Preâmbulo
Faltavam quinze minutos para as dez da noite, quando passei pela guarita dos seguranças. Eles me cumprimentaram e eu acenei rapidamente. Não queria conversa com os subordinados do Cridder... Por isso, eu já estava com a chave de acesso em punho, a fim de evitar qualquer parada inconveniente no curto trajeto entre a guarita e a porta.
Logo me deparei com um longo corredor mal iluminado, e tão sombrio quanto o subsolo. A lâmpada do teto oscilava e zunia, indicando que já estava na hora de ser trocada. Com um sobressalto, lembrei de que precisava trancar a porta atrás de mim. Depois de testar a maçaneta, respirei aliviada e comecei a atravessar a galeria até chegar ao elevador de serviço. As portas abriram suavemente e eu entrei, procurando pelo painel de controle. Apertei o botão do terceiro andar e esperei fechar as portas.
Uma música ambiente tocava baixinho e me distraiu por alguns instantes (brinquei de adivinhar - mas sem sucesso - qual era o nome do cantor...). Então, as portas se abriram e eu desembarquei em outro corredor, que dava para a área onde estavam estocadas as mercadorias. As luzes continuavam parcialmente acesas – a mesma música ambiente do elevador tocava pelos alto-falantes, só que num volume mais alto. O que significava que alguns setores ainda estavam funcionando, enquanto aos poucos eram fechados pelos funcionários. Não demorou muito para que apenas o miolo da loja permanecesse iluminado.
Eu estava tão distraída com a mudança no ambiente – do dinamismo diurno para o mausoléu noturno, que levei um susto quando uma das vendedoras passou por mim e seguiu em direção ao outro elevador. Ela nem reparou na minha presença. Lógico, eu era só a garota da limpeza.
De repente, lembrei que tinha esquecido o material de limpeza lá em baixo. Refiz o percurso até o subsolo sem parar de me xingar pelo vacilo.
Quando voltei - munida de esfregão, escova, detergente, balde e saco plástico - a música ambiente já havia cessado. O silêncio do salão enorme me deixou arrepiada. Eu estremeci involuntariamente e comecei o meu trabalho. Quanto mais cedo terminasse, melhor seria. Eu estava louca para me refugiar na saleta dos funcionários.
Mesmo sabendo que Simão Cridder não estava na mesma escala que eu (obviamente, tive o cuidado de conferir antes), algo me dizia que ele sempre tinha olhos e ouvidos por toda a parte. Paranoia minha, eu sei. Mas não conseguia deixar de espiar de vez em quando as câmeras de vigilância. Eu só queria terminar logo o meu serviço e me esconder.
Acontece que era difícil acelerar o ritmo com tanta confusão ao meu redor. Encontrei alguns travesseiros do setor de cama e mesa, abandonados na estante onde ficavam os produtos para pets. Depois, recolhi vários brinquedos do chão. Certamente, eram da ala de brinquedos no térreo. Deixei-os perto do elevador, e tornei a inspecionar os corredores. Depois de retirar as coisas que atrapalhariam o meu caminho, comecei a passar o esfregão.
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Meia-noite e vinte... Eu estava quase terminando... Só faltava o banheiro. Argh!
De repente, ouvi um ruído baixo, deslizante, seguido de um tilintar agudo.
Estiquei o pescoço por sobre a prateleira. Não vi ninguém por perto. Mas a seta do elevador estava piscando. Franzi as sobrancelhas... Muito estranho!
O meu coração quase saiu pela boca quando um rugido – áspero e metálico – rasgou a quietude da noite lá fora. Mesmo sacudida por calafrios, eu me forcei a caminhar até a janela panorâmica. Fiquei lá, parada, vasculhando a paisagem com o olhar... O som parecia ter vindo do bosque, muito além do estacionamento.
O rugido não se repetiu e eu me convenci de que era apenas coisa da minha imaginação. Quando me virei novamente, ele estava parado no meio do corredor. Completamente imóvel. Os braços cruzados sobre o peito numa postura relaxada e ameaçadora a um só tempo.
Simão Cridder. O rosto de um predador.
Não me mexi, mas apertei o cabo do esfregão até sentir dor nos calos dos dedos. Eu não iria fazer as clássicas perguntas que a mocinha idiota sempre faz pouco antes de ser estuprada, mutilada, e retalhada nos filmes de terror... O que você quer? Ou: O que pretende fazer comigo?
Instintivamente, eu sabia o que ele queria. O que eu precisava, agora, era ganhar tempo.
-Também ficou com a escala noturna? - tentei aparentar naturalidade.
Ele sorriu. Achei que não ia responder, mas respondeu:
-Paga mais. Troquei com o Norberto, hoje.
-Ah... - E agora? - Ei, ouviu o rugido lá fora? - perguntei, apontando bobamente para a janela, mas sem tirar os olhos dele.
Crider riu e coçou o queixo.
