade, é assim que me faz sentir.
O silêncio ganhou espaço, enquanto a mestra deixava um véu de inexpressividade cair sobre a face. Contudo, seu interior revirava, inflamado pela declaração. Suspirou, amainando as emoções.
"Você insiste, porque sabe que não me terá." — Acusou.
— Insisto, porque você é um sonho adorável. — Virnan retrucou, erguendo as sobrancelhas um par de vezes, acompanhando o gesto de um sorriso maroto.
"Pare de me olhar assim. Não vou te beijar." — Marie declarou, resoluta.
— Mas está louca pra fazer isso — Virnan continuou provocando. — Meu beijo é gostoso, não é?
Marie bufou, mas não se afastou dela. O rumo que a conversa tomou quase a fez esquecer das revelações daquele dia e da tristeza que elas assentaram, de vez, em seu peito. Mesmo assim, aceitou as provocações, entregue ao bater forte do coração.
"Convencida! Você está passando dos limites outra vez! Eu não te amo dessa forma." — Mentiu. Mas não precisava ver seu reflexo nos olhos dela para saber que não conseguiria convencer nem mesmo uma criança.
— Eu não sinto sozinha, nunca senti, Marie. Te quis no momento em que a vi pela primeira vez. E você me quis, também.
Ela tinha razão. Na primeira vez em que a viu, Marie se deixou envolver por um sentimento estranho, cujo significado não alcançou no momento. Então, ergueu uma barreira para proteger-se disso, reconhecendo nela algo nocivo para si.
Mas Virnan, em pouco tempo, quebrou a sua rigidez. Durante os treinos, mantinha uma dedicação impecável, mas quando o dia encerrava, ela abria um sorriso largo e a envolvia em uma bolha de declarado afeto. No início, a mestra a achava irritante, contudo logo percebeu que aquela era sua maneira de encarar a vida, escondendo suas dores por trás do riso.
Então, quando o treinamento terminou, a amizade já era tão sólida quanto uma rocha e o amor já tinha se firmado em seu peito de ambas. Mas ele não tinha futuro e Marie contentou-se em tê-la por perto apenas como uma querida companheira.
— Nós cultivamos esse amor disfarçado de amizade por muito tempo, Marie. Finja que não é verdade o quanto quiser. — Virnan se afastou um pouco, tomando uma atitude sóbria. — Eu te quero, mas não posso te ter. Reconheço isso. Não é porque você insiste em me dizer "não" e, sim, porque não devemos e nem iremos ficar juntas.
Ela se afastou por completo, declarando:
— Quando esta viagem acabar, diremos adeus.
Marie lhe tomou o pulso. A ideia de nunca mais vê-la a atormentava há quase doze anos e essa dor tinha aumentado nos últimos dias com a proximidade da chegada à cidade dos eleitos e as diversas situações perigosas que enfrentaram pelo caminho até ali.
Aumentou a pressão, enfiando as unhas na pele dela, que não demonstrou incômodo. A puxou para um abraço apertado e aspirou o cheiro de relva nos cabelos úmidos. Não importava o que Virnan fizesse,eles sempre cheiravam daquela forma e Marie deu-se conta de que aquele também era o cheiro daquele lugar. Desde que entraram em Caeles, seus aromas a recordavam de algo familiar e só o tinha percebido naquele instante.
A mestra sabia que iria se arrepender disso, mas buscou os lábios dela, contrariando as próprias decisões. A verdade era que a queria com mais vontade do que poderia descrever. A cercou, trazendo-a para mais perto de si.
Deuses! Sonhava com aqueles lábios há muito tempo e sentia falta deles desde que ela a beijou na praia, no dia em que regressou com Petro à Ilha Vitta. Estava cansada de lutar contra aquele sentimento, de fingir que não perdia o fôlego sempre que ela a olhava daquele jeito provocante e devasso.
O beijo que trocavam era suave, carinhoso e completamente diferente da agitação de sentimentos que sentiam. Marie teria ficado dentro daquele sonho pela eternidade, se Virnan não tivesse se afastado, dizendo com uma expressão séria:
— Pelo menos uma vez, Marie, me deixe mostrar meu amor por você. Aqui, sob o céu de meus antepassados, na terra em que nasci.
Marie se perguntou como poderia recusar algo pelo que ansiava há tanto tempo? Ela também queria ter algo especial para levar consigo para as Terras Imortais ou qualquer que fosse o lugar para onde os espíritos seguiam após a morte. Seus olhos brilharam quando sorriu, curvando-se para tomar os lábios da guardiã, outra vez.
