Fios de luz e união
*
Marie olhou para a tia que, assim como ela, aparentava estar desconfortável dentro das novas vestes. Lyla havia dado túnicas brancas para vestirem, enquanto aguardavam o retorno de Virnan e Fantin. O tecido, apesar de agradável, era muito fino e ligeiramente transparente.
— Você vê o futuro, então lhe pergunto: Conseguiremos fazer esse ritual? — A Grã-mestra perguntou, baixinho. Amarrou uma tira de tecido trançado na cintura e encerrou a troca de roupa.
Algum tempo se passou até que o spectu percebesse que falava consigo. Lyla tinha se distraído com os sentimentos que lhe chegavam através do laço que dividia com Virnan. Ergueu a vista para ela, que parou à sua frente na espectativa da resposta. Apesar da idade avançada, o tecido fino deixava à mostra carnes firmes e curvas que, dificilmente, poderia se esperar encontrar em uma idosa.
Melina repetiu a pergunta, aumentando a voz.
— A natureza da minha magia é tão rara quanto a de Virnan. Consigo manipular o tempo. Posso ver o passado e o futuro; este último, não muito além de sete dias.
Limpou a garganta e acomodou-se sobre um dos bancos à volta da fonte. Pousou o olhar em Marie, que auxiliava Tamar. A bibliotecaria vestia-se alheia à conversa, já que seus pensamentos estavam completamente voltados para Fantin.
— Mas você descreveu uma visão de séculos. — Melina recordou. — Viu o futuro de Virnan; por isso trabalhou para nos unir aqui. Não?! — A observou deslizar a mão pelos cabelos negros; a pele pálida refletia a luz que se projetava das paredes, dando-lhe um aspecto fantasmagórico. Certamente, falava e portava-se com a altivez de uma rainha, mas trazia no semblante a melancolia que, muitas vezes, enxergava nos homens que não eram capazes de esquecer as tragédias da guerra.
— O que vi foi o futuro deste mundo, não o dela. E isso só foi possível porque tentei lhe tirar a Pedra das mãos. Minha magia foi ampliada, assim como a dela foi no momento em que a usou. — Interrompeu-se por um instante, captando uma ligeira tristeza, através do laço com a irmã.
Por sua vez, Melina a encarava, imaginando como teria sido no passado. Seguramente, devia parecer-se com um "pequeno sol"; era assim que a mãe, em sua infância, lhe explicava como devia ser uma rainha. Obviamente, uma boa aparência impressionava, mas o que a mãe realmente estava falando era sobre a forma de agir e pensar em prol do seu povo. E diante de tudo que aquela mulher tinha feito, não havia dúvidas de que era uma verdadeira soberana.
— Na verdade, Melina, nunca tive controle sobre as visões do futuro. Elas simplesmente me assaltam nos momentos mais inconvenientes. — Sorriu, como se achasse aquilo engraçado. De fato, tinha sido em alguns momentos da vida. — Com o passado é diferente, afinal é imutável. Tenho acesso a ele quando toco objetos ou pessoas, mas posso controlar quando e como irei vê-lo.
Fez nova pausa, prendendo a atenção em Marie, que havia se juntado a tia.
— O que vi a respeito de vocês, pode ser considerado apenas impressões. A magia oferece sempre duas visões; se quiserem entender assim.
Descansou o queixo na mão. O gesto a fez parecer ainda mais jovem do que seus traços demonstravam.
— Como disse antes, o futuro muda a cada vez que se olha para ele. Então, a segunda visão se trata apenas de possibilidades; imagens desconexas e borradas. Mas a que tive foi suficiente para entender que havia uma chance de impedir o fim de Domodo e os outros mundos.
Apertou os olhos, enquanto Melina fazia a gentileza de traduzir os gestos da sobrinha.
— Então, você não tem ideia se tomou as decisões corretas, nem se conseguiremos realizar esse ritual.
