Reino da Névoa
A troca de guardas era feita perto da meia noite, porém, não tinha um horário fixo – variando entre poucos minutos até uma hora inteira após as 24h00. Sem dúvida, tratava-se de uma estratégia para impedir que observadores externos assimilassem a rotina, e que isso viesse facilitar possíveis invasões.
Apesar dos horários variados, havia um padrão. Todo protocolo de segurança possuía um. Bastava identificá-lo e o sistema cuidadosamente engedrado ruía como um castelo de cartas. Entretanto, eu não me desapontei com o nível de segurança do execrado; a fortaleza era um arranha-céu situado em pleno centro financeiro de São Paulo. O local era extremamente protegido pelos Sopros da Morte, como ficaram conhecidos os dissidentes de sua tropa de elite. Eram os equivalentes aos protetores de Adriano.
Eu estava acomodado no alto do edifício vizinho - com três andares a mais do que aquele. Baixei o binóculo de alta precisão e consultei o relógio, esperando que o protocolo de segurança dos sombrios tivesse início. A minha rotina se repetia nas últimas cinco noites em que eu vigiava seus movimentos. Desta vez, porém, havia uma diferença. Eu havia decifrado a última parte do esquema. O que significava que o execrado não estava tão protegido quanto imaginava - ou talvez ele não esperasse que alguém se atrevesse a atacá-lo.
Está na hora!
Chequei a direção do vento e em seguida, desci pela canaleta até o patamar imediatamente inferior ao meu. Fixei os parafusos e lancei o cabo para o outro edifício, prendendo-o de ponta a ponta, então comecei a travessia... Sob meus pés, o abismo entre os dois edifícios. Se eu olhasse para baixo - o que não pretendia fazer - veria os carros se movendo para cima e para baixo como pequenos insetos luminosos na escuridão.
O edifício à minha frente tinha setenta e oito andares e era todo revestido em vidro e aço; as janelas panorâmicas ao longo da estrutura espelhavam minúsculos focos de luz capturados a esmo. Sua cúpula pontiaguda avolumava-se diante dos meus olhos à medida que eu me aproximava. A fachada do colosso escuro se recortava contra o céu estrelado. Um símbolo moderno de um poder mais antigo que a raça humana... Conjecturas supérfluas, já que o meu alvo era tudo o que aquele edifício representava para mim.
Mas devo reconhecer... As linhas arquitetônicas da construção pareciam espelhar o comportamento arrogante e evasivo de seu dono e senhor, tanto quanto as misteriosas atividades que ocultavam seus verdadeiros interesses.
Nifheim Corporation Center. O reino da Névoa sob o capuz do capitalismo corporativo. Nome interessante. Apropriado para o local que serve de fachada àquele nebuloso grupo financeiro. Sua sede pertencia a um holding ainda mais obscuro, comandado pelo CEO Cam Paterson.
Camulus: o execrado. Filho único de Janus Patter e Lâmia...
Uma pessoa comum talvez conhecesse sua biografia, disponível na internet. Para qualquer um saber... Executivo de sucesso, envolvido em vários negócios da Bovespa, Wall Street, Dow Jones... Um brilhante estrategista financeiro.
Aquela era a biografia oficial para os humanos, pois os sombrios conheciam a verdadeira história: Camulus era filho de Janus Pater, o implacável, e de Lâmia, a sanguinária. Desde o desaparecimento dos primeiros, tornou-se líder do que sobrou dos dissidentes. Portanto, era o inimigo de morte do rei - a quem a sociedade sombria chamava pelo título honorífico de cahill.
Assim como Adriano, o execrado também descendia diretamente dos primeiros. E por isso, considerava-se no direito de reclamar o trono ocupado pelo cahill. Adriano era o filho do poderoso Lugh com uma humana de linhagem real. Pelo fato de Adriano ser "mestiço", Camulus considerava-se o único descendente de sangue puramente sombrio.
O execrado agia por toda a parte; incansável em perseguir seu objetivo. Sem nomes nem rostos, ele tinha súditos infiltrados entre os mantos amarelos e os próprios seguidores do cahill. Se a informação que eu dispunha estivesse correta, ele vinha movimentando o submundo. Já teria até corrompido um alto posto na hierarquia da Muralha, a sede do império sombrio. Dizem que ele está em vias de conquistar outro importante membro da corte de Adriano, alguém ainda mais elevado.
Acontece que você não é o único a ter os seus informantes, Camulus. Eu também tenho os meus... E eles estão muito mais interessados em manter as gargantas longe da minha espada. A espada que roubei de dentro de um de seus esconderijos mais secretos. A única arma feita de um metal muito raro, forjada para decapitar o cahill.
