Pé na estrada
O céu estava começando a clarear e o frio da madrugada foi embora com a escuridão. Mesmo assim, eu me decidi a tomar o meu banho quente - mais por capricho, do que bom senso. Poxa! Depois de todo aquele tempo tomando banho gelado e de mangueira! Agora eu estou pagando e mereço!!!!
Forcei os músculos doloridos a funcionarem. Fui ao banheiro, e tirei a roupa com dificuldade. Abri o registro e esperei a água esquentar. Esperei... Esperei... E continuei esperando... Com um suspiro, eu me conformei em tomar um banho levemente morno.
Quando saí do banheiro, já era dia claro. Eu me vesti, penteei os cabelos... O calor já começou a me incomodar e eu fiz um rabo de cavalo. Ouvi distraidamente o barulho da rua, indicando que a cidadezinha estava começando a acordar.
Com um suspiro, concluí que não poderia adiar mais... Deixei o quarto puxando a minha mala xadrez e parei na portaria. Ao invés do rapaz mal encarado, havia uma senhora idosa lendo tranquilamente o seu jornal. Ela levantou os olhos sorridentes para mim.
-Bom dia! - eu a cumprimentei, depositando a chave sobre o balcão.
-Bom dia! - ela comparou o número pendurado na chave com a minha ficha, verificou que o quarto já estava pago e jogou a chave no escaninho. Depois, sorriu brevemente para mim e voltou a se concentrar em seu jornal.
Com um sorriso amarelo, eu me dirigi para a saída.
Saí para a rua caminhando devagar, mais por causa da incerteza da minha vida do que porque quisesse apreciar a luminosidade do dia. Mas isso – a incerteza da minha vida – não me impediu de apreciar a brisa fresca que acariciou a minha face, dando uma trégua ao calor. Forcei a mente a lembrar o trajeto de volta ao posto de gasolina. De dia, o trajeto parecia diferente e as ruas, muito iguais...
Mas como quem tem boca vai à Roma... Eu consegui chegar lá. Claro que na lojinha de conveniência havia outro atendente, que sabia mais sobre as rotas dos ônibus, passagens e horários, do que o seu "colega noturno". Pelas informações que me deu, logo cheguei à conclusão de que meu dinheiro não iria dar para nada além do café da manhã. E um café bem simplório, diga-se de passagem... Então, comprei um suco de laranja em caixa, um bolinho Ana-Maria, e sentei sobre o banco do lado de fora.
O que não tinha remédio, remediado estava...
Foque no problema imediato, garota! Eu precisava conseguir uma carona. E isso poderia ser mais difícil do que arranjar emprego. Quase não havia movimento na estrada, naquele horário.
De repente, um caminhão fez a curva, entrando no estacionamento do posto. Era um veículo de porte médio e tinha uma logomarca bem destacada na lateral. Assim que o motor foi desligado, o motorista abriu a porta e saltou. Eu continuei mastigando o meu bolinho, enquanto o observava distraidamente. O rapaz barbudo usava um boné, e sua camiseta estava suada. Ele olhou a redor e então, seus olhos pousaram em mim.
-Bom dia, moça!
-Bom dia - respondi de boca cheia.
Ele colocou a mangueira no tanque e hesitou um instante, antes de se aproximar.
-Esperando pelo ônibus? Acho que vai chegar logo, pois cruzei com ele há poucos quilômetros daqui.
-Eu pretendia pegar o ônibus – balancei a cabeça, pensando que ser acanhada não me ajudaria. O negócio do brasileiro é ser cara de pau. - Mas descobri que não tenho dinheiro suficiente para a passagem. Agora, não sei bem o que fazer...
Ele arqueou as sobrancelhas.
-Não seja por isso... Posso lhe dar uma carona - subitamente, sua expressão ficou cautelosa. -Você não é menor de idade, é?
Eu ri da situação.
-Não. E posso provar...
Ele ergueu a mão, interrompendo-me: - Não é necessário... Para onde quer ir?
Avaliei a situação por um momento. Ele parecia amistoso... E que alternativa eu tinha?
-Qual é a sua rota? - perguntei.
Ele mudou de posição e sorriu.