— É uma verdade inconveniente. — Admitiu; a ironia presente em cada palavra. — Ver o futuro nem sempre significa que se pode mudá-lo. Pode-se influenciar alguns eventos e eles mudarão o futuro que ainda não se firmou como absoluto. Mas se o destino já estiver estabelecido pelas forças que regem este mundo, tudo o que foi feito até este momento não passaria de uma tentativa vã de adiar o inevitável.
Por um breve momento, o medo de que isso se tornasse verdade a abateu, fazendo-a curvas os ombros levemente. As companheiras perceberam seus sentimentos e os olhares buscaram o chão, carregando as mesmas dúvidas que lhe assaltavam.
— Se soubessem que uma tragédia está para acontecer, não tentariam impedir?
— Com toda a certeza! — Foi Tamar à responder; finalmente, dedicando a atenção a elas.
O espírito lhe sorriu, como Virnan costumava fazer quando sua resposta a agradava.
— Pois bem; foi o que fiz! A visão mais sólida desse futuro alternativo, foi Virnan empunhando a adaga, acompanhada por pessoas cujos rostos não pude ver, mas consegui sentir a magia.
Tamar sentou a mão no queixo, erguendo as sobrancelhas e enrugando a testa. Seu nervosismo era evidente e a tentativa de ocupar a mente com outra coisa, que não Fantin, era óbvia.
— Poderia ser apenas uma visão do passado, já que a tocava naquele momento. — Observou.
Afinal, ela não estava tão alheia à conversa como fez parecer. Buscou assento em outro banco, cruzando as pernas em seguida.
— Você está correta, Mestra. Contudo, havia uma diferença importante.
— Qual?
— Os cabelos dela eram longos e jamais os vi assim, até alguns dias atrás. Quando nos conhecemos, ela já usava eles curtos. É uma tradição entre o nosso povo, que os nossos mortos levem algo das pessoas que os amam. A mãe dela adorava seus cabelos, então Virnan os cortou e os queimou na mesma pira que consumiu seu corpo. Além disso, havia a adaga, que ela só recebeu quarenta anos depois. Diante disso, não tive dúvidas do que fazer, ainda que tenha sido doloroso executar o plano que elaborei com Joran.
Novo silêncio as envolveu, mas logo foi cortado por Tamar.
— Foi assim que nos escolheu?
A pergunta pareceu sem sentido para as outras duas, mas Lyla compreendeu ao que se referia de imediato.
— Sim. Usei as impressões que tive em minha visão como base para encontrar vocês. Eu passei muito tempo "adormecida" naquela adaga. Quando Maxine a roubou, sua magia ainda era insignificante e séculos se passaram até que se tornasse forte o suficiente para me despertar. Mesmo assim, ela não podia me enxergar.
— Então, como aconteceu?
— Érion deu um amuleto a Ilan e em uma noite ele presenteou a irmã com ele. A magia dela foi ampliada e, para a minha alegria, ela pôde me enxergar.
Havia muito mais coisas por trás dessa história. Não foi tão fácil convencer Maxine a ajudá-la. Querendo ou não, Ilan era seu irmão e única família. Compreendia os sentimentos dela perfeitamente, contudo não se importou em destruí-la um pouco para alcançar seus objetivos. E, no fim, a aliada a agradeceu por isso, enquanto sua vida se esvaia na câmara em que Virnan havia sido aprisionada.
— O que acontecerá quando abrirmos os Portões?
— Todos os espíritos que se abrigam neste local serão atraídos para as Terras Imortais.
— Mas isso nos deixa com outro problema. — Desta vez, foi Tamar a traduzir os gestos de Marie. — Vocês disseram que essas tais "sombras" que transitam entre os mundos fazem parte da fonte de poder do Cavaleiro. Abrir os Portões significa deixá-los entrar em Domodo e, assim, dar mais poder a ele.
— Virnan chegou a mesma conclusão, mais cedo, e temo dizer que não há outro jeito. Três mil anos foi tempo demais para mantê-los fechados. Sinceramente, não imaginava o alcance daquela magia quando a conjurei. Mas precisamos abrir os Portões; a cada dia que se passa, Érion fica mais forte e mais próximo de derrubar as proteções que ergui. A alma de Marie iria, com toda a certeza, ajudá-lo a concluir o amuleto que está fazendo.