Ah, sim... O execrado faria qualquer coisa para reavê-la. Eu só lamentava que, na ocasião, não consegui capturar Camulus. E nem esse belíssimo e mortal artefato que me acompanha desde então pode aplacar a minha frustração.
De lá para cá, a espada tem sido muito útil em minhas caçadas. Decidi que serviria ao propósito original depois que eu cortasse a cabeça de seu primeiro dono. Se dependesse de mim, a espada seria o instrumento de seu derradeiro, glorioso, e incendiário fim.
Justiça poética. Justiça de Deus.
** *
Alcancei a amurada do terraço dividido em dois, ao redor da cúpula pontiaguda. Saltei sobre o parapeito e rolei pelo chão... Em seguida, girei o corpo em busca de um local para me esconder dos vigias - onde eu estava, tornava-me um alvo fácil... Colei as costas na parede e esperei, enquanto um dos guardas contornava a parte oeste do terraço. Aproveitei aqueles segundos preciosos para checar meus apetrechos e armas, dentro da mochila.
Eu os havia selecionado cuidadosamente. A maioria servia à finalidade de perturbar os sentidos dos sombrios; deixá-los paralisados ou tontos por alguns instantes – e qualquer instante era suficiente para que eu pudesse agir.
Olhei ao redor. Estava perto de entrar em ação; uma vez que tivesse começado nada mais me deteria. Minha boca se curvou - mais num esgar do que num sorriso de triunfo. De novo, tive uma sensação estranha. Quase um pressentimento. Estava sendo fácil demais... Eu tive muito tempo para me aperfeiçoar, enfrentei os melhores... Só faltavam dois confrontos realmente desafiadores. Um deles aconteceria esta noite, e eu ansiava por uma luta difícil.
Sim, um combate regrado pela "somafera"... Cortaria a minha carne, mas em contrapartida, eu tiraria a vida repulsiva de meu adversário, lenta, dolorosamente... Mais um elo a ser rompido na opressão que os sombrios exercem sobre a humanidade. Mais um passo para que eu enfim recebesse o perdão de Deus.
Ainda pensando na glória inspiradora da batalha, saltei de um piso a outro em sentido descendente. Meus passos não produziram barulho. Mas eu sabia que agora estava "furando" o perímetro deles. E considerando que detinham a capacidade de detectar qualquer som, por menor que fosse... Era questão de segundos para que me detectassem.
Isso não me preocupava, em absoluto, tendo em vista que o meu dispersor de sons estava tão afinado quanto o violino de um músico virtuoso.
Enquanto eu passava por trás e abaixo dos guardas, eles pareciam moscas atarantadas movendo-se em diferentes direções. Eles tentavam detectar a origem dos sons que deveriam ter vindo de mim, mas que foram espalhados a esmo pelo pequeno aparelho que eu carregava.
Deslizei até a borda da gigantesca claraboia, a fim de espiar o que havia dentro da área da cúpula... Não demorei a avistar um grupo de sombrios posicionados numa espécie de grande círculo - no melhor estilo Stephen Cahill. Eles pareciam controlar o ambiente enquanto outro grupo menor conversava dentro do espaço amplo; parcialmente dividido por telas muito longas - as quais pareciam projetar informações originadas off e/ou online. Não saberia dizer... A única certeza que tive é que Camulus dispunha de computadores centrais, mainfraime. Imagens se moviam dentro daquele formato de tela que ia do alto até quase o chão. Um de meus informantes me disse que havia um auditório semelhante a este na sede do Conselho, dentro do complexo da Muralha. Só que numa escala muito maior.
Difícil foi compreender o motivo daquela reunião... A não ser que eu invadisse a sala... O que eu pretendia fazer logo mais. Não agora... Se fizesse agora, não descobriria o que estava acontecendo. Apoiei o corpo em ambos os braços e me inclinei um pouco mais. Havia uma mulher oriental entre eles. Apurei meus ouvidos para tentar ouvir a conversa.
-Está me dizendo, com todas as letras, que Adriano enlouqueceu? – O homem andava vagarosamente em torno dos outros, com as mãos às costas e uma expressão um tanto pensativa no rosto severo. – Está me dizendo, com todas as letras, que a triste história se repetiu?
As perguntas me soaram retóricas. E seu tom não revelava pesar pelo que dizia. Pelo contrário, o sujeito de rosto severo que eu logo identifiquei como sendo Camulus, via nas informações a brecha pela qual vinha ansiando por tantos anos. Brecha que eu via como proveitosa aos meus próprios interesses – a fraqueza de cahill Adriano tinha o nome de uma mulher humana. Este novo elemento na ordem das coisas estava sendo servida, agora mesmo, numa bandeja de prata pelas mãos de... Espere! Aquela era nada mais nada menos que Ásia Chadwick – a ex-amante do rei.
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