- Vou passar por Gorham, Bethel, Caminhos do Sul... Tenho uma entrega para fazer em Verão Celta também... Vou passar por Graís... Terra do Porto e Porto do Sul... depois, eu contorno. Meu destino final é Regina.
-Serve, moço, obrigada. - Eu virei a mala com dificuldade e me aproximei.
O rapaz riu, incrédulo.
-Serve? Mas... Qual das cidades?
-A mais distante daqui - respondi, amarga.
-Para a Comarca Celta, então... - ele murmurou, enquanto apanhava a minha mala.
Pelas janelas do caminhão, eu via as montanhas da Patagônia passando, de vez em quando, intercaladas com extensas florestas de pinheiros e pequenas cidades. Nessas horas, eu queria ter uma máquina fotográfica. Procurei prestar atenção a cada cenário, para reproduzir mais tarde através dos meus desenhos.
Estávamos deixando a Comarca cujo lema era "Viva Livre ou Morra"... (No meu caso, estava mais para "Arrume um emprego ou morra").
A viagem foi agradável. Bob era uma boa companhia – um sujeito simples, de bem com a vida, e muito dedicado à família. Acho que tirei a sorte grande ao pegar carona com ele.
Era fácil conversar com ele - tão aberto sobre sua vida pessoal que, quando vi, eu estava me abrindo sobre as minhas "desventuras em série". Ele lamentou sinceramente pela minha sorte e então, fez um oferecimento totalmente inesperado:
-Tive uma ideia! Minha irmã Carmen trabalha no setor de pessoal de uma loja de departamentos, em Terra do Porto Sul. Quem sabe não consegue uma vaga pra você? De repente, ela até lhe arruma um canto no apê dela. Vamos ver... Como tenho que passar por lá mesmo, não custa arriscar.
Eu fiquei sem fala.
-O quê? - ele riu da minha cara. – Milagres acontecem, Melissa. Quem sabe o cara lá de cima tenha me colocado no seu caminho?
-É... Quem sabe? - respondi, desconfiada.
-Em último caso, se não tiver nenhuma vaga na loja, Porto do Sul tem mais oportunidades. Eu conheço uns caras no porto, que conhecem outros caras... - ele voltou a rir. - ...que por sua vez trabalham para outros caras... Estes caras são donos de bares e restaurantes. É uma área que sempre precisa de gente, especialmente no verão.
-Bem... - eu também ri. - Seria ótimo se "os caras" me dessem uma força.
Paramos algumas vezes ao longo do trajeto para fazer as entregas de Bob.
Eu aproveitava aqueles momentos para esticar as pernas. Depois de Gorham, Bob logo adivinhou o motivo pelo qual eu não entrava nas lanchonetes com ele. Eu pretextava falta de apetite... Mas, na verdade, estava com a grana contada. Acho que não fui muito convincente, porque nos arredores de Caminhos do Sul, quando minha desculpa foi a necessidade de ir ao banheiro (e a falta de apetite de novo), ele me trouxe um hambúrguer. E se recusou a aceitar que eu lhe pagasse.
-Apenas coma! Se você desmaiar de fome e a polícia me parar, com certeza os homens pensarão que eu sou um serial killer transportando a minha mais recente vítima. Com a sua cara de menina, vão deduzir que a sequestrei na porta da escola. Ah... Já posso ver tudo! – ele gesticulou, fazendo sinal de atirador com o polegar e o indicador – Bang! Bang! Vão atirar primeiro, e fazer perguntas depois.
Eu dei uma gargalhada. Da forma como ele colocava as coisas, não era impossível de acontecer. Eu não queria ser responsável por uma tragédia, então, resolvi comer.
Mais tarde, depois de um cochilo, percebi que estávamos atravessando a fronteira das comarcas de Hemp com Celta, cujo lema me pareceu bastante promissor: "Dirigo"... Fazia sentido. Eu literalmente estava tomando as rédeas do meu destino. O fato de a abelha ser o inseto oficial da Comarca Celta consistia num bom presságio... Meu nome, de origem grega, significava algo como "abelha que produz mel", ou "produtora de mel". Isso tinha que ser um sinal.
Quando eu era pequena, meu pai sempre me dizia para ficar atenta aos menores sinais, pois eles eram "recados do destino".