A mestra se endireitou sobre o banco e olhou para a tatuagem na palma da mão.
— Se Érion conseguir acesso a cidade, jamais conseguiremos derrotá-lo. Terá muitas almas para alimentar o seu poder.
— Gosto menos ainda da outra possibilidade — comentou Melina. — Se abrirmos os Portões, significa que a proteção que conjurou em volta da cidade chegará ao fim. Certo?
— É verdade. Assim que os Portões se abrirem, estaremos indefesos contra o meu irmão.
**
Marie mordeu os lábios, enquanto as bochechas ardiam ante o olhar, nada inocente, que recebeu de Virnan. Um sorrisinho devasso imperava nos lábios dela. Obviamente, as companheiras perceberam e seu desconforto aumentou, junto com o rubor. Durante toda a vida, somente a guardiã conseguiu lhe causar aquele efeito constrangedor com apenas um olhar. Era irritante, mas ao mesmo tempo era gostoso se sentir daquela forma.
Pare com isso! Ordenou, fingindo-se irritada.
A esposa deu de ombros, respondendo da mesma forma:
Não posso evitar. Você é linda demais!
Ali perto, Tamar captou a mensagem e escondeu um sorriso, voltando sua atenção para Fantin. Esta, por sua vez, ainda se mostrava incomodada com o que estava prestes a acontecer. Seu medo era quase tão transparente quanto às túnicas que usavam. Aproximou-se devagar e sentou a mão no braço dela.
— Não há nada que você tenha feito que possa destruir o amor que lhe tenho — falou.
Nem ela, nem Virnan, falaram sobre a conversa que tiveram ou os motivos que levaram a mestra a se negar, inicialmente, a fazer o círculo. Mas a escriba não era tola. Conhecia o passado de Fantin, ainda que não tivesse detalhes — na verdade, não os queria — e sabia que ela se envergonhava dele. Não foi difícil deduzir seus motivos.
Fantin tremeu ante o seu toque. Sorriu, sem graça, e largou-se dentro do abraço dela até ouvir Virnan pular dentro da fonte, espalhando água para os lados de uma forma nada graciosa.
— Venham — ela chamou.
Na água, as túnicas ficaram ainda mais transparentes e as tatuagens da guardiã tornaram-se visíveis à todas. Ela circulou pela fonte, posicionando-as sobre pequenos círculos no fundo dela, que estava repleto de símbolos antigos.
— Por que na água? — Fantin quis saber, concentrando sua atenção na curiosidade — que não tinha, de fato — para não ter de pensar muito no que viria a seguir.
A guardiã respondeu, conduzindo Melina para um círculo ao lado daquele que Tamar ocupava:
— Pelo mesmo motivo de que círculos de cura são mais eficientes na água. Ela irá aumentar a força da nossa magia, assim como este salão. Notaram que ele é circular? — Abriu os braços, abrangendo tudo à sua volta. — Nós estamos dentro de um círculo de Cazz. Este é um dos poucos lugares em Flyn, construído sobre um veio mágico, o que reforça o ritual.
A ausência de empolgação na voz dela chamou a atenção. Contudo, ninguém teceu comentários.
— Agora que falou... o que é Cazz? — Melina aproveitou a deixa do silêncio. — Vocês falam nisso o tempo todo. Salão de Cazz, Círculo de Cazz...
Na borda da fonte, com os braços cruzados, Lyla explicou:
— Cazz é o nome do primeiro Círculo Castir. Foi ele que pôs fim à guerra entre Enaens, humanos e espíritos, e ergueu o véu entre os mundos.
Tamar franziu a testa, como se estivesse prestes a fazer uma pergunta, porém desistiu. Aquele dia já tinha lhes dado muito em que pensar. Abanou a cabeça, afastando as ideias que lhe ocorriam e surpreendeu-se quando a guardiã lhe disse:
— Você deve começar, Tamar.
