O bom doutor
Respirei fundo e agradeci silenciosamente por encontrar algumas revistas para me distrair. Havia muitas ali, espalhadas sobre a mesa – de moda, atualidades, cinema... Quando eu estava na metade da terceira revista, um sinal silencioso deve ter sido acionado, porque a recepcionista se levantou e entrou no consultório do médico com minha pasta de exames.
Alguns minutos depois, a porta se abriu e a moça reapareceu, seguida por um homem alto e elegante. Aquele só podia ser o Dr. Barringer. A primeira impressão que tive dele foi boa. Melhor do que a que tive do Dr. Talbott. O psiquiatra me encarou direto nos olhos. Isso foi legal, eu acho... Não foi um olhar "de raio laser" ou "superior", do tipo que os médicos usam, e que eu tanto detesto.
Analisei rapidamente a sua aparência, algo que ele parecia estar esperando. Pelo menos, não demonstrou se incomodar com a minha atitude. Achei isso legal, também. Ele estava usando o mesmo jaleco branco que eu já estava habituada a ver por toda parte; e também tinha luvas cirúrgicas, como as que eu vi nas mãos de Adriano. Era inegavelmente boa pinta, simpático, e me lembrou um pouco aquele médico famoso do seriado de TV... O Dr. Shepherd.
Oh, sim... Apesar de não gostar muito dos médicos em geral, eu não perdia um episódio de Grey's Anatomy, nas madrugadas de sábado. Tal como o McDreamy, o "bom doutor" era um tremendo gato! Seu tipo chamaria a atenção de qualquer mulher, sem sombra de dúvida: cabelo cor de areia, liso e curto; maxilar forte; duas covinhas nas bochechas que apareciam quando ele sorria; um quê de sensibilidade e compaixão nas sobrancelhas bem desenhadas... O único "porém" é que o Dr. Barringer parecia ser jovem demais para exercer a profissão. Eu poderia perfeitamente confundi-lo com um dos estudantes de medicina. E mesmo assim, havia uma aura de autoridade em torno dele que me inspirou confiança.
-Srta. Bacci seja bem-vinda ao meu consultório - o sorriso dele se ampliou.
-Pode me chamar de Melissa, por favor - balbuciei, minha desconfiança voltou com força total.
Ele me ajudou a levantar da cadeira e eu fui andando na frente, meio cambaleante, enquanto ele trocava algumas palavras com sua secretária.
Eu sabia o motivo do meu nervosismo. Afinal, eu já tinha passado por aquilo e sabia o que esperar de um psiquiatra. Ele iria me diagnosticar como maluca ao menor descuido da minha parte... Exatamente como o médico do governo que me avaliou, durante a minha infância. Com medo de fornecer munição ao inimigo, lembrei-me do conselho dado por outra menina órfã, há muitos anos: Na dúvida, preste atenção em tudo. Escute, mas não fale. Assim, travei a mandíbula e esperei. Nem me atrevi a examinar a sala dele, com medo de ser mal interpretada.
O Dr. Barringer entrou e fechou a porta.
-Ok, Melissa! Pode me chamar de Adam, se preferir. Por favor, sente-se.
Apesar da poltrona confortável, eu fiquei rígida; mais rígida do que a cinta me obrigava a ficar... Acho que até me esqueci de respirar por alguns segundos. Fixei os olhos no tampo de vidro da mesa dele, abaixo da janela, e não me atrevi a contemplar a maravilhosa vista do jardim que ele provavelmente teria daquele ângulo do edifício. Não era recomendável deixar que o ambiente tão calmo e repousante do consultório baixasse a minha guarda.
O médico parecia estar "lendo" tudo o que se passava na minha mente, pois sorriu suavemente e comentou:
-Você não precisa se sentir ameaçada, Melissa. Tem a minha palavra de que nada do que conversarmos sairá dessas quatro paredes. Tampouco estou aqui para fazer avaliações ou julgamentos. Meu único objetivo é ajudá-la. - Ele se recostou displicentemente na estante cheia de livros e cruzou os braços. Seu gesto me chamou a atenção para a parede ao lado dele, onde havia alguns diplomas emoldurados.