-A-hã, boa tentativa. Aliás, você é muito boa com distrações. Não está enjoada agora também, está?
-Bem, já que você mencionou...
-Não tem como fugir dessa vez, gata. Ninguém vai nos interromper.
Engoli em seco. Mas algo me ocorreu, e minha voz saiu mais segura:
-Há, sim... - indiquei as câmeras de segurança.
Novamente, ele riu.
-Quem? Pedro e Jackson? Eles até fizeram uma aposta...
-Aposta? - apertei um pouco mais o cabo, me preparando para o pior. Levei um susto quando minhas costas bateram na estante.
-Sobre a cor da sua calcinha - ele respondeu, com um sorriso de arrepiar.
Não sei se o medo me deu forças... Mas deve ter sido. Eu já tinha ouvido falar de pessoas fracotes como eu, que numa hora de necessidade moveram um objeto dez vezes maior do que o seu próprio peso... Mais tarde, quem sabe, eu me desse ao luxo de pensar em como consegui tamanha proeza... Pendurei-me naquela estante, e puxei sobre nós dois. A princípio o móvel apenas inclinou e eu cheguei a pensar que não fosse sair do lugar. Mas, de repente, virou com tudo bem na cara do Cridder. Derrubou ele no chão numa só tacada. O estrondo ecoou por toda a loja.
Eu não fiquei para conferir o estrago. Saí correndo em direção ao elevador principal - que ainda estava aberto, com a seta piscando para baixo... Meu cérebro trabalhava freneticamente, pensando em mil rotas de fuga. Janela, porta, carro... Eu tinha lido na internet que isso tinha a ver com descarga de adrenalina.
Apertei o botão do térreo e olhei instintivamente para a câmera de segurança. Aqueles dois deviam estar me vendo. O que eu iria fazer? Tinha certeza de que não me deixariam sair viva do prédio para contar à polícia sobre a participação deles na minha tentativa de estupro. Não duvido até que planejassem apagar as imagens das câmeras, a fim de parecer que eu tinha consentido com essa barbaridade. Ou pior: guardariam as imagens para me chantagear, e me obrigar a não procurar a polícia.
Uma decisão, eu precisava tomar uma decisão agora!
Tá, tá bom!
Acabei decidindo saltar antes do térreo, e literalmente soquei o botão do primeiro andar. Quando as portas se abriram, eu me projetei para fora como a bala de um canhão. Fui atravessando os corredores, tentando localizar a outra moça da limpeza... mas não havia ninguém. Será que ela estava na saleta dos funcionários? Eu não podia descer até lá, pois teria que passar pela guarita dos seguranças.
Ouvi passos apressados vindos da escada. Eu estava certa. Eles ficaram me esperando saltar no térreo. Quando perceberam que desci antes, resolveram subir atrás de mim.
Girei nos calcanhares amaldiçoando o fato de não ter um celular à mão. Bem, eu precisava encontrar um telefone. Lembrei que no corredor dos banheiros, havia um aparelho público – então, corri para lá.
Quando contornei a parede, exalei com alívio. Ergui o gancho e comecei a discar...
Os passos foram se aproximando, cada vez mais rápidos. Rápidos demais! Larguei o gancho balançando e contornei o corredor antes que ficasse encurralada. Acabei entrando pela primeira porta aberta que enxerguei. Só percebi que se tratava do setor de equipamentos esportivos, quando dei de cara com duas barracas de camping armadas na vitrine. Atirei-me atrás delas meio segundo antes dos comparsas de Cridder alcançarem o aparelho telefônico onde eu estivera a pouco.
Senti o exato momento em que bati de mal jeito contra o chão frio. A batida no meu cotovelo não foi ouvida por eles. Mas tive que fazer muita força para não gritar de dor.
-Ela deve ter se escondido no banheiro. Verifique o masculino, que vou para o feminino.
Ótimo! Era tudo o que eu precisava: um segundo de distração. Levantei com certa dificuldade e saí correndo. Meus tênis faziam nhec-nhec sobre o assoalho liso – o que me obrigou a acelerar o passo. Eles logo perceberiam que eu não estava no banheiro e se ouvissem o barulho, voltariam mais depressa.
Corri o mais rápido que pude... Escorregando algumas vezes, caindo em outras... Até que alcancei os degraus que me levariam à garagem. Eu sabia que lá havia outro telefone público. Quando estava quase alcançando a última volta da escada, uma mão de ferro agarrou o meu braço, desequilibrando-me. Caí de costas e fui rolando o resto dos degraus até me esparramar no térreo. Com o baque, o ar fugiu dos meus pulmões; eu fiquei estatelada no chão como uma boneca de pano. Por um momento fugaz, cogitei ter quebrado algumas costelas.
Era o fim, eu tinha certeza. O cara me estupraria e mataria. Eu até podia ver a manchete no jornal local:
ÓRFÃ SEM NINGUÉM NO MUNDO TERMINA SEUS DIAS DE MANEIRA TRÁGICA
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