Ela não sabia como definir àquele momento. Talvez, a única palavra que cabia nele era: felicidade.
Contudo, isso deixou de importar instantes depois. O tempo que tinham era curto demais para que ela se deixasse perder em divagações e não tardou para a mestra se encontrar enroscada no corpo da guardiã, envolta nas carícias com as quais sonhava há anos. Ela entregou-se ao delírio, oferecendo-se para o desfrute dos lábios que amava e que percorriam sua pele traçando caminhos ardentes, entremeados por declarações sussurradas.
Elas se pertenciam. Estava escrito em algum lugar das estrelas que testemunharam o momento de amor e entrega que compartilharam.
***
— Tem certeza?
Fantin inclinou a cabeça algumas vezes para confirmar. Estava reunida com a grã-mestra e Alina a alguns metros adiante do acampamento, de onde Lorde Verne lançava olhares curiosos para elas. O homem não parava de andar em volta da fogueira, ignorando a conversa fiada de Fenris e Távio que tinham retornado da caçada com um javali, contrariando as afirmações que o jovem cavaleiro fizera na estalagem de Bantos de que aquele reino não tinha mais alimento, água ou caça.
Em verdade, desde que adentraram em Caeles não encontraram nada que não fosse semelhante aos outros reinos do continente. Talvez fosse a proximidade com a fronteira de Axen, se pegaram a discutir pela manhã. Concordavam que era provável que a situação não fosse a mesma no interior do reino e, por isso, Verne ordenou aos homens que fizessem uma caçada e colhessem frutas e castanhas comestíveis, assim como abastecessem os odres com a água do lago. Além disso, ainda possuíam parte das provisões que adquiriram nas vilas de Bévis.
— Foi o que ela me disse. — Fantin completou.
Alina descansou a mão no queixo, pensativa. Era um gesto que Mestra Fantin achava muito atraente, embora não tivesse nada de provocativo. A bibliotecária não se achava digna de seu interesse, desprezando seus próprios atrativos físicos. Contudo, não foi a beleza física que atraiu Fantin e, sim, as nuances da personalidade intrigante e alguns de seus gestos.
— Isso explica bem todo o conhecimento que ela possui sobre este lugar e magia, apesar de não poder usá-la. — A mestra dos escritos, concluiu.
— Diante de tudo que descobrimos sobre ela nas últimas semanas, imaginei que pudesse mesmo ser mais velha do que aparenta. Claro que, antes desta tarde, ainda acreditava que fizesse parte da lendária casta de assassinos. Contudo, imaginava que fosse apenas uma descendente e não uma florinae genuína. Ainda mais que fosse contemporânea ao Cavaleiro. — Expôs a grã-mestra.
Os pés de Mestra Fantin afundaram na terra úmida quando se recostou a uma árvore, displicente.
— Ela não disse isso. Só falou que não sabe a idade que tem. — Esclareceu. Entretanto, pensava o mesmo.
Os passos de Verne alertaram as ordenadas para a sua aproximação. Ele tinha um caminhar pesado, ainda que fosse mais leve e elegante que os dos outros soldados.
— Talvez queiram me inteirar do assunto — sugeriu ele, desconfiado.
Melina sorriu, afável.
— Falávamos do estado de saúde da Guardiã Virnan.
O badir cruzou os braços, interessado. Ainda não conseguia acreditar que aquela mulher pudesse pertencer a um povo lendário. Mas suas atitudes e conhecimento reforçavam isso a cada momento e ainda não tinha decidido se a interpretava como uma ameaça. Se tudo aquilo era a verdade, então por que nunca disse nada? Se o Cavaleiro havia destruído os floras, por que ela os estava ajudando a levar um sacrifício para ele?
Fosse amiga ou inimiga, precisavam tomar cuidado com ela.
— Acreditamos que amanhã poderemos prosseguir viagem. — Melina completou.
Ele fingiu acreditar que era disso mesmo que falavam. Não lhe escapou a mudança de atitude delas quando o viram se aproximar.
— Ótimo. E falando nela, por que está demorando tanto com Analyn?
— Marie — corrigiu a grã-mestra, recordando-o do pedido que a sobrinha lhe fez.
Ele se empertigou, repetindo o nome entredentes. Ainda estava engasgado com aquela conversa; o orgulho ferido. Contudo, havia decidido se manter distante da ex-noiva e concentrar-se na missão de levá-la, em segurança, até a cidade dos eleitos.
