Depois da tempestade
Abri os olhos atordoados para a claridade da manhã. Uma ofuscante e dolorosa claridade. Surpresa,percebi que não conseguia sentir os braços. Estavam presos embaixo do corpo e tão dormentes, que não reagiam a nenhum dos meus comandos. Puxe! Empurre! Vire!
Então, a noite anterior voltou à minha mente com a força de uma locomotiva... Desde que cheguei à Muralha, as crises aconteciam independente do estresse. Bastava que eu ficasse um pouquinho nervosa e boom! Só que esta foi mais intensa do que qualquer outra.
Tentei usar os braços como alavancas para me erguer, sem muito sucesso. Eu estava dolorida, com os músculos endurecidos por ter passado a noite inteira na mesma posição. À medida que eu me mexia e o sangue voltava a circular, um formigamento desagradável tomou conta dos meus membros.
Vap...
...A princípio, pensei ter imaginado coisas. O som foi breve e baixo. Em seguida, escutei de novo. Desta vez, mais alto... O barulho atrás de mim fez com que eu me voltasse para ver quem estava se aproximando. Girei tão rápido que caí com a cara enfiada no cobertor - as costelas protestaram. Ugh!
Congelei quando duas mãos fortes e frias - mas extremamente gentis, seguraram-me pelos ombros e me ajudaram a sentar. O movimento fez o meu cabelo desabar todo sobre o rosto. Por um instante, imaginei que eu devia estar hilária com aquele redemoinho na cabeça...
Um riso suave e masculino despertou-me do devaneio, parecendo ecoar meus pensamentos. Eu conhecia muito bem aquele som... Foi com a sensação de déjà vù que tirei o cabelo emaranhado da boca e dos olhos, confirmando o meu pior temor: Adriano Cahill estava ao meu lado no meu momento mais vulnerável do dia.
O torpor anterior foi rapidamente lavado por um jato de adrenalina - como se eu fosse impulsionada por molas. Endireitei as costas doloridas e puxei discretamente uma parte do cobertor - onde, certamente, devo ter babado a noite inteira. Não queria que justo ele (um deus saído das páginas das revistas) visse a prova da minha condição humana. Passei a mão pelo rosto para apagar qualquer evidência do crime. Enquanto isso, ele observava cada um dos meus gestos e comprimia os lábios para não rir de novo.
Meu rosto esquentou - não sei se de raiva ou de vergonha... Só sei que eu precisava escapar dali. Tentei me soltar dele, levantar, e alisar o cabelo - tudo ao mesmo tempo. Pelo jeito, eu era incapaz de uma façanha tão bem coordenada, pois uma forte tontura me dominou. Acho que teria despencado sobre a cama novamente, se ele não tivesse me sustentado em seus braços.
Então, as coisas se complicaram... Aquela misteriosa corrente elétrica que emanava do seu corpo atravessou o meu outra vez, deixando-me fraca e muito consciente da sua masculinidade. Era um tipo de fraqueza estranhamente agradável... que ia amolecendo os meus músculos entorpecidos, acalmando meus batimentos cardíacos, eliminando as dores e o formigamento. Eu me senti completamente subjugada pelo magnetismo do seu toque... como se o mundo além de nós tivesse parado.
Pisquei algumas vezes, tentando escapar do seu olhar dominador; tentando, na verdade, recuperar um pouco do meu autocontrole. Obviamente, ele percebia o que se passava comigo... Parecia acompanhar o meu esforço com interesse - como um cientista que observa a cobaia reagir a uma injeção, que ele sabe ser letal.
Senti que Adriano também lutava para se controlar. Ele estreitou os olhos faiscantes e se afastou, sem me soltar. Isso me ajudou a respirar mais fácil.