Acabei dormindo o resto da viagem e só acordei quando as luzes de Porto do Sul já espocavam na janela do caminhão. Estava anoitecendo.
-Conseguiu descansar um pouco, dorminhoca?
Disfarcei um bocejo com o punho. O gesto fez com que eu ficasse mais consciente dos dolorosos calos nos dedos.
-Eu não fazia ideia de que estivesse tão cansada - reconheci.
Ele riu e falou alguma coisa que não registrei sobre a pitoresca região de Porto do Sul. Estávamos seguindo para um bairro de periferia onde morava a sua irmã. Perguntei, preocupada, se não estava tirando-o de sua rota, mas ele fez um gesto negativo.
-Eu pretendia pernoitar na casa dela, de qualquer jeito. Assim economizo o dinheiro da diária que me pagam, e posso seguir amanhã quase todo o trajeto até Regina.
-Ah... Sua parada final não é Porto do Sul, então? - fiquei desanimada só de pensar que estava prestes a perder a primeira amizade que fiz fora do orfanato.
-Não, mas na volta eu passo aqui para ver como você está se saindo em sua nova vida - ele respondeu, sem malícia. Parecia um irmão mais velho e eu gostei muito disso. Só que uma vozinha interior me lembrou de que não era bom me apegar às pessoas, por mais carente que eu estivesse. Mais cedo ou mais tarde, todas elas partiam. Ou me revelavam o seu pior.
Chegamos à casa de Carmen quando apenas um rastro púrpura era visível no horizonte. Pude ver muito pouco da cidade. Mas, pelo pouco que vi, era muito bonita... Áreas verdes se distribuíam por entre as zonas urbanas, adensando-se até emendar com o parque florestal.
O bairro onde iríamos ficar parecia acolhedor e limpo. Estava aninhado em uma depressão, entre duas pequenas colinas e o mar. Nunca vi o mar! Eu fiquei encantada! Por mais escuro que estivesse, o marulho das ondas à distância e a faixa prateada sob o luar era algo... indescritível. Lágrimas assomaram aos meus olhos.
Carmen recebeu o irmão alegremente, e não pareceu espantada ou aborrecida por me ver ao lado dele. Ela era bem jovem. Talvez uns três anos mais velha do que eu. Morava em um pequeno apartamento, em cima de uma cafeteria movimentada. Bob havia me dito que o lugar era prático, pois ficava perto do local de trabalho de Carmen.
Ele nos apresentou rapidamente, e insistiu em carregar a minha mala. Tive a satisfação perversa – e secreta, naturalmente - de ver um cara do tamanho dele com dificuldade para lidar com as minhas rodinhas temperamentais. Isso significava que eu não era tão fracote assim.
Um pouco ofegante, Bob alcançou o sobrepiso – onde Carmen o observava com um sorriso de diversão bailando nos lábios pintados.
Para o meu constrangimento, Bob foi direto ao assunto. Isto é, o meu problema de moradia. Carmen não se manifestou até que ele terminasse de explicar toda a situação. Ela assentia ocasionalmente e só o interrompeu quando nos convidou a partilhar do seu jantar, que consistia de uma sopa substanciosa e pão caseiro. Comecei a achar que ela estava pensando numa forma educada de dizer que não poderia me ajudar, mas ela me surpreendeu:
-Claro que será fácil conseguir uma colocação para Melissa. A loja está sempre precisando de pessoal, especialmente na parte da limpeza. - Olhou para mim, subitamente preocupada. – Isto é, se você não se importa de fazer esse tipo de serviço. É trabalho duro. - Pareceu-me que, naquele momento, ambos avaliavam a minha constituição física pequena.
Até parece! Como se eu nunca tivesse empunhado uma vassoura antes. Será que eles me achavam com cara de dondoca?
Eu me apressei em responder, antes que ela interpretasse mal a minha confusão:
-É claro que não me importo. Eu não tenho medo de trabalhar, Carmen. A única coisa que quero é uma oportunidade.
- Ótimo! Ela sorriu, satisfeita com a minha resposta, e encarou o irmão. - Problema resolvido.
Carmen era solteira, mas tinha um quarto extra para quando o irmão aparecia entre uma viagem e outra; Bob fazia constantemente aquela rota, mas morava em Monte Vyir com a esposa e seus dois filhos.
