JONATHAN GIBBS: O grito dos mortos
-A medicina, senhoras e senhores, é constituída por um conjunto de conhecimentos técnicos maiores do que qualquer um de nós, nesta sala. Maior do que o médico aparamentado por seus instrumentos de trabalho, na Sala de Emergência, ou entrincheirado no consultório... E, definitivamente, maior do que qualquer equipe multiprofissional circulando pelos corredores de um hospital.
O Dr. Christopher Shaw caminhava lentamente pelo palco, sabendo que seus alunos o ouviam com total atenção. Ele era o professor mais temido entre os estudantes de medicina - fossem calouros, ou formandos. E lá estava ele - o filho da mãe - com um sorrisinho misterioso pairando nos lábios finos... Curtindo alguma piada secreta. Vamos combinar que ele gostava mesmo de ocupar o posto mais alto do terrorismo, dentro do corpo docente da Universidade da Muralha. Especialmente quando o assunto era assustar os calouros.
Eu particularmente acredito que ele tem um método. Método de eliminação, que fique bem entendido! O procedimento padrão de Shaw era rastrear, localizar, e afugentar os alunos que ele achava que não aguentariam a pressão. E se depois de tudo, os tolos ainda não percebessem que não estavam à altura do nível esperado por ele, Shaw os reprovava. Mas era não era comum chegar a este ponto, pois geralmente os próprios estudantes desistiam. Não aguentavam o estresse, a cobrança, e a avaliação constante.
Era um método cruel – a quantidade de calouros desistentes aumentava significativamente quando o supervisor do programa era ele. Mas, tenho que reconhecer que funcionava. Metade da minha concorrência para um estágio, no futuro, seria eliminada graças aquele carrasco...
Shark Shaw (como foi apelidado por uma das turmas anteriores a nossa) era o dono absoluto do programa de pré-admissão ao curso de Medicina.
-A ciência médica não chegou até aqui unicamente pela boa vontade de salvar vidas. – Ele prosseguiu, em seu tom grave e monótono. - Sim, é o que todos nós sempre almejamos. Mas para salvá-las, hoje, foi necessário que muitas vidas se perdessem no passado. Os fins justificaram os meios.
O impacto da última frase arrancou alguns murmúrios de desaprovação, principalmente por causa do tom indiferente com que foi proferida. Mas parece que a reação dos alunos apenas serviu para diverti-lo.
-A história da medicina possui passagens repletas de sangue, mistério e desespero, dignas de uma tragédia shakespeariana... – explicou. – Acreditem ou não, algumas dessas passagens favoreceram a evolução dos estudos anatômicos e fisiológicos que nós temos acesso hoje em dia. Entre elas, a dissecação de cadáveres.
"Durante muito tempo, o estudo interno de corpos humanos foi considerado um tabu. Crime? Pecado? Chamem como quiserem. A moral, a lei e religião andavam de mãos dadas. Fossem quais fossem as razões, com a disseminação da ideologia cristã, a dissecação humana foi considerada um ato sacrílego passível de punição. De certa forma isso dificultou os estudos das doenças e do funcionamento do corpo humano".
Ele gesticulou como se estivesse arrancando do fundo da memória os acontecimentos que descrevia. Que cara doido!
-Entre os obstáculos mais marcantes para os estudos do corpo humano, podemos mencionaro incêndio criminoso que destruiu a Biblioteca de Alexandria. Foi uma grande perda para a Ciência, especialmente para a Medicina. Atrasou-nos consideravelmente, pois muitas das descobertas atuais já eram praticadas pelos médicos antigos.
-Hmmm... Não há nenhuma prova histórica de que o incêndio da Biblioteca de Alexandria foi criminoso – Nora Bernardes falou baixinho, num tom crítico, inclinando a cabeça na direção de Catarina MonteVerde. As duas estavam sentadas lado a lado, na fileira à frente.
Eu revirei os olhos ao ouvir o comentário da "Sabe-tudo". Só faltava ela levantar a mão para contestar o Shark Shaw. Ainda mais hoje, que ele parecia estar de bom humor. Se Bernardes estragasse o humor do homem, todos nós corríamos o risco de pagar, de uma forma ou de outra. E eis que ela levantou a mão. Eu respirei fundo. Mas milagrosamente, Shaw ignorou-a. A garota ficou com a mão levantada até doer. Então, ela olhou para os lados, meio sem jeito, e baixou o braço.
O professor parou de frente para nós, e eu instintivamente endireitei as costas. Bernardes também ficou reta na cadeira, expectante.
- Postulava-se que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. O corpo humano tornou-se símbolo da vontade divina. Assim, presumiu-se que não se deveria violá-lo. Corpo santo. Território santo. Mas... – ele levantou o dedo indicador para enfatizar seu ponto. – Isso não significa que os médicos da época não dessem um jeito de burlar a enfática proibição.
"Entre períodos de concessão e banimento, a dissecação humana permaneceu um tanto ilícita enquanto método de estudo e registro. Sendo assim, da Antiguidade à Idade Média, os conhecimentos anatômicos e fisiológicos iriam se basear, em sua maioria, na dissecação e vivissecção de animais. Quanto a isso, devemos conceder o devido crédito ao ilustre Claudius Galenus, responsável pela difusão de tais conhecimentos".
