Prólogo: Real
##### Fallitur visio #####
(As aparências enganam)
O plano era bom, se não fosse por um detalhe... O som familiar das asas batendo. Estava vindo de longe, num crescendo... Olhei para cima e lá estava a criatura alada dos meus piores pesadelos e delírios. Que hora para ela aparecer!
Que hora para eu enlouquecer!
À medida que se aproximava, notei que alguma coisa estava errada. O meu monstrinho de estimação parecia diferente... Com contornos mais nítidos. Eu até podia ver as manchas na pele macilenta; as asas tremeluzindo ao sol. Quanto aos olhos... Deus, os olhos! Destacavam-se na face grotesca como duas pequenas brasas. Levei alguns segundos para entender que era... Real.
Eu me embrenhei na mata, alcançando a proteção das árvores de copas altas. A criatura pos-se a rodeá-las, buscando uma brecha... Como não encontrou, agitou-se, soltando guinchos terríveis; então, começou a quebrar os galhos, inclusive os mais grossos.
Aproveitei para colocar a maior distância possível entre nós. Avancei aos tropeços pelo terreno irregular, até que me deparei com um velho galpão abandonado. Um dia, num passado não muito distante, o lugar foi meu reduto de brincadeiras...
Alívio e nostalgia duraram pouco. O local estava mais detonado do que eu me lembrava. As paredes de tábuas, e o telhado esburacado não eram páreo pra "coisa" que estava me caçando. Certo, não havia tempo para pensar em chances e probabilidades. Não, se eu quisesse sobreviver. Entrei e fechei a porta, com o pressentindo horrível de que a qualquer momento, a criatura faria seu voo rasante sobre mim. Olhei pela janela lateral com o coração na boca. O interior escuro do galpão estava silencioso, exceto pela minha respiração ruidosa.
Girei nos calcanhares, sem saber ao certo o que estava procurando. Atravessei o piso de tábuas frouxas, enquanto arrancava o casaco – era muito grosso e estava limitando os meus movimentos. Ajoelhei, e comecei a busca frenética pela entrada da tubulação que eu sabia existir ali, em algum lugar. Mas aonde? Eu já não me lembrava mais...
As memórias me socorreram frente aos objetos que fui encontrando e reconhecendo: a mesa de serralheiro sem a serra, as esquadrias... Na parede de concreto atrás delas, estava a grade solta da tubulação, que por sorte consegui empurrar com as mãos.
De repente, ouvi o som cadenciado e monótono das asas sobre o telhado; antes que eu tivesse um ataque de pânico, o som extinguiu-se rápido... Tão rápido, que fiquei na dúvida se não foi coisa da minha imaginação. Os cabelos da minha nuca se eriçaram. Eu ergui os olhos vacilantes, por um breve instante. Muito breve...
O instinto de sobrevivência me impulsionou para dentro da tubulação meio-segundo antes que as vigas de sustentação viessem abaixo com um estrondo. Em questão de segundos, a criatura estava parada em cima do que sobrou do telhado, isto é, do que sobrou do galpão.
Eu me arrastei com dificuldade, cada vez mais fundo... O barulho além da entrada do túnel fez o meu estômago revirar. Não pude me voltar para ver o que estava acontecendo, porque a tubulação era estreita, mas eu sabia que o monstro de olhos vermelhos estava lá, abrindo caminho com suas garras poderosas.
Continuei me arrastando para frente com os cotovelos e os antebraços dobrados junto ao peito. Nem sei quanto tempo segui nesse ritmo torturante de tão lento. Agora entendia o que o Bishop devia ter sentido, em Alien, o resgate.
O estrondo atrás e acima de mim estava se distanciando, mas parecia incrivelmente mais forte. Como se a criatura estivesse intensificando seus esforços para me alcançar. Por um lado, era um bom sinal. Significava que eu consegui me distanciar.
Dentro daquele tubo apertado e fedorento, uma epifania me paralisou com a compreensão de que minhas alucinações e pesadelos não eram doença. Eram presságios, visões... Maneiras de a mente (a alma, o ka, ou coisa que o valha) me alertar sobre o futuro. Só que ao contrário do vidente interpretado por Nicholas Cage, eu não podia fazer nada para impedir a concretização das visões. Na maioria das vezes, nem entendo o que vejo.
Porque você é obtusa demais! Sua mãe não dizia sempre o quanto você era estúpida? Pois bem, ela estava certa.
Com muito sacrifício, consegui transpor uma bifurcação que aparecia na minha frente. Escolhi a direção onde o ar era menos abafado e o túnel, mais largo. Meia hora depois, exausta, encontrei uma luz no fim do túnel. Literalmente.
Chorei de alívio, mas não parei, nem diminui o ritmo.
Agora falta pouco. Eu até já podia sentir o ar fresco brincando com os fios de cabelos na minha testa suada e imunda. Continuei engatinhando, tentando acelerar o ritmo... Cotovelos e joelhos doíam de tanto bater na tubulação... O casaco fino não amortecia quase nada do impacto, mas eu não podia me dar ao luxo de sentir dor.
Quando alcancei a boca do túnel, eu parei. E se a criatura estiver do outro lado, só esperando que eu coloque a minha cabeça para fora? Ignorei o pânico e estiquei o braço que não estava ferido. Os segundos passaram e nada; nenhum movimento; apenas os sons da natureza lá fora.
Respirei fundo, criei coragem e saí.
O vento gelado bateu em cheio no meu rosto. Senti o impacto da mudança de temperatura. Comecei a tremer.Dei um passo, dois... Opa! De repente, escorreguei numa espécie de barranco. Tive que me agarrar na primeira coisa que apareceu. No caso, foram as raízes expostas das árvores que estavam acima da tubulação. A única coisa que me impedia de resvalar direto para dentro do riozinho pedregoso que passava lá embaixo. Firmei cuidadosamente os pés e as mãos na ribanceira, afastando-me do perigo...
Consegui descer até a margem do rio, e acompanhei o curso da água que corria para os lados de Groveton. Minha cabeça involuntariamente se virou para trás, e meus olhos vasculharam os arredores – tudo sacudia, virando um borrão enquanto corria e tropeçava nas pedrinhas do rio. Mata fechada, sombras, sons de pássaros. Por um tempo, nada me despertou a sensação de estar sendo seguida... Até que voltei a escutar o bater das asas sobrevoando a área da tubulação.
Ela estava me procurando. Por pouco, não me apanhou lá em cima.
Enxerguei um bosque fechado para lá da curva do rio. Apressei-me em passar o contorno, procurando por um trecho mais estreito em que pudesse saltar para a outra margem. Iria me esconder no bosque.
Se a criatura não me alcançasse primeiro...
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