Os dois decidiram que eu ficaria com o quarto, e Bob, dessa vez, dormiria no sofá. Eu me senti tão culpada! Eu era apenas um transtorno inesperado que surgiu na vida deles... Não era justo que mudassem a rotina por minha causa. Bob devia estar exausto e ainda assim, queria que eu me sentisse confortável. Quando protestei, dizendo que poderia dormir no sofá, os dois fizeram cara feia pra mim. Depois disso, achei melhor concordar com tudo.
Aquela foi a segunda vez, desde que deixei o orfanato, que consegui tomar um banho decente. Suspirei de alívio, completamente relaxada, sem vontade de sair debaixo do chuveiro. Mas não ficava bem acabar com toda a água quente do prédio. Além de não ser ecologicamente correto. Eu era a hóspede, portanto... foi com relutância que fechei o registro e saí do boxe.
Com uma espiada no espelho do banheiro, fiz uma rápida avaliação da minha patética figura: eu parecia menos abatida. As olheiras estavam mais suaves, as bochechas mais coradas, e os olhos não tão fundos... Quem diria que, ontem mesmo, eu era uma pessoa desesperada e sem nenhuma perspectiva. Agora, num golpe de sorte, os caminhos tinham se aberto para mim.
Tive uma noite de sono maravilhosa. O colchão era confortável, os travesseiros tinham cheiro de flores – um cheirinho tão gostoso! Acordei na manhã seguinte com a vaga lembrança de uma clareira banhada pelo luar, e um enorme lago espelhado.
Eu já tinha lido o suficiente sobre sonhos e alucinações para saber que a lembrança onírica podia ser mais a manifestação de um desejo, do que o resultado de vivências e emoções reprimidas. Então... Isso significava que eu estava louca para encontrar um lago. Grande coisa!
Ainda rindo da minha conclusão inusitada, eu me vesti e fui procurar pela dona da casa.
Carmen me contou que Bob partiu antes do amanhecer. Lamentei não ter podido me despedir dele. Mas ele deixou um recado, desejando-me boa sorte!
Depois do café da manhã, ajudei Carmen a lavar a louça. Eu estava eufórica. Acho que ela percebeu isso e acelerou os afazeres para que pudéssemos sair mais cedo e, assim, ela me mostraria um pouco do bairro.
Atravessamos o quarteirão sem pressa. O dia estava perfeito para uma caminhada. Carmen gesticulava o tempo todo, orientando-me sobre os principais pontos de referência...
A loja de departamentos não era muito grande, como as que eu via na televisão. Mas parecia, no mínimo, imponente. Em especial para uma garota que não conhecia nada da vida além de Coos e Hemp. Lembrei-me de uma comédia antiga, cujo enredo se passava em uma loja de departamentos semelhante àquela.
O local ainda estava fechado, quando chegamos. Mas já tinha movimento por conta dos funcionários que arrumavam as mercadorias. Alguns me olharam com evidente curiosidade. Outros nem me deram bola.
Carmen mandou que eu me apresentasse a chefe da limpeza, levando o bilhete que ela escreveu com o carimbo do setor de pessoal.
Eu ainda estava procurando pelo elevador, quando avistei um funcionário mexendo em uma espécie de exposição. Achei curioso que ele estivesse admirando a própria imagem transmitida na tela de um enorme televisor. Quando me viu parada ao seu lado, pediu-me que ficasse no seu lugar - assim, sem mais nem menos. Aceitei, meio confusa... Sinceramente, achei que ele fosse maluco. Logo a minha cara também apareceu na tela grande. A filmagem oscilou de um lado para o outro, até centralizar em mim.
Ele me explicou que estava ajustando a webcam sobre o computador para captar imagens dos clientes e transmiti-las pela televisão. Então, compreendi que era graças àquela minúscula câmera.
O rapaz agradeceu a ajuda e se ofereceu para me levar até o elevador.
-A propósito, meu nome é Stanley Marsh. Mas pode me chamar de Stan.
-Melissa Baker.
-Legal conhecê-la, Mel. – Ele apertou minha mão com vigor. -Posso chamá-la de Mel?
Porque as pessoas tinham a mania horrorosa de abreviar o meu nome? Eu sabia que soava antipático corrigi-las o tempo todo. Para não criar caso, desisti de tentar há muito tempo.