A bibliotecária empertigou-se, olhando para o círculo que ocupava; a água deformava a visão dos pés, mas era possível divisar três linhas onduladas no centro dele. Um símbolo de referência clara ao líquido que as cercava.
— Por quê?!
Virnan tomou lugar em um quinto círculo. Levou uma pequena quantidade de água até a face e lavou-a, como se estivesse a apagar a apreensão que a tomava. Pelo contrário, ela só aumentava.
— Sua magia é fluida como a água. Com certeza, este é o seu elemento.
Passou a mão, retirando o excesso do líquido que escorria sobre os olhos. Arrastou os cantos da boca para o alto, deformando a face em um sorriso tranquilo e confiante; coisa que não sentia, realmente.
— Reparei nisso durante nossa missão em Niramar, alguns anos atrás. Essa percepção foi reforçada quando me curaram naquele lago. Você reforçava a magia das outras, retirando poder da água em que nos banhávamos. Reparei em muitas coisas ao longo dos anos, mas nunca me ocorreu a possibilidade de que tivessem magia espiritual até o ataque das sugadoras.
O rosto da mestra contorceu-se em uma ligeira careta e ela estremeceu com a lembrança das criaturas e da morte. A Castir ergueu a face para o alto, constatando que a lua ainda não estava sobre elas. Algumas horas iriam se passar até lá, mas ainda tinham muito a fazer.
— Normalmente, este ritual não é feito na água, mas como será nossa primeira tentativa, Lyla e eu concordamos que seria o mais indicado.
— Devemos entender que cada uma de nós ocupa um círculo referente ao elemento da natureza com o qual nossa magia mais se identifica? — Tamar insistiu.
— Exatamente! — Lyla respondeu, caminhando pela borda da fonte. Parecia ansiosa, mais que a própria Virnan. — Você ocupa o círculo da água. Melina ocupa o círculo do fogo, Marie o da Terra e Fantin o do ar.
Pequenas ondulações se espalharam pela fonte quando Fantin ergueu a mão, fixando-a por alguns segundos, aparentando ter algo a dizer, mas nada sonorizou. Ela ergueu a face, fitando Melina por um instante. Fazia sentido que ela ocupasse o círculo do fogo, pois recordava a forma como a Grã-mestra gostava de brincar com as chamas das velas de sua biblioteca particular; muitas vezes, dando formas a elas. Quanto a Marie, sua afinidade com a terra era perceptível sempre que necessitavam entrar em uma disputa, como ocorreu durante o embate contra Loyer ou quando conjurava um dos círculos que Virnan lhe ensinou; eles sempre se espalhavam e erguiam diretamente do chão.
A princesa indagou para a esposa:
Que círculo você está ocupando, se Fantin é o ar?
— O Espiritual. Como uma Castir em meio a Castanes, como vocês, tenho de assumir esta posição.
As sobrancelhas de Marie se arquearam.
Nossas respectivas magias despertaram há muito tempo. Não compreendo como só pudemos enxergar espíritos a esta altura da vida. Observou. Baixou a vista para as linhas luminosas do círculo que ocupava.
Por um breve instante, o rosto de Virnan transfigurou-se em incertezas, mas elas desapareceram assim que começou a responder:
— Pensei nisso por algum tempo e a conclusão mais lógica é que eu "toquei" vocês. — Os dedos traçaram linhas imaginárias na superfície da água. — No navio, por algum tempo, estivemos conectadas enquanto tomava a magia de vocês emprestada. Com Tamar, aconteceu durante o momento em que sua alma retornava ao corpo. Estou certa, Lyla?
O spectu lhe sorriu, cruzando as mãos às costas.
— Creio que sim. Apesar de breve, esse contato despertou o poder adormecido. É provável que, se isso não tivesse acontecido, vocês jamais o despertassem.
