Não somos siameses
Voltando ao presente, eu compreendo a relutância de Sean, em relação à disciplina do Dr. Barringer. Seu cinismo, na verdade, encobre o medo de recordar os "anos infernais".
Estendendo imperiosamente a mão, ele exige: - Se tenho que assistir à droga dessa aula, quero que devolva meus óculos de sol.
-O que tem uma coisa a ver com a outra?
-Posso ao menos dormir enquanto finjo estar prestando atenção, como os alunos humanos fazem lá fora.
-Muito engraçado! - Obviamente, a minha cara desmente as palavras. Sean solta uma risada curta e ainda me alfineta: -Espero que estejam intactos e limpos.
Eu dou um sorriso duro e encolho os ombros. Num gesto teatral, puxo os óculos pendurados na gola da camiseta, e os largo sem cerimônia sobre a palma de sua mão.
-Aí está o seu par de óculos, são e salvo. - Enquanto me afasto, escuto sua risadinha. – Que bom que contribuí para restaurar o seu bom humor.
Deixamos o quarto e seguimos pelo corredor até o espaço amplo e iluminado, com vista para a Floresta Tela-Verde. O espaço ficou conhecido entre os jovens imortais como o "pavilhão dos emblemas". Além de servir de ligação entre as duas torres retangulares, situadas no extremo leste da mansão, suas longas e grossas paredes dedicam-se a expor os emblemas de todas as famílias humanas que já serviram ao cahill, ao longo de suas gerações.
Os primeiros grupos de humanos iniciados, organizados pelos protetores:
Lá estão os brasões dos MacNamara, dos McPherson, dos Shelton, dos Taggart, dos McWilliams, dos Fenton, dos McCloskey... Não importa o nível social ou a função exercida... Para todos os leais servos que vieram das "Ilhas do Norte" a fim de servir ao nosso cahill, Adriano soube expressar sua gratidão. Posteriormente, outras famílias se juntaram às já presentes. Mesmo assim, o "pavilhão dos emblemas" foi dedicado somente àqueles que vieram com as principais levas migratórias que ocorreram durante o final do século XIX, e início do século XX.
Eles ajudaram a construir a cidade e a guardar o grande segredo.
De repente, Sean se detém diante das janelas. Sua fisionomia está tão determinada, que a distância entre os prédios não o deteria, caso fosse sua vontade saltar para a ala dos humanos.
Apuro os ouvidos e ouço uma sinfonia de corações batendo, algumas vozes cochichadas em conversas secretas, passos vagarosos pelo corredor...
Viro a cabeça para encarar meu irmão. Ele também ouve. Sua cabeça está inclinada... Aliás, toda a sua linguagem corporal me diz que ele está "varrendo" o local a procura das batidas de um coração em particular. E deve tê-lo encontrado, pois, de repente, sua expressão concentrada se abre num sorriso relaxado.
Tento decifrar como ele costuma fazer para localizar a garota na ala humana, sem ser flagrado pelas câmeras de segurança... Volto a olhar para fora, reparando superficialmente nas paredes adornadas pelo telhado antigo. Como eu faria para localizar um humano? Especialmente com o revestimento anticheiro, instalado recentemente. Bem, sempre é possível detectar o cheiro humano, se alguma janela estiver aberta. Nos corredores proibidos, o cheiro também se propaga rápido.
Já sei! Sean sobe pela calha... Contorna o telhado até a torre central (a menor das três), onde fica o átrio e a escadaria em zigue-zague que cruza o prédio de cima a baixo. Ele de certo abre um dos vitrais coloridos da face externa da torre, entra no corredor da ala humana, e segue o cheiro dela até os alojamentos... Abrir a fechadura do dormitório é brincadeira de criança pra Sean. Num piscar de olhos, ele está no quarto dela e sem alarde.
Eu posso até ver a cena toda na minha mente, porque a torre deles é igual a que fica do nosso lado.
Noto que os olhos de Sean estão vidrados e amarelos, antecipando a excitação do desafio. Eu lhe dou uma cotovelada que quebraria todas as costelas de um humano, e ainda faria o coração explodir.
-Ai, que droga! - Ele reclama alto, mais espantado do que dolorido.
-Isso é pra você aprender a não ficar sonhando acordado. Vamos!
Ele resmunga sem parar enquanto me segue; fica dizendo algo sobre encontrar um manual de como-matar-irmãos-gêmeos-imortais-e-chatos... Atravessamos o pavilhão, e começamos a subir a pequena escada em caracol, no canto extremo. Alcançamos o topo; eu tomo a dianteira e abro a porta.
Uma luz intensa nos envolve...
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A sala é ampla, como todas as salas do Colégio Três Pinheiros. Mas nem todas apresentam a mesma decoração, ou atrativos... Algumas têm carteiras organizadas em filas paralelas, com janelas altas de ambos os lados. (É o caso das quatro salas do térreo, cercando o jardim de inverno). Outras, porém, têm a forma de anfiteatro, com carteiras distribuídas de maneira semicircular ao redor do palco. Estas são as salas mais antigas. Tem uma o último andar e outra no subsolo.
Hoje, nossa aula acontece no anfiteatro do último andar.
Todo mundo vira a cabeça quando ultrapassamos o umbral. Então, me dou conta de que não estamos atrasados. Estamos muito atrasados. Que chato! Sean pigarreia e toma a dianteira, escolhendo uma fila intermediária entre a porta e o palco, lá embaixo. Tentamos nos acomodar em nossas carteiras sem chamar muita atenção. É impossível, com todo mundo sentado e só a gente de pé.
Por sorte, a aula está apenas começando... Enquanto eu me ajeito na carteira, o professor já se encontra à mesa, retirando alguns slides da pasta. Por um segundo me distraio, procurando o penal dentro da mochila. Uma cotovelada por baixo da mesa me faz virar a cabeça. Sean aponta discretamente para o palco. Olho naquela direção.
Ao lado da mesa do professor há um carrinho de carga. Do tipo utilizado para carregar caixas pesadas. Esse parece ser mais reforçado do que os carrinhos convencionais – com duas barras de ferro tipo guidão. Até aí, tudo bem. A maioria dos carrinhos tem isso. Só nesse, em especial, tem uma chapa espessa de metal, sobre dois pneus de borracha de trator que, por sua vez, sustentam uma estrutura em forma de gaiola. Ele parece seguramente freado por um conjunto de barras dobráveis, baixadas por trás dos pneus. Em torno do encaixe, visualizo cintas largas com várias fivelas de pressão...
Os murmúrios ao meu redor indicam que o carrinho de transporte não chamara só a nossa atenção... Normalmente, a minha turma fica indiferente a maior parte do tempo. Mas aquele carregador, definitivamente, criou certa dose de expectativa entre nós. Para não dizer, de temor...
Claro que o Dr. Barringer sabe disso. Ostentando um sorriso enigmático nos lábios, ele anda pelo palco sem olhar para ninguém em particular.
-Sejam bem vindos - cruza as mãos às costas e se inclina de leve sobre os calcanhares. Sua linguagem corporal me diz que ele está se aquecendo para a sinistra atividade que programou para nós.
Quando sussurro minhas suspeitas no ouvido de Sean, este retruca: - Por mim, tudo bem... Desde que não esteja planejando nos fazer de cobaias!
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