Mercado cruel
No segundo escritório que visitei, disseram que a vaga fora recentemente preenchida. Mas quando eu estava quase saindo, escutei alguém comentar:
-Linda Jones pensa que a gente faz caridade por aqui.
E outro alguém mencionou: - Eu conheço essa garota. - Gelei, ao reconhecer o dono da voz. Ele estava sentado perto da porta. - Estudamos na mesma escola. Ela é completamente pirada. Vê coisas... Assombrações... Tipo pássaros gigantes, sei lá...
Outro alguém gracejou: - Vai ver ela andou assistindo muito A Caverna do Dragão...
Eles deram boas risadas enquanto eu fechava a porta, sentindo-me humilhada. (Ainda mais que eu realmente era fã de A Caverna do Dragão).
Pensei que em Berlim, eu estaria livre do meu passado... Mas deveria saber que era grande a probabilidade de reencontrar alguns ex-alunos da escola de Groveton. Se eu soubesse que Pete Dawson – justamente ele! - estaria naquele escritório, jamais teria ido até lá... Esse garoto ficaria gravado para sempre na minha memória como o meu primeiro beijo desajeitado atrás da quadra de esportes. Ademais, ele espalhou para toda a escola que eu beijava muito mal...
Dizer que uma garota não sabe beijar era o mesmo que provocar o seu assassinato social. Bem, quanto a isso, eu já estava mais do que "morta" e enterrada. Mas a maluca da escola ter fama de beijar bem, seria um pouco melhor do que dizer que beijava mal. Isso, sim, era sofrer um duplo assassinato social.
Esse triste capítulo da minha vida pelo menos serviu para que eu acordasse dos meus primeiros devaneios românticos; eu devia ter desconfiado que o garoto mais popular da minha turma não daria mole para alguém como eu, a não ser que fosse por gozação.
Saí do escritório decepcionada, mas não desisti de procurar... Eu sabia que seria difícil, já que a região ainda lutava para superar a crise da Millie Móveis. Mas não podia me deixar abater. Não tinha mais esse direito!
***
Enquanto isso, eu tentei me aproximar das filhas da sra. Jones. Só que não deu muito certo. As garotas não simpatizaram comigo desde o instante em que sua mãe anunciou que eu moraria com eles.
Os dias foram se arrastando... Eu comecei a fazer trabalho voluntário, na esperança de que me contratassem. Pegava alguns bicos também – levando alguns cães ociosos para passear, trabalhando como babá...
Para piorar a situação, a filha mais velha da Sra. Mortimer (uma vizinha dos Jones para a qual eu trabalhava como babá), era a atual namorada de Pete Dawson. Mais uma das maquinações do destino atuando contra mim... O mal de viver em comunidades pequenas. Todo mundo se conhece... Eu o vi saindo da casa, numa sexta à noitinha; e ele também me viu no quintal, brincando com o garotinho que eu tomava conta. Dawson endereçou-me um sorriso do tipo "eu sei o que você fez no verão passado"... e foi-se embora. No dia seguinte, a Sra. Mortimer me chamou para me pagar e dispensou definitivamente os meus serviços.
Os donos dos cães também não quiseram mais que eu os levasse para passear...
Era frustrante ser perseguida pelo passado e pela falta de oportunidades. Sem os bicos para juntar uns trocados, eu passei a bater perna pela cidade. A única coisa positiva é que, àquela altura, já conhecia toda Berlim – podia percorrê-la de olhos fechados.
Numa noite excepcionalmente abafada, eu estava a meio caminho da garagem quando ouvi, sem querer, uma discussão que ocorria na cozinha dos Joneses. Provavelmente eles achavam que eu já tinha me recolhido... Por isso falavam sem nenhuma cautela.
-Qual é, mãe!? Vai continuar sustentando essa garota?
-Melissa é uma ótima moça, querida. Educada, gentil, honesta, prestativa...
-Humpf! Não sei, não, mãe. Já notei que andou sumindo algumas coisas do meu quarto. E isso nunca aconteceu antes.
-Não diga uma coisa dessas, minha filha. Esse tipo de acusação é muito grave!
