Malévolas
Eu tinha bolhas nos pés, por causa daquelas sapatilhas pouco apropriadas para longas caminhadas. Ganhei os sapatos – como todo o meu guarda roupa – enquanto vivia no orfanato. Estavam tão gastos que havia um furo bem no meio da sola do par direito. Isso machucava o meu pé. Contudo, era de longe o sapato mais bonito e elegante que eu possuía.
A dor nos pés me fez resmungar comigo mesma sobre a merda que a vida podia ser de vez em quando... Continuei andando até alcançar o gramado dos Joneses. O que eu mais precisava naquele momento era de um banho quente e relaxante... Infelizmente, eu só poderia realizar a primeira parte do desejo: o banho. Que seria gelado, e não quente.
Àquele horário, um ventinho frio já começava a soprar; teria de me apressar se ainda quisesse desfrutar do banho.
Será que alguém ficaria aborrecido caso eu entrasse na casa para emprestar um pouco de xampu? Eu achava que não, mas... Com as filhas da Sra. Jones, tudo era possível. Estava tão distraída pensando nisso, que não percebi que a casa não estava vazia. As vozes vindas da sala me alertaram.
Estranho. Normalmente, a Sra. Jones chegava bem mais tarde. As garotas e o pai só chegavam depois dela. Parei no corredor, a meio caminho do banheiro.
-Já que ela não vai embora, acho que precisamos dar uma ajudinha - disse uma das garotas.
-O que quer dizer, Jenny? Como vamos nos livrar de Melissa?
Era de mim que estavam falando, evidentemente. Melissa era o meu nome. Portanto, era de mim que pretendiam se livrar... Meus olhos se arregalaram. Prendi o fôlego e esperei pela resposta.
-É muito simples. Já plantei a dúvida sobre o sumiço das minhas coisas. Agora é só sumir de verdade com algo de valor.
A outra gemeu, como se não entendesse.
-Presta atenção, estúpida! – ouvi o som de algo abafado. Jenny começou a explicar, com evidente má vontade: - Amanhã é sábado. Dia do encontro da família. A vovó vem nos visitar. Você já notou que ela tem o costume de tirar aquele anel de rubi enorme, para ajudar a mamãe com a louça? Pois bem... Você se encarrega de distrair as duas. Eu me encarrego de pegar o anel. E vou colocá-lo adivinhe onde?
No meu quarto - respondi, mentalmente.
-E se a vovó não estiver com o anel?
-Ela sempre traz dinheiro na carteira. A mamãe também tem joias no armário. Alternativas é que não faltam. Desse sábado não passa.
-Por que você tem tanta raiva dela, Jenny? Pra mim, a garota até que parece legal.
-Acorda, Tina! Se ela ficar aqui tempo suficiente para conquistar os coroas, nós vamos ter que disputar os privilégios com ela. Dinheiro, presentes, passeios... E eu não estou a fim de dividir o que é meu por direito com uma idiota qualquer... E maluca, ainda por cima! Vai que a mamãe resolve... tipo... "adotá-la"? Você está disposta a dividir nossa herança com mais uma?
Não esperei para saber o que Christina responderia. Eu já tinha escutado o bastante. Obriguei as pernas a funcionarem e, como um autômato, eu voltei para a garagem completamente esquecida do xampu e do banho. Agradeci durante todo o trajeto ao meu anjo da guarda por ter ouvido aquela conversa tão esclarecedora. Não havia mais dúvidas, eu tinha que sair de lá imediatamente.
Mas agora, o que eu deveria fazer? Eu me sentia encurralada. O que mais doía era saber que, para se livrar de mim, as garotas estavam dispostas a me difamar. Se uma acusação de roubo se espalhasse, eu estaria perdida. Não só não conseguiria mais arrumar emprego naquela cidade, como muito provavelmente iria pra cadeia. Louca e ladra.
Tendo assimilado a ideia de partir como algo inevitável, bloqueei os pensamentos caóticos que ameaçavam a me dominar, enquanto arrumava a mala e a mochila só com as coisas importantes - que eu conseguiria carregar. O resto teria de ficar para trás.
Depois de tudo pronto, puxei a mala para fora do quarto e fui descendo as escadas com cuidado para não tropeçar nos degraus. Já do lado de fora, eu parei, indecisa. Ainda estava meio anestesiada... E agora? O que fazer? Mordi o lábio várias vezes, pensando na melhor maneira de acabar com aquela situação. Por mim, sairia correndo sem olhar para trás. Mas sabia que isso não era apropriado. Afinal, eu devia a Sra. Jones ao menos uma satisfação.
As garotas não estavam em parte alguma da casa, quando voltei. Ainda bem. Mas percebi que o Sr. Jones já tinha voltado do trabalho. Pouco depois, escutei a caminhonete da Sra. Jones entrando pela alameda. Que alívio! Eu poderia fazer o meu discurso de um fôlego só.
Quando entrei na sala de estar, ele olhou da mala para mim, mas não disse nada. Pareceu apenas um pouco surpreso...
Assim que a Sra. Jones apareceu, eu armei o meu melhor sorriso e fui logo dizendo:
-Sra. Jones... Arranjei um emprego. Não é maravilhoso? Começo já na segunda-feira.
Fácil, rápido, e leve. Consegui até parecer sincera, não consegui? Eu esperava que sim, pois detestava mentir.
-Meus parabéns, querida! - ela não escondeu o alívio, ao apertar brevemente os meus braços.
-Até que enfim... - resmungou o Sr. Jones, do outro lado. Nós duas fingimos não ouvi-lo.
-Eu... achei uma pousada baratinha. Fica perto do emprego... Já acertei tudo para ficar lá. Não me entenda mal... - tentei esclarecer as coisas da maneira mais correta e diplomática. - Não quero parecer mal-agradecida. Mas é que está na hora de ter o meu próprio canto. - Dei um sorriso forçado, rezando para que a minha mentira soasse convincente.
-Então, acho que nosso jantar será de comemoração pelo seu sucesso. - Ela disse, enquanto remexia na geladeira.
Eu me senti mal... Mas não podia voltar atrás.
O Sr. Jones ligou a TV e ficou na sala assistindo o noticiário, enquanto a Sra. Jones começava a preparar a refeição. Na verdade, quase tudo estava pronto. Eu tinha deixado vários pratos congelados, na esperança de me fazer útil.
O jantar foi silencioso, mas não constrangedor. A ausência das garotas facilitou as coisas. A Sra. Jones comentou que elas tinham saído para visitar uma colega e que provavelmente dormiriam na casa dela. O Sr. Jones falou muito pouco, exceto quando a esposa perguntou como foi o dia dele. Daí, desfiou um rosário de queixas contra o seu supervisor.
Terminada a refeição, eu ajudei com a louça. Aí veio a primeira saia justa...
-Espere um pouco que vou lhe dar uma carona até a pousada.
Não pude escapar. Dei o endereço de uma pousada que, certa vez, tinha ouvido falar. Nem sabia se ainda ficava lá. Rezei durante todo o percurso para que ela não fizesse questão de me acompanhar.
Para minha sorte, a Sra. Jones estava com pressa. Ela me deixou na esquina que eu havia mencionado e disse que viria me visitar assim que surgisse uma oportunidade. Ou seja, nunca! - pensei com ironia. Principalmente se dependesse das filhas psicopatas, ou do marido rabugento.
Ela acenou em despedida e arrancou, com a caminhonete engasgando. Eu tive de rir... Ela ainda não dominava as marchas. Lembrei-me de acenar em retribuição, mas o veículo já tinha desaparecido.
Soltei um suspiro, pensando no significado da expressão "vitória amarga". É, eu tinha conseguido deixar a casa dos Joneses sem maiores problemas... Mas estava por minha conta. Puxei a mala e segui na direção oposta.
***
Eu me senti tão só! Pensei no meu pai, e em tudo o que perdemos por causa da sua doença... Não em termos materiais, mas de convívio familiar... Apoio. Aconchego. Segurança. Como eu queria que ele estivesse ao meu lado para me consolar! Pisquei furiosamente, tentando afugentar as lágrimas e focar no problema imediato. O que fazer agora? Será que eu tinha dinheiro suficiente para comprar uma passagem de ônibus? Quando dei por mim, estava arrastando minha mala pela calçada sem um plano definido.
Eu podia tentar mais uma vez, no dia seguinte. Uma última tentativa, antes de buscar a sorte em outra cidade. Uma cidade com mais possibilidades... Talvez no litoral.
Amanhã é sábado. Você não vai conseguir emprego num sábado. Tem de ser na segunda. Até lá, iria gastar todo o meu dinheiro com hospedagem e comida... E não havia garantias de que minha situação se resolveria na segunda. E se não se resolvesse... o dinheiro já era! Não iria ter o suficiente nem para comer, que dirá para comprar a passagem.