Aguardaram novas perguntas, mas as outras pareciam estar satisfeitas ou, mais provavelmente, saturadas após tantas informações. Elas mantiveram o silêncio, dedicando uma severa concentração à Virnan, que deu uma volta em si mesma, verificando se tudo estava preparado para iniciar o ritual. Franziu o cenho para a lua, cuja fraca luminosidade já podia ser avistada através da abertura.
— Quando a lua estiver alinhada com este salão e círculo, devemos estar em harmonia com nossas respectivas magias e mentes. — Voltou a ficar de frente para elas.
— E se isso não acontecer? — Melina quis saber.
A tristeza que lhe tomou a face era uma resposta mais sincera do que palavras poderiam dar. Todavia, sorriu de forma despreocupada, dizendo:
— Então, poderei atirar na cara daquela deminara atrevida, que é uma péssima vidente.
Aprumou-se, afastando o azedume que lhe chegou ao paladar ante a ideia de mais uma vez falhar naquele ritual.
— Tamar, irei lhe ensinar as palavras e os movimentos, em seguida será Melina, depois Marie e Fantin. Por fim, eu. Necessita ser feito nesta ordem.
— Algum conselho? — Melina indagou.
— Definitivamente, acho que sou a pessoa menos indicada para aconselhar sobre isso. — Pareceu sem graça. — Só não esqueçam de que não devem temer as verdades de seus corações. Não temam as opiniões de suas companheiras e aceitem-se. Creio que será o bastante.
Fixou Fantin e os olhos desta lhe fugiram por alguns instantes, mas retornaram, resolutos. A mestra estava decidida a ir adiante. Virnan traçou movimentos suaves no ar; Tamar analisou-os por um instante longo, interpretando seu significado. A ouviu com atenção, memorizando cada palavra. Só então, as reproduziu, assim como aos movimentos.
A cada palavra dita, a cada gesto traçado, a sua visão nublava. Piscou algumas vezes para afastar aquele incômodo, mas em vez de sumir, ele aumentou. De repente, foi perdendo a noção de onde estava. Ainda sentia a água e a ouvia correr pelos veios no chão, percebia a brisa que a circundava, mas era como se estivesse ausente se seu corpo.
A sensação desapareceu e viu-se, então, no centro do círculo, confusa sobre como tinha chegado até ali. Não se recordava de andar até lá. As inscrições no fundo da fonte brilhavam suavemente, assim como as paredes da borda, onde Lyla caminhava lançando olhares aflitos para elas.
Girou sobre os calcanhares e percebeu que, de fato, estava ausente de seu corpo, que permanecia de pé, sobre o círculo da água entre Virnan e Melina. Fios de luz, dourados, a envolviam parcialmente. As pontas se espalhavam como raízes sob a água.
Observou as fisionomias de surpresa das amigas, que misturavam-se a sua própria, e a satisfação da Castir, onde um sorrisinho imperava nos lábios. Vozes cresceram em seus ouvidos, oriundas do passado. Trouxeram consigo medos e desejos antigos, e estes se apossaram de seu peito. Dos fios de luz, imagens da sua vida se projetaram e seus pensamentos mais íntimos ribombavam pelo lugar.
Viu-se criança, depois adolescente. Sentiu a ansiedade de quando foi apresentada a princesa. Encontrou-se nos passos dela. Recriou-se quando foram juntas para a Ordem. Apaixonou-se pelos livros e conhecimento. Foi acometida, novamente, pelo descompasso do coração ao encontrar Fantin pela primeira vez.
Era como se estivesse presenciando seu passado pelo olhar de outra pessoa, contudo também revivia cada emoção e pensamento que a tomou.
Nas imagens, os anos passavam rápido. Na Ordem, encontrou sentido para os seus passos e o objetivo nobre de salvar a vida da princesa que era sua amiga. Contudo, sentia-se só, incompreendida, uma estranha em si mesma.
Eram sentimentos muito fortes; coisas que jamais pronunciou.
Teve receio de que soubessem daquilo, recuou, fechando-se em si mesma, como fez por toda a vida. Então, recordou as palavras de Virnan sobre aceitar-se. Fitou-a por um instante longo demais, admirando o calor em seu riso. De alguma forma, podia sentir que ela a compreendia e o mesmo se passava em relação as outras.