-Ainda não tenho certeza, mas quando tiver, a senhora vai ter que tomar uma providência.
-Jenny têm razão, Linda. – interveio o Sr. Jones. - Como pôde trazer essa garota problemática pra cá, sem nos consultar antes? Se não bastasse a fama da mãe... Ouvi dizer que a garota é instável, do tipo que não dá para confiar. Talvez seja por isso que não consegue arrumar emprego. O reverendo Merritt errou em manter uma criança com distúrbios mentais no meio de crianças saudáveis. Deveria tê-la mandado para uma instituição especializada enquanto ainda era tempo. Agora, veja só...
-E o que seria dela, se eu não tivesse lhe oferecido um teto para ficar...?
-É um problema social. Não nosso. Ela não pode continuar conosco assim, indefinidamente! - ele atalhou, com a concordância de Jennifer.
Seguiu-se um breve silêncio, antes que a Sra. Jones voltasse a falar:
-Que eu saiba, Melissa não tem crises desde os onze anos. Eu acredito que ela já superou seus problemas, e que é completamente inofensiva.
-Inofensiva... Você garante, Linda? Tem certeza absoluta de que não está colocando nossas filhas em risco?
O silêncio dela não devia doer. Mas doeu.
-Não era para ser por muito tempo, Bill. - A Sra. Jones suspirou. - Estou certa de que Melissa vai conseguir um emprego. Então, vou ajudá-la a encontrar um local para onde possa se mudar e... Bill, você mesmo poderia conseguir uma colocação pra ela onde trabalha!
-O quê!? Você acha que vou me responsabilizar por essa garota e arriscar o meu próprio emprego? E se ela fizer alguma coisa? Com que cara eu fico? Não, mesmo!
Eu caminhei pé ante pé, desejando alcançar a garagem sem ser notada.
-Está demorando muito pra Melissa se arranjar. - Jenny insistiu. - Será que ela não está fazendo corpo mole, não? Parece-me que não tem se esforçado o quanto deveria...
Eu não quis ouvir mais nada. Saí correndo, rezando para que o portão de comunicação não rangesse. Meu coração estava na boca quando alcancei a segurança do meu quarto.
***
Foi uma noite mal dormida, aquela. Eu me revirava em busca de uma posição mais confortável e de uma solução para o meu problema. Vi o dia amanhecer sem conseguir nenhuma das duas coisas... Então, resolvi descer cedo para tomar o café da manhã, pois não me sentia forte o suficiente para encarar as meninas, ou o Sr. Jones, sem trair a minha mágoa. Ainda bem que eles sempre se levantavam mais tarde.
Como de costume, a Sra. Jones já estava de pé, preparando a refeição. Eu me aproximei e comecei a ajudá-la em silêncio.
Não sei se minha percepção fora afetada pela discussão da noite anterior, mas senti que havia uma nova tensão no ar. Ela não estava me olhando nos olhos, o que não era bom sinal.
Torci os lábios.
-Hoje vou sair mais cedo... - anunciei, enquanto colocava os pratos sobre a mesa - Quero visitar o escritório de uma firma que está se instalando na cidade. Ouvi dizer que eles estão precisando de gente nova. Também vou distribuir mais alguns currículos... – Que currículo! - pensei. Feito de um único parágrafo. Os empregadores deviam achar hilário.
Ela assentiu, sem tirar os olhos do bule de café.
-Já recebeu alguma resposta dos outros lugares em que entregou o seu currículo?
-Ainda não... - Minha voz falhou.
Ela assentiu de novo, com um sorriso que me pareceu forçado.
-Boa sorte, então. - Ela se levantou de olhos baixos. – Bem, tenho que me trocar.
É, eu vou precisar de toda a sorte do mundo! - pensei, enquanto recolhia os pratos e os colocava na lava-louças.
Minutos depois da Sra. Jones ter deixado a cozinha, voltei à garagem para tomar meu habitual banho gelado. Estava preocupada com a roupa. Gastei vários minutos tentando me arrumar o melhor possível para uma possível entrevista de emprego.