Lá estava eu, toda bagunçada, com a cara inchada, e - que Deus me ajudasse - com um provável mau hálito matinal, enquanto ele me segurava daquele jeito... Que constrangimento! Especialmente porque seus olhos intensos, semi ocultos pelas lentes irritantes, não se desviavam dos meus nem por um segundo. Apontei tolamente para a porta do banheiro, desesperada para resgatar um pouco da minha dignidade. Adriano não disse nada, mas me amparou enquanto eu cambaleava naquela direção.
-Quer que eu a ajude?
Fiquei horrorizada, só de pensar nisso.
-Não precisa. Eu consigo.
Antes que eu pudesse entrar e fechar a porta, ele colocou a mão no batente.
-Não tranque.
Olhei para ele, ofendida. O que o fez sorrir com malícia.
-Se você passar mal aí dentro, vou ter que arrombar a porta.
Resmunguei qualquer coisa... Mas, por garantia, apenas encostei a porta. Do outro lado, escutei ele se apoiar na parede.
-Não demore.
Que cara mandão!
Com medo de olhar para a minha imagem refletida pelo espelho, inclinei a cabeça sobre a pia e tratei de lavar o rosto.
-Teve outra crise, Melissa? - eu ouvi a voz dele abafada pela porta. Soou tão preocupada que eu quase me derreti toda.
-Tive. - Para quê negar, se ele já deve ter visto a mala aberta sobre a mesa...?
-Eu bem que avisei para esperar - o comentário foi uma censura, mas a voz continuava amena.
Suspirei. - Eu precisava fazer isso sozinha.
-E... você conseguiu lembrar de alguma coisa?
-Alguma coisa... - respondi.
Ele ficou em silêncio. De certo, esperando que eu prosseguisse. Permaneci calada, contendo a torrente de palavras prestes a irromperem como uma cascata. Eu queria tanto desabafar com alguém. Mas a razão aconselhava cautela... Eu não sabia exatamente o quanto precisaria editar para que ele não me achasse uma doida varrida. Homens com olhos amarelos e escarlates, panteras gigantes e monstros alados não eram exatamente argumentos sensatos para se dialogar com um futuro médico... Isso, se o futuro médico em questão não estivesse envolvido no caos em que a minha vida se transformou.
Loucura! Claro que não estava envolvido. Ou estava?
Precisava ficar cara a cara com ele, quando conversássemos. Para observar a sua reação. O lado intuitivo me dizia que Adriano Cahill tinha tudo a ver com tudo o que aconteceu no bosque após o ataque de Simon Crider.
Quantos mistérios insolúveis giravam loucamente dentro da minha cabeça... Quantas perguntas sem resposta. Os acontecimentos em Porto do Sul foram reais ou alucinações?
E por falar em Simon Crider, o que teria acontecido a ele?
Joguei mais água no rosto numa vã tentativa de clarear as ideias. Não adiantava pensar nisso agora. O jeito era arquivar minhas dúvidas cuidadosamente numa "área" isolada da mente, para posteriores considerações. Agora, eu precisava mesmo era pensar em questões práticas, como ligar para Carmen, por exemplo. Precisava avisá-la de que eu estava bem.
Eu estava mesmo bem? Pela primeira vez, ousei fitar a figura pálida refletida no espelho. Não, eu estava horrível. Por isso, quase deixei escapar uma gargalhada histérica quando ouvi Adriano formular em voz alta a mesma pergunta:
-Você está bem? - a voz soou baixa e rouca.
-Acho que sim.
Terminei de enxugar o rosto com a toalha, arrumei os cabelos com os dedos o melhor que foi possível e escancarei a porta.
Ele me fitou por um longo momento, ainda apoiado no batente. Ficamos assim, parados... Eu era uma idiota, mesmo! Se fosse outra garota - uma mais esperta - já teria agarrado aquele pedaço de homem! Mas eu não conseguiria bancar a mulher fatal, nem daqui a um milhão de anos.