Decidiu-se.
Foi difícil e lhe pareceu que transpunha uma barreira quase física quando abriu-se, de vez, para as amigas. Subitamente, ao fazer isso, foi invadida por um sentimento de paz que beirava a imaginação de tão intenso e gratificante. Era a sua vida, suas boas e más experiências, seus passos até se tornar a mulher que estava diante delas e não temia mais que vissem aquilo.
Uma ligeira vergonha a tomou quando as lembranças do Festival de Mirdes se fizeram presente e viu-se nos braços de uma estranha mascarada por uma noite inteira, desejando que ela fosse a mulher dos seus sonhos mais íntimos e, quando o dia chegou e a verdade de que realmente esteve com ela se fez saber, achou que fosse morrer de tanta felicidade.
As lembranças passavam cada vez mais rápido à medida que se aproximavam do momento atual. Reviveu cada instante da viagem até ali e, repentinamente, estava no mesmo quarto em que horas antes amou e deixou-se amar por Fantin, entregue a uma alegria sem tamanho e chorando de felicidade enquanto ela dormia em seus braços.
E, assim como surgiram, todas essas lembranças, sentimentos e impressões sumiram. Em um piscar de olhos foi arrastada de volta ao seu corpo. Os fios de luz que a envolviam tinham crescido e deslizado pela superfície líquida, enlaçando cada uma das companheiras.
Com um gesto discreto, Virnan apontou para Melina e esta imitou cada um de seus movimentos com precisão, revelando-se para elas. Ao contrário de Tamar, a Grã-mestra não teve um momento de dúvida. Permitiu, sem receios, que elas conhecessem seus passos até ali. Foi, novamente, a criança que idolatrava a mãe e o irmão mais velho. Depois, a adolescente que não parava de chorar por ter sido eleita. Reviveu o medo do sacrifício e o seu resgate; os dias ao lado de Maxine, imersa em dúvidas sobre o futuro, mas decidida a continuar viva enquanto cuidava da sua salvadora ferida e aprendia a amá-la, ainda que não tivesse conhecimento disso.
Sentiu o mesmo descompasso no peito, sempre que se encontrava na presença de Andrus. Foi acometida, de novo, pela confusão de sentir-se atraída pelos dois. Deixou que lágrimas terrivelmente dolorosas banhassem seu rosto ao saber da destruição de Caeles e da provável morte de Maxine. Reviveu a vida pacata ao lado de Andrus, as ascensões à cada círculo da Ordem, a felicidade de conhecer Marie, o medo de perdê-la no sacrifício, a dor da morte de Andrus e as muitas dúvidas que lhe assaltaram pelo caminho até ali.
A vez de Marie chegou e com ela seu rancor pelo modo como o pai tratava a mãe, a dor da morte precoce desta, o carinho que dedicava a irmã caçula, a tristeza e medo pela eleição e a decisão de afastar-se de Midiane e passar seus últimos anos na Ordem. A princesa reviveu os dias tranquilos na Ilha Vitta até a chegada de Virnan e o modo como a moça abalou sua paz no instante em que a conheceu e, também, a tristeza que a tomava por não poder viver o que sentia.
À medida que essas imagens passavam diante de seus olhos, percebia o quanto o destino era cheio de surpresas e sorriu largo perante a lembrança da noite em que recitou, inocentemente, palavras de união, sem imaginar que estava a se casar.
Fantin engoliu em seco quando sua vez chegou, mas repetiu o ritual das outras e todas puderam conhecer as tristezas que seu peito carregava. Em alguns momentos, receou ir mais fundo e deixar que a verdade se revelasse para elas. Contudo, em cada uma dessas vezes, seus olhos cruzaram com os de Virnan e as lembranças da conversa que tiveram antes do ritual lhe ofereciam sustento para manter-se firme até o final e foi com alívio que percebeu que ele tinha chegado.