Quando estava saindo pelo portão lateral, percebi que o Sr. Jones e as duas filhas estavam entrando no carro. As garotas me lançaram olhares hostis e depois me ignoraram, conversando animadamente entre si. Ele, por sua vez, assumiu o volante e fingiu não me ver.
Seria demais pedir uma carona até o local da entrevista. Por isso, nem ousei pedir.
***
Quinze minutos de caminhada depois, eu entrava no prédio de dois andares, onde os candidatos seriam entrevistados. Na cidade, todos comentavam que esta era uma grande oportunidade de emprego, que iria injetar ânimo no mercado local. Eu torcia para que fosse a solução para os meus problemas, também.
O pequeno prédio estava em reforma, provavelmente para receber a firma que logo iria se estabelecer. Os cômodos dianteiros tinham os pisos recobertos por jornais velhos, e o cheiro de tinta fresca impregnava o ar. Apenas duas salas, no fundo do corredor, já estavam equipadas para funcionar adequadamente. Segui o som das vozes que vinham de lá.
No caminho, porém, avistei uma plaquinha onde estava escrito "W.C." e entrei correndo – meu coração parecia estar saltando pela boca. Faltavam poucos minutos para a hora marcada e eu tentava me concentrar no que iria dizer durante a entrevista – precisava passar ao recrutador uma boa impressão. Respirei fundo várias vezes e olhei para a minha imagem refletida no espelho oval. Eu vou conseguir! Eu vou conseguir! Ajeitei os cabelos e lavei o rosto, tentando me acalmar.
Foi pensando positivo, com o firme propósito de conquistar a minha vaga, que alcancei a recepção. Contudo, tão logo reparei nos demais candidatos, senti o meu ânimo murchar um pouco.
Um homem fazia a triagem das pessoas de acordo com o perfil do cargo pretendido ou conforme as qualificações apresentadas no currículo. Olhei ao redor, para as outras candidatas. Todas tinham uma aparência agradável e estavam muito bem vestidas. Fiquei preocupada, porque perto delas, eu estava em franca desvantagem. Era irônico... Mas cheguei à triste conclusão de que para conseguir um emprego, você deveria aparentar que não precisava dele...
Um senhor de idade surgiu na porta e começou a nos chamar, uma de cada vez, por ordem de chegada. Acho que deveria ter umas dez garotas na recepção. E como eu fui a última... Já era quase meio dia quando chegou a minha vez.
O homem que me entrevistou foi extremamente gentil. Eu me senti à vontade com ele... Mesmo quando analisou o meu currículo, e comentou com sinceridade que a falta de experiência não me favorecia, foi tão gentil, que consegui organizar meu raciocínio para justificar por que a empresa só ganharia com a minha contratação.
Ele acabou se convencendo de que eu era uma pessoa esforçada.
Aquela foi a primeira grande notícia do dia: eu tinha passado pela primeira etapa. A entrevista final ocorreria no período da tarde do mesmo dia – quando as candidatas aprovadas conversariam com alguém que daria a palavra final. Certamente, algum chefe.
Saí do prédio tão feliz, que nem reparei no calor, ou no sol forte. Decidi almoçar em alguma lanchonete próxima, onde fiquei o máximo de tempo possível. Depois, dei uma volta no quarteirão e retornei ao prédio no horário combinado.
Novamente procurei o WC, lavei o rosto, e ajeitei os cabelos - pensando absurdamente que fora este o ritual que me trouxera sorte, pela manhã. E eu não queria ignorar nenhum detalhe, nessa altura do campeonato!
Respirei fundo para me acalmar e voltei à sala da recepção.
Desta vez o local estava quase vazio. Só havia duas garotas sentadas perto da janela. Eu caminhei até elas e me acomodei na cadeira vaga, entre as duas. Eu as cumprimentei, mas nenhuma delas respondeu. Apenas a garota da esquerda acenou levemente com a cabeça. Tinha uma ótima aparência. Vestia um terninho azul-marinho; estava discretamente maquiada; e tinha um coque perfeito na nuca - nem um fio de cabelo fora do lugar... Torci os lábios, ao mesmo tempo em que fazia uma discreta vistoria na minha calça jeans velha e na camiseta preta básica. A garota parecia tão... sofisticada. Ao passo que eu parecia tão... simplória. Humpf! Estava na cara que ela tinha aproveitado a hora do almoço para voltar para casa e trocar o figurino.
Desviei os olhos da "garota sofisticada" para a outra candidata, que usava um traje menos formal, mas não menos elegante – calça preta de cintura baixa, blusa roxa (com babadinhos no pescoço), e um cinto fashion; para completar o visual de topo model, um colete de camurça preto. Os cabelos da "garota fashion" eram um show à parte... Sedosos, brilhantes, e bem cortados, como os da Farrah Fawcett, em As Panteras. Automaticamente levei a mão aos meus cabelos, tentando ajeitá-los com os dedos. Perto dela, os meus pareciam uma vassoura de bruxa...
Notei que a "garota fashion" não escondia o seu desdém enquanto avaliava abertamente a minha aparência.
Levei um susto quando a porta atrás de nós se abriu e alguém chamou a garota de coque. Ela ficou uns dez minutos lá dentro. Quando saiu, parecia abatida. Se ela estava abatida, imagine só como eu me sentiria daqui a pouco!!!
O homem apareceu na entrada e chamou o meu nome com impaciência. Levantei de um pulo e entrei na sala.
Notei que ele não era nenhum garoto, mas não deveria ter mais que trinta. Parecia com um daqueles vendedores de carros usados que a gente vê na televisão - o cabelo escovinha combinando com o colete e a gravata borboleta... Enquanto contornava a mesa, ele fez um gesto brusco para que eu me sentasse. Engoli em seco. Aonde estaria o gentil senhor que me encorajara a participar daquela segunda etapa? Ele tinha gostado de mim... Eu preferia mil vezes tratar com ele do que com esse sujeito arrogante.
Ele olhou rapidamente para a meia página do meu currículo e deu um sorriso duro.
-Como o Albert deixou passar isso? - falou consigo mesmo, sem se preocupar se estava sendo rude.
Ele pegou o currículo da candidata anterior - com algumas páginas a mais que o meu - e pesou ambos na palma de cada mão, enquanto me encarava. Pelo visto, era dado a atitudes teatrais para demonstrar o seu ponto de vista. Tratei de engolir a vontade de lhe dizer uns bons desaforos.
-O que a levou a crer que seria admitida nesta firma?
-A minha vontade de aprender e de fazer um bom trabalho - respondi calmamente. Quem me olhasse nem perceberia que eu estava a ponto de gritar.
-Hmmm... - ele ergueu a sobrancelha. Seu olhar perdeu um pouco do cinismo, e agora refletia pena. - E como você faria bem esse trabalho?
-Eu sei utilizar os principais programas de computador, sou uma pessoa educada e atendo bem as pessoas.
Ele suspirou.
-Também sou criativa. Sei desenhar, lidar com cores... - improvisei. - Sou organizada. Entendo como se elabora um arquivo, pois observei como as tutoras faziam no orfa... na instituição onde atuei como voluntária.
Ele suspirou novamente.
-Para uma secretária, isso só não basta. Você não tem nenhuma experiência comprovada - ele bateu de leve na folha de papel do meu currículo, como para provar o óbvio. - Além do mais, é preciso vestir-se bem, ter uma boa apresentação.
Eu também suspirei, derrotada. Não tinha mais nada a perder.
-Garanto que saberei me vestir muito bem, se tiver um salário decente a cada final de mês.
Ele riu. - Há lógica em seu raciocínio. - Então ficou sério de novo. - Mas não tenho tempo para treiná-la, nem para esperar trinta dias de desleixo, até que você possa se portar de acordo com o cargo. Eu necessito de alguém pronto para "funcionar" no trabalho.
Eu me levantei. Não havia mais nada a dizer.
-Desculpe por tomar o seu tempo.
Ele me acompanhou até a porta e chamou a última candidata. Eu não fiquei para saber. Mas provavelmente, o emprego era da Farrah Fawcett.
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