"Sem dúvida, ele foi um estudante de medicina extraordinário; ressuscitou os estudos de Hipócrates, quando se mudou para a efervescente Roma. Introduziu por lá alguns conceitos que os romanos tinham pouco conhecimento. E teve êxito. Principalmente porque ele conseguia 'consertar' os gladiadores - e as lutas eram a principal diversão para os romanos da época. Foi assim que Galenus acumulou poder suficiente para difundir seus conhecimentos".
"Os métodos de Hipócrates, que Galeno favoreceu em sua prática médica, enfatizavam a observação clínica dos sintomas; o exame minucioso do paciente e sua história de vida, com enfoque no contexto em que o sintoma surgiu... Mas Galeno acreditava no poder da natureza sobre o processo de cura; acreditava também que o equilíbrio, o bem-estar, e a qualidade de vida eram essenciais para a manutenção da saúde".
"Ele desenvolveu um método de tratamento, baseado na crença do choque entre os opostos. Assim, tratava a febre com banhos frios; a debilidade física, com atividades físicas puxadas; e assim por diante. Não preciso dizer o que pensamos hoje em dia sobre a generalização desse tipo de tratamento, tomando por base exclusivamente o sintoma... Mas naquela época, tais métodos eram considerados... sofisticados".
Troy quase soltou uma risadinha ao imaginar que algo baseado no senso comum e crendices populares pudesse nortear a prática médica.
-Lembre-se – eu sussurrei. – A medicina daquela época não considerava um método científico, mas misturava inclusive influências espirituais. Acreditava-se que algumas doenças eram enviadas por Deus, para expiar seus pecados.
-Que absurdo! – Troy balançou a cabeça.
Shaw abriu o livro de história da medicina e se voltou para nós.
–Solucionar problemas diagnósticos era o grande desafio da época. Não há evidência histórica de que Galenus tenha feito dissecações humanas – disse o professor, lançando um olhar irônico para Nora Bernardes, meio que antecipando seus comentários críticos. - Mas há rumores de que ele as tenha praticado. Ainda mais que o Egito era muito adiantado em termos de dissecação humana, por conta do processo de mumificação. Não nos esqueçamos de que Galenus estudou na escola de Alexandria. Em seu manual 'Procedimentos anatômicos', Galeno aconselhou os alunos a dissecarem animais a fim de avançarem no entendimento da prática médica, mas insinuou que eles não deveriam perder a oportunidade, se ela se apresentasse, de estudar corpos humanos.
-E que oportunidade poderia ser esta? – eu quis saber e me arrependi da pergunta, quando ele me lançou um olhar faiscante.
-Mendigos mortos, gladiadores que perdiam as lutas, falecidos por motivo de doença, etc...
Sem mais, ele nos deu as costas e caminhou para a mesa (e eu respirei com mais alívio).
O professor apertou o botão do controle e uma imagem surgiu na tela iluminada, atrás dele. Um jogo de sombras imediatamente se projetou em sua fisionomia penetrante, realçando os olhos intensos e estranhos... Ah, vamos combinar! Christopher Shaw era assustador de qualquer ângulo que a gente o olhasse. As aulas do sujeito podiam ser interessantes, fascinantes mesmo, mas me deixavam de cabelo em pé! Talvez porque ele sempre desse a impressão de ter vivido aonde a coisa toda aconteceu. Pretensamente, quero dizer... Porque, do contrário, eu teria de acreditar que o cara viveu na Idade Média, ou... Sei lá.
Lembro-me de quando, no primeiro dia de aula, Shaw afirmou que não participava das cirurgias há muitos anos. Mas, precisava ver a cara com que ele falava das dissecações... Com genuíno deleite!
Carniceiro.
Com um suspiro, consultei minhas anotações. Eu e Troy estávamos sentados no fundo da sala a fim de não recebermos em cheio o impacto de seu olhar. No primeiro dia de aula, tínhamos sentado na fileira da frente e... Bem, foi desconcertante, para dizer o mínimo. Decidimos que os erros não deveriam ser cometidos uma segunda vez.
E isso valia para tudo.
-Imaginem as ruas estreitas e escuras, cheirando a segredos sujos, trapaça e morte... – dizia ele, com olhar nostálgico.
O-oh! Eu perdi alguma coisa!
-Assim fluía a vida em Edimburgo... – ele prosseguiu, caminhando a esmo pelo palco. - Na medida em que a cidade foi construída e reconstruída, a parte mais antiga gradualmente ficou rebaixada sob o nível do solo. Como foi o caso das catacumbas de Roma, vocês devem saber...
Devemos?
-Os segredos sujos foram cimentados para sempre junto com ela... Mas o grito dos mortos é mais poderoso com o passar do tempo. A parte antiga da cidade permanece até hoje como testemunha silenciosa do que foi a miséria humana sepultada e esquecida pelo cotidiano e, ainda, pela própria história. Sepultada sim, mas perdida, jamais. Vocês devem estar se perguntando o que a evolução da cidade de Edimburgo tem a ver com a dissecação de cadáveres...
De fato, eu achei que ele iria, tipo, dar continuidade com a biografia de Andreas Vesalius... Sei lá, foi um salto e tanto.
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