-Isto é, se você me permitir ajudá-la – ele acrescentou. - Vamos combinar uma coisa? Você não me classifica como carrasco, e eu não a classifico como doida varrida. Que tal?
Depois dessa, eu tive que rir. O ambiente se descontraiu.
O médico não se sentou de imediato. Ao invés disso, foi até uma mesinha cuidadosamente arranjada, onde havia um pote cheio de biscoitos, uma pequena vasilha com sachês, xícaras, talheres, guardanapos, e duas garrafas térmicas – uma preta e outra, vermelha.
-Gostaria de um café? - ele ofereceu, apontando para a garrafa preta. - Biscoitos?
Eu fiz que não, enquanto observava ele se servir da garrafa vermelha. O Dr. Barringer acomodou-se atrás de sua mesa, e permaneceu alguns segundos calado, apenas sorvendo o café, Ele retirou meus exames de uma pasta que estava sobre a mesa.
-Soube que está tendo pesadelos terríveis...
Terreno perigoso. Ele percebeu meu embaraço e suspirou.
-O Dr. Talbott mencionou que você não consegue se lembrar de nada do que lhe aconteceu, entre o período em que deixou Travessia de Dailey, e chegou na Muralha.
Acenei afirmativamente. Ele esperou. Baixei os olhos. O silêncio se instalou. Eu o encarei de soslaio.
O Dr. Barringer torceu os lábios e se recostou na poltrona. -Não teve nenhum flash, nenhuma intuição que lhe desse uma pista sobre o que aconteceu, desde que foi internada?
-Flashes, não. Mas os sonhos...
-Sim, continue... - ele me encorajou, parecendo sinceramente interessado. O seu jeito tão delicado, tão gentil, me desarmou. Senti que as comportas da represa estavam quase ruindo... e eu estava prestes a fazer justamente o que minha razão gritava para não fazer.
-Eu sempre tive sonhos estranhos. Mas, ultimamente, estou tendo sonhos repetitivos. Algumas vezes, vejo uma fera de olhos incandescentes que caminha entre as árvores... parece ser um felino superdesenvolvido. De repente, alguma coisa me joga no chão, deixando-me momentaneamente cega; alguém me levanta nos braços e me coloca dentro de um carro... E então, eu simplesmente acordo. - A razão continuava gritando e meu coração praticamente saltava pela boca. Mas eu ignorei a ambos. - Noutras ocasiões, eu sonho que estou dentro de um bosque. Tem um rapaz lá, vestindo uma túnica. Parece ser romano. Há uma muralha no horizonte e uma estátua estranha... segurando um símbolo igualmente esquisito... - engoli com dificuldade.
O Dr. Barringer me lançou um olhar difícil de interpretar. Os lábios se abriram ligeiramente e as sobrancelhas levantaram, formando uma expressão de reconhecimento. Ou seja, ele tinha entendido que eu estava louca. Só poderia ser isso. Minha boca secou.
Ele bateu suavemente com a tampa da caneta sobre uma folha de papel.
-Você já teve outros sonhos parecidos com estes?
Hum... Eu esperava que ele fosse me perguntar mais detalhes sobre o que acabei de lhe contar. Mas não... Eu devia parar de me antecipar ao que ele poderia ou não fazer. Devia ao menos lhe dar um voto de confiança. Afinal, não foi isso o que ele me pediu?
-Sim, eu já tive outros sonhos estranhos - respondi. - A maioria deles envolve um pássaro grande e escuro que me persegue. Bem, não é exatamente um pássaro... é uma "coisa" que voa. Meio homem, meio monstro, com um par de olhos que são duas fendas escarlates... - estremeci com a lembrança. - Eu sempre acordo quando ele está quase me pegando. Só que ultimamente, eu não tenho sonhado com ele.
Silêncio. Ele parecia meditar sobre o que eu disse; seus dedos giravam a caneta distraidamente.
-Isso só acontecia na Comarca de Hemp?
-Sim. E... e-eu... via a criatura acordada também.
Pronto! Agora ele vai me internar num hospício.
O médico me encarou intrigado. - Como assim?
Respirei fundo e agarrei com força os braços da poltrona. Tive dificuldade de fazer as palavras saírem.
