Uma aula diferente
-Cobaias, não, Sr. Hume – é a resposta tranquila do professor. - Colaboradores, sempre!
Sean pragueja, baixinho. Ainda não estamos acostumados com os ouvidos apurados da nossa espécie. Se não tomamos cuidado com nossos comentários, os professores nos apanham.
Nesse instante, o Dr. Barringer volta-se para o quadro e escreve: Quem sou eu?
Depois, vira-se para nós com um pequeno sorriso.
-Eis uma pergunta interessante... Eu diria complexa. Será que a resposta está em nossos dados pessoais, ou é uma questão de perspectiva? Alguém gostaria de compartilhar suas ideias com o grupo?
Eu viro a cabeça a tempo de ver meus colegas se entreolharem... Alguns desinteressados, outros temerosos. Quem terá a coragem de expressar o seu ponto de vista? Alguém cutuca Sean de brincadeira, sabendo o quanto ele detesta as aulas do Dr. Barringer. Eu sei que no fundo não se trata de detestar, e sim, de temer...
-Fala aí, "Abracadabra"... - reconheço a voz de Ambrósio "Risadinha" Smythe.
Sean fecha a cara e se encolhe no banco.
Gostando, ou não, cada um de nós recebe um apelido. O fato é que ninguém se livra disso. É uma espécie de batismo entre os jovens imortais – uma parte do batismo, pelo menos... Vou ter que me conformar a ser chamado de "o sabe-tudo". Bem, é melhor do que ser chamado de "Risadinha"... E se Sean recebeu o apelido de "Abracadabra"... Dá licença! Não sou o único que sabe das escapadas dele.
Nossa turma hoje está completa. Avisto o Eric "Vicking" Skaargard sentado ao lado de Sarosh "Mad" Greeley. Mais a frente, está a "Perfeita" Amanda Hamilton e o Brandon "Savage" Stewart. Viro a cabeça e encontro dois pares de olhos gozadores atrás de mim: Nichola "Teimoso" Cotter, e Ambrósio... Ah, tem aluna novo no pedaço.
A ruiva gostosa que só vi duas vezes, durante o último intervalo.
A garota é bem alta; quase tão alta quanto eu. Ela tem algumas tatuagens espalhadas pelos braços, ombros e costas. Ouvi dizer que o Professor Sands a chamou de Srta. White. Viro o pescoço, dou uma espiadinha, e a vejo, sentada cerca de duas fileiras atrás. Ela me parece tão exuberante quanto as destemidas Valquírias dos gibis do Thor.
Isso! Vou chamá-la de "Valquíria" White.
Ela não deve ser da minha geração. Tatuagens como aquelas? As mulheres da minha época não faziam esse tipo de coisa. É uma moda recente, pelo que eu andei investigando na internet. Algo posterior a Woodstock, a guerra do Vietnã, e todo aquele lance de direitos iguais e blá, blá, blá... Portanto, ela só pode ter passado pela transformação depois de mim e Sean.
Fico meio distraído por um tempo, aéreo, pensando em nossas diferenças de geração. De repente, reparo que os olhos de esmeralda da garota estão cintilando para mim... Uma satisfação secreta me domina, pois me dou conta de que ela também parece curiosa a meu respeito. Como não percebi antes? Mas com tantas preocupações na cabeça, todas referentes ao Sean, sequer tive tempo para reparar nos outros em minha volta.
Ergo a cabeça, vejo que ela continua me encarando, e desvio rapidamente a vista. Detesto ser pego no flagra. Inclino a cabeça, começo a rabiscar no meu caderno com toda a seriedade do mundo – mas, não consigo evitar sorrir comigo mesmo.
Sean nota o lance... E o meu "recuo estratégico". Meu irmão é ligado nessas coisas. Não demora muito para expressar a sua indignação:
-Se deixar aquela gata escapar, apanha de mim.
-Até parece. - Reviro os olhos.