Reticente, Virnan recitou as palavras sagradas pela última vez. Se abriu para elas e lutou contra o desejo de bloquear suas lembranças como fizera no passado.
Deixou que vissem e sentissem sua tristeza quando a mãe morreu, coisa que jamais permitiu que àqueles que lhe eram próximos, na época, percebessem. Mostrou seu desagrado por servir ao Demir, o carinho por Lyla, as tristezas da guerra, o surgimento da magia...
Estava indo bem, era o que se repetia sem parar. Mas, por um breve e angustiante momento, passeou o olhar entre os rostos amados daquelas mulheres. Aquele velho e incomodo sentimento, que tantas vezes a assaltou durante as tentativas frustradas, de realizar esse ritual com o Círculo do Trovão, despertou e revolveu-se em seu íntimo. Ele cresceu se tornando sufocante, aterrorizante e trazendo consigo uma dor física.
** **
Verne passou a mão no rosto, afim de afastar o cansaço da noite insone. Estava recostado em um pilar e sentado sobre a balaustrada, mirando o sol que começava a se erguer. Seu humor estava ácido e ficou pior quando o olhar encontrou Fenris, parado junto a Távio em frente as portas do salão, tão imóveis quanto os três espíritos diante deles.
Pouco tempo após saírem do salão, o rapaz lhe pediu para falar. Achou o princípio da conversa estranho, em se tratando dele, mas lhe concedeu a liberdade que pedia e a primeira frase que ouviu inflamou seu humor, deixando claro o que estava por vir.
"— Com todo o respeito que lhe devo, meu Lorde, peço desculpas pelo que estou prestes a dizer, mas você é um idiota!" Assim começou o cavaleiro, para em seguida lhe falar sobre Emya e Marie, enfatizando suas atitudes nas últimas semanas.
Era terrível perceber que os outros conseguiam lhe compreender muito mais que ele mesmo. Seu orgulho estava "chamuscado" pelo calor das palavras inflamadas do amigo, mas elas também lhe abriram os olhos, assim como tinha ocorrido no dia em que Virnan lhe atirou verdades na face, naquela estalagem. A guardiã insistia em chamá-lo de cego e quanto mais recordava a dureza das palavras de Fenris, mais inclinado ficava a concordar com isso.
Cofiou a barba e saltou para o chão. Um arrepio lhe percorreu a nuca, como sempre acontecia quando algo ruim estava prestes a acontecer. De fato, poucos segundos se passaram até que a premonição se tornasse verdade.
O som de dezenas de passos e gritos se elevaram, rasgando a calmaria do lugar. Voltou-se, já com a espada em mãos, e deparou-se com uma dúzia de homens a invadir o corredor. Nova gritaria, às suas costas, deu-lhe a certeza de que o mesmo acontecia no fim do corredor.
Um sorriso cruel partiu seus lábios. Já não conseguia mais se surpreender com a capacidade de Virnan em prever certos acontecimentos. Lyla tinha declarado que foram traídos, quando tentou ajudar a Castir no passado, então era quase certo que os, nada amigáveis, recém-chegados faziam parte do grupo de traidores e aliados do Cavaleiro que permaneceram ocultos na cidade por todos aqueles séculos.
Sua espada chocou-se com a do primeiro invasor e isso foi suficiente para que percebesse que não tinha a menor chance de vitória, afinal o homem, além de guerreiro, também era um mago. Verne foi lançado no ar por uma barreira invisível e caiu aos pés de Voltruf. A mulher olhou para ele com uma mistura de raiva e desprezo, então o arrastou para fora do caminho, recostando-o junto a parede.
— Humanos! São tão frágeis! — Ela resmungou e afastou-se.
Verne quis gritar com ela; mandá-la enfiar aquele orgulho deminara em um lugar ofensivo, mas baixou a vista para a espada que ainda segurava e descobriu que estava partida. A percepção chegou junto com uma dor atroz e deu-se conta de que sangrava fartamente através de um corte transversal no peito.
— Merda! — Rosnou, obrigando-se a ficar de pé e retornar para a luta. — Odeio magia!
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