-Quando eu era criança, comecei a ter o que o psiquiatra do governo classificou como "processo alucinatório". Eu vivia em um orfanato, e esse foi um dos motivos porque nenhum casal quis me adotar. Pensavam que eu fosse doente da cabeça... Perigosa! - eu fiz uma careta cômica, para ocultar a forte emoção que essa confidência desencadeava. - Eu via coisas que não estavam lá. A alucinação mais frequente era essa, do monstro voando para cima de mim. Sempre que ele aparecia, eu desmaiava.
-Tem ideia de quando começou a ver o monstro alado? - ele perguntou tranquilamente.
-Tenho sim. Como poderia esquecer...? - dei um sorriso triste. - Comecei a vê-lo no dia em que minha mãe me abandonou... foi no mesmo dia em que papai morreu.... Trágico, não acha? - ele não respondeu, naturalmente. Eu prossegui: - Pois é... Foi por isso que fui viver no orfanato do qual lhe falei. Era um orfanato presbiteriano. - Eu estava começando a tagarelar; algo que sempre acontecia quando ficava nervosa. - A última diretora não gostava do termo "orfanato". Dizia que isso era coisa do século passado. Ela preferia chamar o lugar de "casa de acolhimento". – Eu me interrompi, sentindo-me ridícula. Ergui a sobrancelha em expectativa. Mas o "bom doutor" não parecia inclinado a interromper a minha narrativa. Então, continuei falando, falando, e falando...
***
Devo reconhecer que senti um grande alívio só pelo fato de o Dr. Barringer não ter me olhado com superioridade, ou censura, como eu temia que fosse acontecer. Minha experiência com médicos e conselheiros escolares, durante o período em que vivi no orfanato, não foi nada agradável.
Não que alguns adultos não quisessem me ouvir. Bem, a maioria não queria, mesmo. Mas aqueles que se predispunham, logo ficavam angustiados por não saberem como me ajudar. O conselho gestor do orfanato me empurrou para uma avaliação médica que decretou a minha incapacidade mental de aprendizagem e de socialização. O médico distorcera tudo o que eu havia lhe confidenciado, com ares de condescendência e compreensão fingida... Por causa dele, eu passaria a receber aulas particulares especiais – com o aval das assistentes sociais do governo - enquanto as outras crianças frequentariam normalmente a escola de Groveton. Por causa do médico do governo, eu perderia a chance de encontrar um lar adotivo.
Foi por causa disso que aprendi a esconder as alucinações e os meus sentimentos; foi assim que me fechei em mim mesma... Eu me afastei das pessoas para não me magoar. Graças ao reverendo Merritt, outra avaliação médica determinaria que eu estava apta a frequentar a escola. Então, quase uma adolescente, eu finalmente poderia ir à escola de Groveton.
Foi um período difícil. Tentei ser aceita pelas outras crianças, mas fui ridicularizada. Ninguém da turma normal quis se aproximar de mim. Os professores, de posse do meu relatório, tratavam-me como uma aluna limitada e instável emocionalmente... Sempre havia alguns estudantes que armavam ciladas para me humilhar, nos intervalos das aulas, ou na saída da escola. Para quem tinha sonhado em conviver com outras crianças e ser considerada normal, minha vida escolar revelou-se um verdadeiro inferno.
Então, para evitar problemas, a direção da escola me colocou na turma dos alunos problemáticos.
Passei a me sentir um pouco mais leve depois que comecei a frequentar as sessões com o Dr. Barringer. No entanto, os aspectos financeiros da minha permanência no hospital deixavam-me cada vez mais apreensiva... Ter à minha disposição um "ouvinte profissional" deveria ter um custo; ficar internada num hospital daquele porte, com assistência 24 horas, deveria ter um custo; e os exames, então! Não queria nem pensar neste custo, em particular. Eu não tinha sequer um plano de saúde que cobrisse parte do tratamento...
Tá certo que minhas notas eram medíocres, e que eu era limitada por causa dos meus problemas mentais... Mas eu lia muito, assistia à televisão, e xeretava bastante na internet. Portanto, acreditava conhecer o suficiente sobre as "engrenagens do sistema" e o preço das coisas... tanto para pobres quanto para ricos. Especialmente depois que assisti àquele filme, com o Denzel Washington: "Um Ato de Coragem".