Sean está se integrando rápido ao jeito de ser da juventude atual – rápido demais para o meu gosto. Para quem dizia detestar os humanos... Agora percebo que era só da boca pra fora. Ele quer ser como eles... Humpf!
O Dr. Barringer repete a pergunta em voz alta, na esperança de que alguém decida responder. Eu levanto a mão, ansioso para escapar das atenções do meu irmão e da valquíria ruiva atrás de mim. Qual foi a pergunta mesmo?
-Claro... Tinha de ser o "Sabe-Tudo" – soa a voz depreciativa de Mad Greeley. Eu trato de ignorá-lo. Limpo a garganta e pergunto:
-O senhor quer que a gente responda com base em nossa personalidade, ou em termos genéricos?
-Como é que é? – Greeley destila sarcasmo. – Tá falando sério? Dá pra traduzir para o português, por favor?
Suspiro, ganhando tempo a fim de conter o meu temperamento. Normalmente, eu sou mais controlado do que Sean, mas quando conseguem que eu exploda... Sai de baixo.
-Eu quero saber se devo falar das minhas qualidades e defeitos, ou se devo falar sobre o papel que espero ocupar no mundo – explico, olhando direto para Greeley. Faço minha melhor cara de aluno CDF entediado.
-Ah, tá... Esclareceu tudo! - O outro continua no deboche.
-Eu gostaria que você respondesse livremente. – O professor intervém calmamente, fazendo de conta que a troca de farpas entre seus alunos não aconteceu. – Faça como achar melhor, João.
Eu abro e fecho a boca, indeciso. Ambrosio solta a sua famosa risadinha... Como sempre, no momento mais inoportuno. Risada que é imediatamente copiada por Mad Greeley.
-Ei! – Ambrosio reclama, agora sério. Mas Mad Greeley não para. Ele continua imitando a risada de Ambrosio; ri, e ri de novo, como uma vitrola quebrada, até que Ambrosio baixa a voz, ameaçador: - Vou fazer você engolir os seus dentes! - E dessa vez, sinto que é pra valer.
Novamente, o professor intervém na hora "H":
-Enquanto pensa em sua resposta, João, que tal deixarmos o Sr. Greeley começar...
Escuto um resmungo atrás de mim e sorrio.
-Penso que o Sr Greeley está manifestando continuamente, mesmo que de maneira inconsciente, o desejo de contribuir para nosso debate. – Com um brilho sarcástico no olhar, o professor acrescenta: - A timidez do Sr. Greeley parece estar atrapalhando um pouco. Então, que tal se lhe dermos um empurrãozinho, turma?
Mad Greeley, tímido? Ouço gargalhadas e exclamações entusiásticas. Greeley afunda na cadeira, calado. Eu não sabia que o Dr. Barringer sabia ser irônico assim, irônico...
-Tá... É pra dizer o que eu acho? Pois bem... - ele ergue a caneta e olha para ela como se fosse um bicho nojento. - Ser ou não ser, eis a questão. Eu continuo na questão...
Sua carranca se desfaz. Greeley provavelmente acha que se saiu bem, deixando sua marca rebelde. A bola está do lado do campo do professor. Greeley o encara e dá um sorriso enviesado, como se tivesse marcado um ponto naquela guerrinha particular. O Dr. Barringer, contudo, não parece decepcionado com a resposta. Ele se posiciona no centro do palco.
-Shakespeare lançou a pergunta exatamente pela mesma razão que você... – O médico explica. – Aliás, ele questionou por toda a vida. A propósito... Excelente contribuição, Sr. Greeley.
Se Mad Greeley não fosse um imortal, como todos nós, eu aposto que teria ficado vermelho até a raiz dos cabelos. Seus olhos vão ficando pretos (o equivalente ao vermelho dos humanos). Ele procura disfarçar o constrangimento olhando fixo para os próprios joelhos sob a carteira. Hmmm... Ver Mad Greeley perder a pose é algo digno de nota.
-Acontece, professor, que não se pode viver na eterna indecisão - pronuncia-se Sean, irritado. - A gente é ou a gente não é.
