Então, Romeu encontra Julieta...
Sei que, para Sean, ficar confinado é tão terrível quanto o aniquilamento. Aliás, para quem não sabe, o confinamento é considerado por nossa espécie como a pior das torturas, pois precisamos estimular os sentidos superapurados: cores, movimentos, sabores, texturas, sons... Gostamos de correr, de saltar, e de gastar nossa energia com exercícios ao ar livre. Ficar trancafiado num local silencioso, cuja aparência não muda... Para dizer o mínimo: é a morte em vida.
Claro que o tempo de confinamento varia conforme o grau da transgressão. Eu soube de um aluno que ficou preso por exatos quinze anos. Nunca descobri o motivo. Parece que o delito dele não foi muito grave... O que são quinze anos para quem tem a imortalidade pela frente?
Vi a foto desse aluno num dos corredores proibidos, onde ficam os retratos dos estudantes que se destacaram. De rebelde sem causa a aluno exemplar... Parabéns, cara! Grande virada!
Sean é outra história... Ele não suportaria passar nem uma semana confinado! Já é difícil limitar-se às dependências do colégio... Imagine só quinze anos!
Eu tenho uma boa teoria sobre o que motiva o horror de Sean por espaços fechados. Está relacionado à nossa transformação. A mecânica da coisa. Eu tive alguns flashes a respeito, e a impressão é de que os anos infernais são mais complicados para alguns do que para outros.
Acredito nele quando garante ter encontrado a humana por acidente. Sean não costuma se aventurar perto dos humanos. Imagino que deve ter sentido o cheiro dela e sucumbiu à tentação. Acredito que uma série de fatores entrou em ação, naquela noite... A adrenalina, a vontade de escapar da rotina obrigatória e, principalmente, a curiosidade. O mesmo deve ter acontecido com ela... Ambos na fase inicial de treinamento... A garota não resistiu à vontade de espionar e ver de perto uma das criaturas que os humanos chamam por nomes tão assustadores.
Foi um grande risco para ambas as partes... Considerando que Sean ainda está em "treinamento isolado". Poderia ter perdido o controle ao se deparar com a humana assim, sem supervisão...
---
Sean me contou como os fatos se desenrolaram:
"Eu me senti atraído e revigorado pelo desafio de entrar aonde me proibiam de entrar. Saltei as escadas e fiquei empoleirado sobre a base do corrimão - igualzinho à gárgula que você tanto detesta, João. Depois de observar a humana esgueirando-se no escuro, classifiquei-a como uma 'criaturinha bem esquisita'. Mas até aí, nenhuma novidade... Eu achava todos os humanos esquisitos".
"Pensei em dar um bom susto nela. Fazê-la correr de volta para o lado certo do colégio, antes que alguém a flagrasse. Na verdade, eu acreditava estar praticando uma boa ação. Bom, a quem eu quero enganar... Eu queria era assustar a humana idiota"!
-O que pensa que está fazendo aqui? - "Eu a inquiri, com a voz mais cavernosa que consegui improvisar".
"Para a menina, ver um inumano acocorado sobre o corrimão, com olhos amarelos radiantes, deve ter sido qualquer coisa... A princípio, achei que o susto tinha dado certo. A garota deu um pulo tão longe que bateu as costas na parede. Mas foi aí que as coisas desandaram, literalmente. Quer dizer, uma coisa só desandou: o quadro do Diretor Bourke da década de 1930 - quando ele era o Professor Bourke. Pro 'nosso' azar, o quadro estava pendurado bem atrás. Era grande e pesado. Se caísse em cima dela, quebraria alguns ossos. Ela me pareceu ser uma garota frágil".
"Ainda parece".
"Eu não tive tempo de pensar nas consequências, e agi. Num piscar de olhos, venci os degraus e segurei a moldura antes que batesse em sua cabeça. A menina se assustou mais ainda. Não sei dizer se com o meu movimento repentino, ou com a minha velocidade. Eu até podia imaginar o que passava na mente dela: Num segundo, ele está no alto da escada; no outro, está diante dela, levantando o quadro como se não pesasse nada. Ela ficou me encarando, cara. Tipo... Embasbacada! Deve ter sido a primeira vez que via um de nós em ação".
"Não nego que fiquei envaidecido com o jeito que ela me olhava... Fiquei até meio exibido. Dei uma pirueta no ar, escalei os lambris de madeira que revestiam a parede, e pendurei o quadro no seu devido lugar. Depois pousei sobre os próprios pés com a elegância de um felino. Fiz isso só pra me mostrar. Sabe como é... Não é todo dia que se tem uma plateia"...
-Uau! - a garota disse.
-Uau é o que vão fazer com você se te pegarem aqui. - "Eu respondi, identificando a pulseira de iniciação no braço dela. Pelo símbolo, logo vi que estava longe de ser uma formanda. Aliás, como eu".
Vou fazer uma pequena pausa explicativa, no relato de Sean. Nem todos os estudantes humanos são iniciados. Assim como ocorre na Universidade da Muralha, a maioria passa pelo Colégio Três Pinheiros em "brancas nuvens". Pegam seus diplomas, e partem de volta para suas terras de origem com excelentes currículos. Afinal, a Universidade e o Colégio estão cada qual no topo do ranking educacional correspondente.