É... Não dava mais para ficar na Comarca de Hemp. Eu tinha de partir imediatamente.
No caminho, perguntei a um passante onde ficava o ponto do ônibus. O rapaz me apontou a direção e explicou a distância que teria que caminhar para chegar lá.
Meu estômago apertou-se. Senti náuseas só de pensar que amanhã poderia estar em qualquer lugar, longe de tudo o que eu conhecia. O desconhecido era algo mesmo assustador. E o pior é que eu não podia nem fazer planos, pois não tinha ideia do que estava porvir. Talvez as coisas melhorassem, talvez piorassem... Tentei ser otimista, dizendo a mim mesma que pior do que já estava não poderia ficar. Porém, eu sabia que o meu caso não era o único, nem o pior... Certa vez, encontrei um texto na internet que falava sobre o destino dos órfãos que não eram adotados. E, sinceramente, sem apoio, sem instrução, sem amigos...
Melhor não pensar nisso agora.
***
Continuei andando vagarosamente até chegar ao posto de gasolina, onde os ônibus costumavam parar durante o percurso (isto é, segundo a informação que o rapaz me deu).
Entrei na loja de conveniência do posto, vasculhando o ambiente em busca de alguma tabela de horários. O atendente, que me observava com expressão desinteressada, perguntou:
-Em que posso ajudá-la?
-Ônibus.
Mas, ele não sabia quase nada. Apenas que eles passavam por ali. Uma moça que estava sentada num banco comprido se levantou e veio até nós.
-Com licença. Eu estou esperando o ônibus para Gorham. Ele deve chegar daqui a pouco...
Mas ela não sabia me dizer sobre o restante do trajeto. E para uma garota sozinha, como eu, chegar numa cidade desconhecida, perto da meia-noite, poderia ser bastante perigoso.
Achei mais seguro pernoitar em Berlim, e seguir viagem na manhã seguinte. Eu perguntei aos dois se sabiam onde eu poderia encontrar um hotelzinho barato e agradeci pelas informações, antes de deixar a loja sob o olhar especulativo deles. Podia apostar que me acharam nova demais para viajar sozinha. Estariam cogitando se eu não era alguma adolescente fugindo de casa...? Que divertido! Especialmente, se eles chamassem o pessoal da assistência social - pensei com uma pontada de ironia. Minha suspeita se confirmou, pelo menos com relação ao hotel: o rapaz da recepção fez questão de ver a minha identidade.
Eu me registrei e pedi um quarto no térreo para não ter que subir e depois descer as escadas com aquela mala desengonçada. Pela cara do sujeito, era óbvio que não pretendia carregá-la para mim. Paguei e recolhi a chave que ele depositou sobre o balcão.
O quarto era escuro, com a pintura das paredes manchada devido às infiltrações. O carpete parecia não ver a cara de um aspirador de pó há muito, muito tempo... No banheiro, havia lajotas soltas, cheias de mofo, e a fiação do chuveiro estava exposta... Mas, se comparado ao depósito que eu vinha ocupando sobre a garagem dos Joneses, aquele quarto parecia a suíte presidencial.
Suspirei, exausta. Eu estava sem condições para mais nada além de dormir. As bolhas devem ter estourado, pois comecei a sentir meus pés pulsando de dor. Minhas mãos também estavam doloridas; com calos de tanto puxar a alça da mala.
Tive receio de tirar os sapatos e comprovar minhas suspeitas, mas foi preciso. Se pretendia mesmo caminhar no dia seguinte, não daria dois passos mais naquele estado.
Levantei e comecei a tirar os sapatos. As bolhas dos pés me assustaram – já tinham virado feridas feias. Como um equilibrista bêbado, eu coloquei o pé desajeitadamente sobre a bancada da pia do banheiro e lavei os machucados, secando-os com a toalha. Em seguida, procurei dentro da mala um par de meias e o meu único par de tênis com um suspiro de alívio.
Tênis: a maior invenção da humanidade!
Agora eu precisava urgentemente contar o dinheiro que me restou. Depois de contar e recontar, catando inclusive as moedas perdidas nos fundos dos bolsos, fui dominada por uma ansiedade terrível. Algo me dizia que o dinheiro não seria suficiente para comprar uma passagem para qualquer lugar.
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