-Claro. - Dei de ombros.
Conversamos mais um pouco, enquanto eu esperava pelo elevador. Prometi retornar mais tarde ao setor de informática, para lhe contar como foi o meu primeiro dia de trabalho. Pelo visto, tinha feito uma amizade.
Seguindo a orientação de Stan, encontrei o escritório da chefe da limpeza com facilidade. A plaquinha na porta confirmava que eu estava no lugar certo. Senti um frio na boca do estômago. Eu torcia silenciosamente para que a mulher fosse com a minha cara. Respirando fundo, bati na porta. Ouvi um quase inaudível "entre". Então, armei o meu melhor sorriso e entrei.
A mulher que estava acomodada do outro lado de uma escrivaninha que já viu dias melhores, não correspondeu ao meu sorriso. Seu rosto inexpressivo apenas me avaliou; ou melhor dizendo, dissecou! Hmmm... Isso não era um bom sinal.
Depois de ler o bilhete, Hilda mandou que eu me trocasse no vestiário ao lado – onde encontraria alguns uniformes disponíveis. Eu deveria escolher aquele me servisse e passar para ela as minhas medidas, a fim de receber uma muda extra do setor de estoque. Eu fui até o vestiário sem saber muito bem o que esperar, mas... Quer saber? Sinceramente? Eu adorei o meu uniforme! Era azul... do tipo tom sobre tom. Muito limpo, novo e elegante.
A chefe encontrou-me no vestiário e olhou diretamente para os meus tênis velhos – o único que eu tinha e que não machucava os pés.
-Você não tem um par de mocassins ou sapatilhas pretas? - indagou, com evidente aborrecimento.
Pensei nas minhas sapatilhas pretas, com o furo na sola... Aquelas que quase me mataram...
-Não.
Ela suspirou.
-Teremos que lhe arranjar um par de sapatos-padrão.
Respirei aliviada. Por um momento achei que ela envocaria com os meus tênis. Hilda parecia ser daquelas chefes que se orgulham por manter tudo conforme o manual. Como que para comprovar minha análise, mandou que eu prendesse o cabelo num coque e colocasse sob o boné azul. Eu não sabia fazer coques, nem tranças, ou qualquer penteado um pouco mais elaborado. Então improvisei um rabo de cavalo e embolei em torno do elástico.
-Você tem um cabelo muito comprido – a chefe comentou, enquanto observava impassível toda a minha manobra para escondê-lo sob o boné.
Acho que isso não foi um elogio.
Hilda continuou olhando para os meus cabelos, até me deixar constrangida. Girei nos calcanhares e saí do vestiário. Ela surgiu logo atrás, ainda com a expressão pensativa.
-Venha – ordenou.
Fizemos um tour pela loja, com Hilda me apresentando primeiro ao pessoal da limpeza e depois, aos demais funcionários que estavam no turno da manhã.
De repente, eu vi aquele cara... Sabe aquele tipo de pessoa ameaçadora que a gente percebe só de olhar?
-O chefe da segurança - Hilda murmurou com óbvio desprazer. O homem nos encarava fixamente. Ele não se aproximou, mas sorriu para mim. Achei que seria educado retribuir. Mas ela me repreendeu baixinho. -Não lhe dê corda. Tome muito cuidado com Simão Cridder. Ele não é flor que se cheire.
O que exatamente isso queria dizer? Eu apertei o passo para acompanhá-la. A mulher andava cada vez mais rápido!
Quando passamos bem na frente dele, percebi que o homem era mesmo enorme. Devia ter uns dois metros de altura. Nem o fato de estar vestindo um uniforme, como os demais seguranças, disfarçava a aparência de viking.
-Carne nova, Hilda? - ele deu uma risadinha em tom baixo, que aos meus ouvidos soou tão obscena quanto a pergunta.
-Não se meta com as minhas empregadas - Hilda sibilou, sem diminuir o passo.
Eu continuei com ela, vendo o homem piscar para mim. Desviei o rosto e rezei para não cruzar nunca mais o seu caminho. Mas eu sabia que isso era impossível, trabalhando num ambiente tão pequeno. Mais cedo ou mais tarde... Estremeci, sem conseguir concluir o pensamento.
A chefe deve ter lido a minha mente, porque comentou:
- O segredo é nunca ficar sozinha com ele. Sempre se assegure de que há mais alguém por perto. Se não houver, vá para qualquer outro lugar onde tenha gente. Entendeu bem?
Fiquei com medo de perguntar o que o homem tinha feito para que eu tivesse que tomar essas medidas.
Hilda me mostrou onde ficava o material de limpeza, deu-me o mapa dos setores, e como eu deveria proceder de modo que não atrapalhasse os clientes, ou os colegas. Avisou-me, ainda, que os funcionários cumpriam uma escala de trabalho diurna e noturna, em semanas alternadas.
Ela encerrou suas explicações prometendo me encaixar numa escala de serviço fixa até o final do dia. A partir daí, deixou-me entregue ao time de limpeza, como ela gostava de chamar suas funcionárias, composto de três garotas encarregadas de limpar os banheiros de cada andar.
Não tive um entrosamento 100% com elas. Mas por outro lado, não houve nenhum atrito. Apenas me trataram como a "garota nova"... Típico. Na escola não era diferente, quando um aluno de fora pegava o bonde andando. Os outros alunos o faziam se sentir excluído. Assim, minhas colegas de trabalho conversavam apenas entre elas, e só me dirigiam a palavra quando queriam me esclarecer, com riqueza de detalhes, os procedimentos para se limpar os lugares mais nojentos – especialmente os vasos sanitários... Elas me contaram coisas realmente repulsivas. Fala sério! Eu tinha escrito na testa: d-o-n-d-o-c-a? Acho que elas duvidavam que eu tivesse a mesma resistência ou capacidade que elas para executar as tarefas.
Ao longo do dia, eu provei que estavam redondamente enganadas. Podia não ser tão forte, mas minha determinação era maior.
Carmen foi ao meu encontro no vestiário. O expediente tinha acabado, e ela estava ansiosa para saber como eu me saí. Voltamos juntas para sua casa, tagarelando sobre os acontecimentos do dia durante todo o percurso. Ela aproveitou para me explicar algumas coisas sobre o funcionamento da loja e sobre a minha contratação.
Aproveitei para lhe contar a respeito das recomendações bizarras que a chefe da limpeza me fez, a respeito do tal Simão Cridder... Achei que daríamos boas risadas. Mas não foi o que aconteceu. Carmem ficou muito séria, e me surpreendeu ao afirmar com veemência:
-Houve um episódio no ano passado - ela suspirou ao ver minha expressão confusa. – A garota alegou estupro, mas nunca ficou provado. E como a polícia descobriu que o namorado dela estava envolvido com drogas, foi a palavra dela contra a de Cridder.
Carmen baixou a cabeça e encarou os próprios pés.
- Mas todas as funcionárias têm algo contra ele. Cridder sempre faz piadinhas indecorosas, convites obscenos...
-Ninguém tomou providências? As garotas não pensaram em dar queixa? Se todas fizessem isso, seria difícil a polícia não acreditar, não acha?!
Carmen me lançou um olhar exasperado.
-Elas têm medo - respondeu, simplesmente. - Você não conhece o Cridder, nem sabe com quem ele está envolvido... O cara é barra-pesada. É melhor ficar esperta. Estamos sujeitas a esse tipo de coisa em qualquer lugar. Portanto, não dê mole para o perigo...
Fala sério! Era o cúmulo que, em pleno século vinte e um, as mulheres ainda pensassem assim. E eu é que vim do interior... Nós não tínhamos que nos conformar em sermos tratadas com desrespeito. Eu li vários artigos na internet sobre a luta das mulheres para mudar a nossa condição ao redor do planeta, desde a época das sufragistas. Mas estava na cara que os benefícios dessas mudanças não alcançavam todas as esferas sociais, nem todos os países. As mulheres continuavam sendo agredidas e ameaçadas. E quando viviam por conta própria, parecia ser mais difícil serem levadas à sério.
Brinquei com Carmen, perguntando se o tal Cridder era da máfia, para que as pessoas tivessem tanto medo dele. Ela não riu da brincadeira.
-Algo do tipo... - foi a resposta que me deu.
Mediante isso, achei melhor seguir o seu conselho original de não dar "mole para o perigo".
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