O mais importante é que eles partem da cidade da Muralha sem suspeitarem, ou acreditarem na existência dos imortais. De acordo com o Professor Belford, minimizar o impacto e controlar a informação é um dos meios para camuflarmos nossa espécie, dentro da sociedade humana. "Sociedade que não se mantém, caso seus ícones, tabus, e preconceitos sejam completamente derrubados", dizia ele.
Os iniciados não se enquadram nessa definição, naturalmente.
Voltando ao relato de Sean:
-Eu não serei apanhada- "a menina me disse, com petulância".
"Aquela foi a primeira vez que fiquei sem palavras. Então, rebati": - Você se acha, não?
"Ah, mano, foi tão bom não ter sentido compulsão de matar. Pela primeira vez, desde que deixamos o encarceramento, não estava apavorado com a possibilidade de machucar um humano. Além disso, a garota aparentemente não me temia. O que me deixou contente. Pra lá de contente"!
"Tive que fazer um grande esforço para driblar o 'agente inibidor' e aprender a identificar/filtrar o cheiro dela dos demais humanos. O esforço tornou a prática de localizá-la pelo olfato, o meu passatempo preferido. Claro que Kátia me provocou a agir assim, deixando uma janela aberta aqui, outra ali... Eu passei a rondar a ala dos humanos, em busca do seu rastro".
Aqui, cabe outra pausa, no relato de meu irmão.
Devo salientar que nunca o vi se esforçar tanto nos exercícios do Treinador Palmer... Com um sorriso enigmático nos lábios, ele resmungava consigo mesmo: Hoje, ela está na torre leste. Aula de Química... Ou: Agora, ela está na aula de educação física, quadra sete...
Talvez não caiba outro parênteses aqui, mas mesmo assim vou fazê-lo: os humanos têm um cheiro especial, que combina emanações pessoais muito sutis combinadas ao tipo sanguíneo. Só nós conseguíamos discernir essa combinação em sua totalidade - nenhum outro animal do planeta possui um faro tão apurado como nosso. O que, muitas vezes, chega a ser um tormento... Odores desagradáveis causam grave impacto sobre a nossa sensibilidade.
O Treinador Palmer nos explicou que, com o passar do tempo, aprenderíamos a selecionar os cheiros, a bloquear os mais desagradáveis. Mas, antes, era preciso aprender a disciplinar nossos pensamentos.
Tempo e treino. Disciplina e foco. Definitivamente, Sean só tem o primeiro a seu favor: o tempo. Ilimitado.
Na época em que se encontrou pela primeira vez com Kátia, Sean ainda não estava pronto... Mesmo sabendo disso, foi ao encontro dela de novo, de novo, e de novo!
As provas do "crime" estão em seu armário e debaixo da cama. Eu encontrei vários bilhetinhos. Agora, Sean se abre sobre o que rola entre os dois. E eu fico ali, com cara de pato, sem saber direito o que fazer, o que dizer...
-Kátia me falou sobre a família dela - ele está dizendo, enquanto amarra o cadarço da velha bota militar. - É uma família problemática.
-Você também falou... Da gente? - Ouso perguntar.
-Claro que não. Como poderia falar pra ela sobre meu desejo por sangue, e outros detalhes que, tenho certeza, fariam cair por terra a ilusão glamorosa que ela tem a respeito da nossa espécie?
Por essas e outras razões, Sean nunca me apresentou à Kátia, nem permite que ela atravesse para o nosso lado. Tem medo de que algum outro recém-iniciado a ataque... Ou que ele próprio perca o controle... Mantendo-a no limite, ele alimenta a ilusão de que ela permanecerá segura. No fundo, porém, ele sabe... Se perder o controle, o ataque será fulminante. Rápido e fatal. A humana não terá tempo sequer de pensar no que lhe aconteceu. Mesmo assim, ele continua se enganando, arriscando-se, e arriscando a vida dela...
Para agravar a situação, Kátia parece ser do tipo teimoso, pois quer a todo custo conhecer o "mundo" dos imortais. Sean está convicto de que, fazendo o jogo dela, conseguirá mantê-la a salvo da nossa espécie. Mais uma ilusão, que alimenta decisões imprudentes. Ele está disposto a se agarrar a qualquer desculpa furada para continuar se encontrando com ela.
Voltemos ao relato de Sean:
"Quando Kátia me confessou que queria saber mais sobre os retratos da galeria, decidi ajudá-la. Eu me senti importante bancando o professor, entende? Como se ela fosse minha aluna, ou coisa do tipo".
"Talvez, a garota fosse uma novidade em meio ao marasmo da imortalidade; uma alternativa para a minha depressão, que se agravou quando meu pedido de estagiar com você foi negado. Eu queria andar pelo mundo lá fora, como você vinha fazendo. E me ressentia pelo fato de todos considerarem você o irmão que deu certo".
Pausa.
É verdade.
Quando fui convidado a trabalhar no laboratório da mansão, o humor de Sean piorou. O que me fez sentir culpado. Apesar da possibilidade de ser apanhado, os encontros com a humana trouxeram uma coisa boa à vida que meu irmão já considerava sem sentido. No entanto, agora que eu sei que Sean anda invadindo a ala humana para espionar Kátia, preciso intervir de alguma maneira. Antes que seja tarde demais, e uma calamidade aconteça aos dois.
---
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro