Conspirações insidiosas
Ela agora estava do lado do execrado? Tornara-se sua aliada, quiçá, amante? Como se respondesse à minha pergunta silenciosa, Camulus passou o dedo indicador sugestivamente sob o queixo da bela sombria, obrigando-a a erguer os olhos orientais para ele. A expressão dela permaneceu uma máscara inescrutável... Com isso, demonstrou que podia ser uma boa jogadora. Uma jogadora letal. Em quem jamais se pode confiar, nem dar as costas. Mas era óbvio que Camulus não pretendia confiar nela e, sim, usá-la em todos os sentidos.
Enquanto lhe fosse útil...
-Minha mais nova amiga... – ele disse aos seus súditos, a título de elogio. Ou de apresentação. Não sei ao certo.
O rosto de Ásia não revelou prazer diante de tão duvidosa honra. Eu jurava ter visto passar um breve brilho de contrariedade em seus olhos amendoados. A palavra "amiga" com suas diversas conotações parece ter ficado suspensa no ar. Os demais sombrios não ousaram expressar qualquer opinião, e suas faces não revelaram absolutamente nada.
Hum... Eram todos bons jogadores!
Ásia manteve os olhos baixos, numa expressão reticente demais para que eu pudesse interpretar. Bem, se a sombria havia decidido mudar de lado, definitivamente estava trocando a cruz pela espada.
Toquei o cabo da minha, certo de que o adágio ali se aplicava à perfeição.
***
Como se conseguisse – sabe-se lá de que forma - ler a expressão dela, Camulus inclinou a cabeça de lado e riu. Havia deboche em sua voz, quando disse:
-Lealdade... – seus olhos amarelos fixaram-se no rosto dela - ...tão facilmente descartada quando a questão é ciúmes. Tudo por causa de uma rival humana... As mulheres são criaturas difíceis de entender. – Ele fez este último comentário para um dos seus - que estava mais atrás, flanqueando a garota.
Os olhos de Ásia se acenderam, denunciando que ela estava prestes a manifestar seu temperamento. Mas, antes que pudesse fazê-lo, Camulus acrescentou:
- Aqui você estará protegida, meu bem, e sua lealdade será devidamente recompensada... Isto é, desde que seja minha amiga de verdade.
O olhar que ele lhe lançou foi tão intenso que não deixava dúvidas ao tipo de amizade que um homem como aquele esperava ou exigia.
-Penso que temos a justificativa que precisamos para invadir a Muralha. – Camulus virou-se abruptamente para os demais.
-Invadir? – Alguém deixou escapar, espantado demais para se conter.
Cometeu um erro, pois ninguém ousava contrariar Camulus em seus domínios. Muito menos demonstrar dúvidas. Ele se virou com uma expressão letal na direção do sombrio que se manifestou. Seus olhos estavam pretos, agora. A palavra "invadir" ficou suspensa no ar, substituindo o impacto criado pelo uso da palavra "amiga".
-Aos olhos de nossos pares, a informação que Ásia nos apresenta será útil para que comecemos a transição, enquanto tomamos o poder. Queremos adesões e não resistência. Pelo menos até que tenhamos matado todos aqueles que são leais a Adriano. A começar pela guarda de elite.
Uma justificativa sanguinária, porém, eficaz – eu ponderei. Não convinha à sociedade sombria instituída saber que o interesse de Camulus não residia exatamente na fortificação da Pantera, na Muralha, e sim na localização do jazigo – nome dado ao repouso dos Primeiros. Mais especificamente, o local onde estavam aprisionados os pais de Camulus.
Aquela conversa prometia ser interessante. E certamente as informações me seriam úteis. Afinal, descobrir os pontos fracos do rei era de suma importância para meu propósito de destruí-lo. Sendo assim, decidi ouvir um pouco mais, e adiar a minha entrada triunfal.
-Tem certeza de que os protetores enganaram o Conselho? Os hospedeiros fizeram a parte deles? Conseguiram contaminar a garota? O cahill está ciente do fato? – Ele não deu tempo de Ásia responder, enquanto esta meneava a cabeça, confirmando. Virou-se para seus homens e comentou: – Precisamos ter certeza absoluta.
Contaminada? Isso só poderia significar uma coisa: alguém se tornara um hospedeiro.
Depois dos sombrios, originados pela mesma maldição, este era o outro grande alvo de minhas caçadas. Os hospedeiros consistiam numa praga, controlada mui precariamente. Os sombrios reclamavam para si esse sucesso duvidoso, já que os hospedeiros continuavam por aí, ameaçando os humanos com sua semente demoníaca. Por Deus e São Jorge, se isso fosse verdade...
Já chega!
Camulus virou-se para Ásia, pretendendo lhe perguntar algo, quando saltei sobre eles, estilhaçando a claraboia. Os Sopros da Morte recuaram assim que perceberam que era eu. Avancei contra eles, tomando impulso por meio da corda presa à minha cintura; com a destreza nascida da prática, soltei o gancho quase ao mesmo tempo em que saquei a minha espada. Foi uma questão de segundos, sem lhes dar tempo de se recuperarem do espanto.
Comecei pelos sombrios que avançaram na minha direção, girando a espada em direção aos seus pescoços... Então foi a minha vez de me sentir chocado. A espada os atravessou sem provocar nenhum estrago em suas figuras perfeitas, vestidas em uniformes vermelho e preto.