-E o que a gente é, Sr. Hume? – Contente pela iniciativa de Sean, o professor o instiga, andando vagarosamente pelo contorno arredondado do palco.
-Bom, ou mau - ele responde, num fio de voz. – Não é possível ser as duas coisas. - Eu me dou conta de que ele levou a pergunta mais a sério do que eu ou qualquer outro naquela sala.
O professor também percebe, porque pergunta com cuidado: - O que é ser bom ou mau para você, Sean?
-Não é óbvio? – Sean se irrita um pouco mais. Parece nervoso por se tornar o centro das atenções. Talvez esteja até arrependido por ter falado em público. - Ser bom é fazer a coisa certa. Ser mau é prejudicar os outros.
Há um breve silêncio. O resto da turma sente alguma coisa no ar, e fica na expectativa. De repente, é como se as barreiras caíssem, uma a uma, e os alunos começassem a falar...
-Para mim, ser mau é ser o que sou, um monstro de merda - comenta Viking Scaargard, com a voz arrastada. Todos parecem espantados com a sua colocação.
-Olha o linguajar, temos damas presentes – repreende a Perfeita Amanda, os olhos amarelos lançando-lhe dardos.
-Desculpa, desculpa! - Scaargard prontamente responde, sem precisar da interferência do professor. Ele sabe do que Amanda é capaz, quando fica irritada.
O Dr. Barringer se aproxima das arquibancadas e olha diretamente para o viking.
-Você levantou o xis do problema, Senhor Scaargard. - Noto que os ombros do ruivo ondulam de orgulho por causa do comentário elogioso, ou supostamente elogioso, mesmo sem entender aonde o professor quer chegar.
-Eu levantei? - Ele balbucia, incrédulo.
Amanda olha desconfiada de um para o outro.
-Quem eu sou? - O professor balança a batuta a esmo para nós, - Eu sou... – Ele começa a falar, até que aponta a batuta diretamente para Sean... - Por exemplo: Eu sou Sean Miguel Hume.
Todos se viram para o meu irmão antissocial. Sean se retesa na carteira; seus olhos ficam amarelos. Ou seja, ao invés da vergonha de Greeley, aparece a agressividade de Sean.
-Este é quem eu sou - prossegue o professor, indiferente a sua reação. - Nasci de pais humanos. Recebi esse nome e atendo por ele. Quem eu sou? – Ele repete, de maneira quase declamatória. - Tive uma criação humana até a idade de...? - ele olha indagadoramente para Sean.
-Dezessete anos, eu acho... - Sean responde trincando os dentes.
-Dezessete anos. – O professor balança a cabeça, afirmativo. - A partir dessa idade, tornei-me imortal. – Ele lança a mesma pergunta para a turma: Quem eu sou?
-Fragmentos de sensações irreconciliáveis - responde o Teimoso Cotter.
Hm, estamos ficando filosóficos... O teimoso parece perdido em reflexões, como se tivesse mergulhado de cabeça no exercício do professor.
-Essa foi profunda - debocha Mad Greeley, ecoando os meus pensamentos. Eu sinto seu tom levemente nervoso, desejando quebrar o clima de seriedade que se formou.
-Profunda, sim. - O Dr. Barringer emenda, para não perder o fio da meada, bem como o controle recém conquistado sobre a turma. - Somos fragmentos de um ser que não compreendemos. Porque parte desse ser, sequer recordamos... Estou falando daquela parte de nós que ficou para trás, antes dos anos infernais... A parte humana. Vocês verão com o Sr. Sands a trajetória dos imortais, desde a aparição dos temíveis "primeiros", até os dias de hoje. Irão ver com a Sra. Deveau, as línguas imortais extintas, isto é, que já não são faladas, e como elas contribuíram para fixar os significados culturais dos termos, e nomes, os quais nos foram atribuídos pelos humanos. Agora, resta-nos ter consciência de que, de fato e de direito, fomos humanos também - fez uma pausa significativa. - Quando os humanos começaram a nos chamar de sombrios...