— Ela está aproveitando a privacidade para finalizar os curativos de Virnan. — Fantin informou.
— Apesar dos círculos de cura, não fomos capazes de deixá-la completamente sã. — Complementou Mestra Alina. — Alguns ferimentos ainda estão abertos e sangram também.
— Pensei que a magia podia curar tudo rapidamente — o lorde redarguiu, irônico. — Já vi vocês, ordenados, curando soldados quase mortos em campos de batalha.
Era verdade. Mas havia uma grande diferença entre curar os ferimentos de um não mágico e os de um mago. A grã-mestra esclareceu:
— Curar uma pessoa comum é bem mais simples, se comparado a um mago, seja ele ordenado ou não. Conseguimos visualizar as veias e órgãos com facilidade e isso torna o processo rápido e seguro. O mesmo não ocorre com um mago.
O badir afagou a barba, aguardando o resto da explicação.
— Os veios mágicos se misturam aos órgãos e veias comuns, dificultando o nosso trabalho. Gastamos uma grande quantidade de magia para encontrá-los e outro tanto para restabelecermos essas ligações. Por isso, os ferimentos causados a um mago demoram mais tempo para cicatrizarem. Virnan passou por um grande desgaste mágico em Bantos e depois foi torturada. Duas situações bastante danosas ao seu corpo, além disso, suas feridas eram profundas e infeccionaram adicionando outro fator complicador.
A mão dele deslizou para os cabelos. Os dias ao lado daquelas mulheres estavam lhe dando uma nova perspectiva sobre a magia. Reconhecia sua inocência naquele momento.
— Ela faz parecer que não é nada, mas está sofrendo. — Fantin afirmou. — Enfim, não se preocupe, Lorde. Marie desejava conversar com Virnan em particular e lhe garanti que teriam a privacidade necessária.
Sorriu, brejeira, e deu de ombros quando ele marchou de volta para a fogueira pisando duro. A grã-mestra o acompanhou, deixando escapar um suspiro cansado. Alina preparou-se para segui-los, mas Fantin a puxou para trás da árvore em que se recostava, roubando um beijo dos lábios grossos e rosados. Riu alto quando foi empurrada e deixada sozinha no esconderijo, então escorregou para o chão e continuou a vigília prometida a Marie, se perguntando se um dia Alina a olharia da mesma forma que ela e Virnan se olhavam.
** **
Marie abriu os olhos para fitar o céu, cuja noite já tinha se firmado. As estrelas brilhavam tímidas nele. Contudo, aquela que realmente lhe importava ressonava exausta de prazer entre seus braços. Sorriu para o firmamento, imersa na alegria que a tomava e que batalhava com uma tristeza equivalente.
Um dedo interrompeu a queda de uma das lágrimas que derramava. Afinal, Virnan não estava dormindo, de fato. Assim como ela, desfrutava do calor do corpo amado enroscado ao seu.
— Eu queria que fossem lágrimas de alegria, mas sinto sua dor e reconheço que é semelhante a minha. — Virnan declarou.
Levou algum tempo, mas Marie conseguiu gesticular com a mão livre:
"Estou feliz."
— Mas não é por isso que chora. — Virnan apertou-se contra ela.
Enxugou outra lágrima da amante e sorriu.
— Você me falou dos sonhos... Vi o modo como me olhou quando respondi a pergunta de Fantin sobre minha idade. Não ficou surpresa. — Deslizou o dedo até o queixo dela. — Você sabe quem e o que eu sou, não sabe, Marie?
A mestra assentiu, piscando para afastar as lágrimas. Depois de todos aqueles sonhos, havia um que não podia esquecer. Era o mesmo sonho que falou para Melina. Um sonho em que ela estava banhada em sangue após matar os invasores de uma vila. Aquele foi o dia do despertar da magia dela, o dia em que um espírito a escolheu para o que era tido como uma grande honra entre seu povo.
Marie ainda recordava o medo que o sonho lhe trouxe, a raiva, a tristeza, a surpresa. Eram todos sentimentos que pertenciam à Virnan daquelas lembranças.
Queria gesticular a resposta rapidamente, mas não desejava afastar-se dela para isso, então deixou a mão que tinha erguido cair e, mesmo sem a magia de Melina por perto, ousou falar:
— Você é aquele que chamam de Príncipe Vermelho. O Cavaleiro.
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