Eu olhei instintivamente para Camulus, que ostentava uma expressão despreocupada, com um sorrisinho estático no canto dos lábios. Ele tinha os braços cruzados e não se moveu, nem mesmo quando me aproximei dele.
-Eu o estava esperando, damphir. Fico feliz que tenha correspondido às minhas expectativas.
O comentário soou como um insulto aos meus ouvidos. Eu o golpeei com a espada – no peito, no pescoço. Depois de alto a baixo – mas nada aconteceu. Ele continuou parado, olhando além de mim com franco desdém.
-Que é isso? –perguntei, com raiva, vendo novamente minha espada atravessá-lo sem provocar nenhum estrago... Camulus permaneceu ali, parado, até que, finalmente, compreendi que eu tinha caído numa armadilha.
-Não seja rude – Camulus caminhou lentamente de um lado para o outro sem descruzar os braços. - Está aqui como meu convidado. Não despreze a minha hospitalidade, monge.
Pisquei algumas vezes, notando um tênue facho de luz afunilando-se por trás da sua figura até um ponto no alto da parede. Vinha de cima das telas – pontos de luz que piscavam intermitentes. Meus olhos inquietos avaliaram os demais sombrios presentes no salão, que permaneciam parados olhando para mim. O mesmo facho de luz se desprendia por trás deles.
Imagens holográficas... O quão idiota eu fui!
Camulus e seu séquito não estavam realmente ali. Será que os guardas em seus postos, lá em cima, eram de verdade? Sabiam o tempo todo que eu estava vindo; permitiram-me entrar... Meu orgulho ferido atiçou o ódio que irrompeu de mim. Um rugido escapou de meu peito. Girei a espada e quebrei um dos monitores e os pontos acima deles, fazendo com que duas das imagens holográficas desaparecerem.
Com ar de espanto, Camulus indagou:
-Espere! Não deseja saber por que eu o trouxe até aqui?
Em resposta, eu quebrei outro monitor e mais um grupo de sombrios asquerosos desapareceu.
- Seus informantes tinham razão quando disseram que ele era uma besta sem cérebro e que só sabia matar – comentou Ásia, zombeteira, e foi a vez dela desaparecer quando golpeei outro monitor. Restaram apenas quatro sombrios, entre eles, Camulus. Quando me aproximei de sua imagem, decidido a atravessá-la e golpear o monitor por trás dele, Camulus anunciou:
-Eu tenho uma proposta a lhe fazer, monge. Será um tolo se não ouvir.
Com uma expressão indiferente que me custava muito manter, eu apoiei meu peso sobre o cabo da pesada espada. Notei que o olhar rancoroso de Camulus se dirigiu para a arma; então, eu sorri pela primeira vez. Quer dizer que ele ainda lamenta... Sua frieza não era tão absoluta assim.
-Se não disser em cinco segundos, - eu o avisei – não dirá mais.
Os olhos amarelos de Camulus cintilaram, mas ele manteve o tom leve.
-Eu lhe ofereço uma aliança.
Levei alguns segundos para raciocinar e me posicionar de forma a não perder o fio daquela inesperada negociação.
-Em troca do quê? – indaguei, empregando neutralidade à voz.
-A cabeça do rei numa bandeja de prata.
Fiquei sem fala. Que espécie de armadilha era aquela? Vendo a descrença em meus olhos, ele finalmente sorriu.
-Sei que você me quer morto. Mas o que você mais quer é muito mais difícil de conseguir. Se você parar para pensar, com a minha ajuda terá uma chance viável de chegar perto do cahill.
Eu dei alguns passos ao redor, sentindo a pesada capa batendo em minhas pernas, enquanto girava a espada a esmo. Levantei a cabeça e encarei Camulus novamente.
-Sabe que isso não muda meus planos em relação a você.
Camulus acenou afirmativamente.
–Nem os meus em relação a você. – A ameaça estava ali, sutil, mas real. – Trata-se de uma trégua até que ambos tenhamos alcançado o nosso objetivo maior. Depois disso, voltaremos ao estágio anterior. Ou seja, você vai tentar me matar e eu, positivamente, vou matar você.
Eu bufei.
-Você já fracassou antes.
-E você também. – O outro disse suavemente, como se pouco importasse. Aquele sombrio tinha gelo nas veias, isso eu tinha que admitir.
Fechei a cara, frustrado. A viagem, os preparativos, a expectativa... Fora tudo uma imensa perda tempo. Exceto... Bem, se eu aceitasse aquela aliança (sui generis), então, novas possibilidades se abririam para mim. E eu seria um tolo se não as aproveitasse.
-Sua rameira sombria vai ser de alguma utilidade? – Indaguei, propositalmente ofensivo.
Camulus sorriu de forma malévola, enquanto estendia o braço para o lado, como se estivesse contendo alguém, ou impedindo alguém de se manifestar. Só podia ser a traidora de sua gente. Deveria estar ao lado dele, onde quer que ambos estivessem escondidos, enquanto as imagens se projetavam diante de mim. Eu ri. Queria mais era ver o circo pegar fogo.
-Ásia nos abrirá todas as portas, meu caro, pois conhece o funcionamento da Muralha como ninguém – foi a resposta de Camulus.
Acessar a Muralha; transpor o perímetro dos protetores; alcançar o cahill. Valeria a pena me consorciar ao execrado? Ah, sim, valeria...
-Eu aceito.
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