-Sombrios! – Mad Greeley bufa, interrompendo o professor. Os demais riem, mal acreditando que alguém pudesse inventar um nome tão ridículo para nós.
-Eu me sinto sombrio, no momento - revida Savage Stewart, sempre mordaz. Ele nunca perde a piada.
-Ah, vocês dão risada... - o professor sorri, inabalável. - E se eu lhes disser que, por muito tempo, fomos chamados pelos nomes mais estranhos e feios que vocês possam imaginar? Que tal: "cadáveres animados", "putrefatos do mal", "zumbis comedores de carne humana", "mensageiros da escuridão", "espíritos do inferno", "súditos de Satã", "dentes de ferro"...?
-Ah, dá um tempo! - O viking exclama, descrente.
-Mas é verdade - o professor garante.
O ruivo não acredita e revira os olhos. As risadas continuam, até que só reste Ambrosio rindo. Como sempre. Mas ele também acaba por se calar quando Perfeita Amanda lhe endereça um de seus olhares fulminantes.
-Há um nome que ganhou notável apelo popular... - o professor prossegue - e cá entre nós, acho difícil que nos livremos dele tão cedo... É "vampiro".
A classe explode em gargalhadas, e exclamações indignadas.
-Tenha dó!
-Está falando de sanguessugas?
-Não, sanguessuga é outra coisa. Você faltou à aula da Srta. Matias?
-Morcegos feios e gordos são mamíferos que se agarram ao cangote dos bois. Eu vi isso num programa de TV sobre a vida animal.
O Dr. Barringer nos deixa esgotar nossos argumentos excitados por alguns minutos, para escrever no quadro: "Os primeiros anos imortais".
-Popularmente conhecidos como "os anos infernais". - Ele explica.
A conversa paralela cessa, de repente. Um silêncio tenso se espalha pela classe. O professor deve saber que, agora, todos estão com medo do que vem a seguir.
-Não quero me lembrar disso - sussurra Amanda. Ela é a primeira a dizer alguma coisa.
-Mas é preciso, Srta. Hamilton - o Dr. Barringer rebate, mas com delicadeza. - Porque aqueles anos vão retornar, quer vocês queiram ou não. Sob a forma de flashes, sonhos, pesadelos. Quando vocês menos esperarem. Com eles, as lembranças humanas eclodirão de forma distorcida... Geralmente, elas aparecerão nas situações de maior agonia psíquica. E por causa delas, vocês podem perder o controle. Por causa delas, vocês podem vir a matar.
Ele deixa a gente digerir a informação, enquanto aciona a aparelhagem multimídia.
-Alguém, por favor, pode apagar as luzes? – Ele pede a ninguém em particular da turma.
A menina ruiva desce os degraus correndo e aperta o interruptor de luz. O Dr. Barringer agradece baixinho, sem desviar a atenção da seleção de slides. Ele insere os slides, e em seguida, a as imagens começam a aparecer, projetadas na parede branca, atrás de nós. Todos se viram nas carteiras para olhar a foto chocante de um imortal carbonizado.
-Os anos infernais fizeram isso a ele? - Eu mal consigo sussurrar a pergunta.
Sean encara-me, preocupado. Sabe o que estou pensando.
-Não. - O professor torce os lábios. - Os caçadores fizeram isso a ele. Esse imortal não conseguiu superar os anos infernais. E como representava uma ameaça aos humanos, por tabela, representava uma ameaça a nós. Assim, teve de ser... Aniquilado.
Como o médico já esperava, sua explicação provoca murmúrios de choque que percorrem a classe. Pela primeira vez, desde que começamos a frequentar a disciplina do Dr. Barringer, todos estão prestando atenção ao que ele tem a dizer.
-Ele foi aniquilado durante os anos infernais – Não é uma pergunta, apenas uma constatação perturbada por parte de Mad Greeley. – Isso é mesmo punk!
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