Tentei conversar com o Dr. Talbott e o Dr. Barringer, mas eles não me deixaram sequer esboçar os meus temores, dizendo que eu deveria me preocupar exclusivamente com o meu restabelecimento e esquecer o "sistema".
E as coisas foram se complicando... Especialmente, quando me informaram que eu seria transferida para um novo quarto, sob a alegação de que precisava de paz e tranquilidade. O quarto ficava em uma ala menos movimentada, no segundo andar.
Até então, a baia do quarto compartilhado que estive ocupando situava-se numa ala movimentada. Equipes de enfermeiras e de residentes circulavam o tempo todo, responsáveis pelo andamento dos tratamentos prescritos pelos médicos supervisores. Seria ótimo poder ficar longe de toda aquela agitação... e principalmente, evitar um possível reencontro com a tal Ásia Não-sei-do-quê. Por outro lado, eu perderia a chance de, quem sabe, avistar Adriano mais uma vez. Isso me deixou triste.
Quando a enfermeira empurrou minha cadeira para dentro do novo quarto, levei um tremendo choque. O cômodo tinha um banheiro privativo, e todas as mordomias de um quarto particular. Mais parecia um apartamento, com sala de estar, sofás e uma mesinha de centro; uma cozinha, com mesa retrátil acoplada à parede; um laptop; e um televisor conectado à TV a cabo, com um zilhão de canais... Eu não fazia nem ideia de como usar todos os botões do controle remoto!
Meu Deus! Aquela era mesmo a ala particular. Durante quantos anos eu teria que descascar batatas, lavar pratos, encerar corredores, e limpar banheiros, para conseguir pagar por todo aquele luxo?
***
Quando eu achava que não poderia ficar pior... Na manhã seguinte, em que eu voltava do consultório do psiquiatra, tive a surpresa de encontrar minha antiga mala xadrez sobre o sofá. Foi um baque para mim: ficar cara a cara com um objeto que me conectava ao passado. Isso me fez transpirar e ter calafrios ao mesmo tempo.
Olhei para ela sem coragem de abri-la. Contudo, ficar encarando os adesivos infantis colados sobre a tampa não contribuiria em nada para que eu me acalmasse. Ao contrário, o coração ficava mais acelerado a cada instante em que eu hesitava.
Soube o exato momento em que a crise começou. O quarto começou a girar... e pela janela, avistei uma sombra longínqua, muito familiar, batendo ruidosamente suas asas. Fazia tempo que ele não me visitava... Tentei combater a tontura respirando devagar.
O Dr. Talbott entrou no quarto nesse instante. O que quer que pretendesse dizer ou fazer ficou esquecido quando percebeu o que se passava comigo. Rapidamente, mas com discrição, ele apertou o botão de emergência preso por um fio à parede. Em seguida, veio até mim e começou a medir a minha pulsação.
Será que ele conseguia ouvir o martelar bizarro do meu coração?
-Respire, Melissa. Você vai ficar bem. - Ele olhou para a porta um segundo antes que fosse escancarada por uma maca, introduzida pelas mãos de dois enfermeiros.
Quando dei por mim, já estava sobre a maca com a cara enfiada numa máscara de oxigênio. Notei vagamente que havia um tubo flexível e transparente entre os dedos do enfermeiro, conduzindo um líquido incolor direto para a veia do meu braço.
O mal-estar piorou e a vista foi embaralhando... Mas houve um momento... - quando entramos no elevador e fui posicionada de frente para a janela alta do lado oposto do corredor. Lá estava a sombra me observando do lado de fora, com seus olhos incandescentes – as asas batendo de maneira cadenciada...
-Não deixem que ele me mate! - eu apontei desesperadamente para a janela.
Pouco antes de as portas do elevador se fecharem, os três homens olharam na direção que eu tinha apontado.
-Não há nada lá fora, Melissa – comentou o médico, num tom neutro.
Eu tentei me levantar da maca, mas os enfermeiros me seguraram. O Dr. Talbott pegou meu outro braço livre e aplicou uma injeção de alguma coisa. A picada doeu, e muito.
O último pensamento coerente que tive foi sobre a idiotice de tentar saltar de uma maca dentro de um elevador apertado. Bem... não foi um pensamento tão coerente assim.
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