O contraste entre nós era gritante: ele muito alto e forte e eu, com uns trinta centímetros de desvantagem. Seu peito largo provavelmente estava à altura da minha testa... A distância entre nós era tão pequena que, se eu me inclinasse só um pouquinho, acabaria encostando a bochecha na curva dos músculos bem definidos sob o uniforme hospitalar. Hmmm... Sentir mais de perto o cheiro delicioso da sua pele. Que tentação!
Os olhos de Adriano pareceram cintilar, como se quisessem ler a minha alma. Não consegui mais desviar os meus, por mais constrangida que estivesse. Eu era tímida por natureza, e ficar encarando um homem não fazia parte do meu "repertório inato". Mesmo assim, não consegui me mexer, como se estivéssemos conectados por cabos invisíveis.
De repente, ele baixou os olhos para minha mão esquerda e tocou a marca de nascença com a ponta dos dedos, antes de envolvê-la completamente com sua mão grande e fria. Eu já não estranhava mais a eletricidade que vinha dele. Nem a temperatura fria do seu corpo. Quem sabe essas sensações térmicas e elétricas fizessem parte das minhas alucinações...?
Mas, quer saber? Se isso era real ou não, agora pouco importava. O contato era... excitante. Ele me atraía como um ímã.
Adriano me puxou delicadamente para o quarto, fazendo-me sentar sobre a cama amarrotada. Não sei por quê, tive a impressão de que ele estava tão perturbado quanto eu. Mas não podia ter certeza, com aquelas lentes escurecendo à medida que a luz incidia sobre elas. Assim, os olhos dele permaneciam a salvo das minhas especulações.
Inclinando a cabeça ligeiramente, ele recolheu os desenhos espalhados sobre a mesinha. Um frisson tomou conta de mim, enquanto ele avaliava cada uma das ilustrações com expressão concentrada. Havia algo de perturbador em assisti-lo mergulhar no meu mundo íntimo. Eu me senti exposta.
Ele se demorou mais na figura do monstro alado.
-É com isso que costuma sonhar? - Ele inclinou a cabeça de lado, e voltou a analisar o desenho. - Assustador. Bonito, mas assustador.
Eu assenti, apenas. Não queria ouvir críticas, nem elogios. Não fazia meus desenhos para expô-los, ou para submetê-los à opinião pública.
-Você tem talento. Fez algum curso?
Balancei a cabeça, em negativa. Adriano franziu o cenho.
-Por quê não?
Eu não pude deixar de rir. Para alguém rico, devia ser difícil entender porquê uma pessoa não-rica deixava de seguir em frente.
-Cursos custam dinheiro - salientei, calmamente. - Além do mais, eu não tenho um bom currículo de ensino médio. As chances de ir para a faculdade são poucas.
-Você gostaria de ir para a faculdade? Fazer um curso de artes, ou algo assim?
Recostei na cadeira e fiz uma careta.
-Não. Nunca tive essa ambição. - Apontei para o desenho que ele segurava. - Você pode achar bom, mas eu não tenho talento suficiente para me sobressair num curso desse nível.
Ele ergueu uma sobrancelha.
-Como sabe?
Que irritante! Por que insistia no assunto, quando eu tinha tantas outras coisas que precisava discutir com ele?
-Por que... - continuei com a mesma paciência forçada - apesar de não ter o talento necessário, sou bastante realista. Eu vejo os trabalhos que realmente se destacam no meio artístico. Isso não é para mim.
Rir da minha cara não era lá uma reação muito educada... Mas, foi exatamente isso que ele fez.
-Claro que você tem talento! Só alguém com um futuro brilhante pela frente, faz desenhos como estes e ainda deprecia o próprio trabalho de um jeito tão... Esnobe.
Eu pisquei, chocada.
-A história está aí para provar que os artistas mais bem-sucedidos foram assim, perfeccionistas e temperamentais. - Ele continuou falando, ignorando minha cara de indignada. - Penso que se tivessem usado a cabeça ao invés de cortar as próprias orelhas, ou se acabado com as drogas, teriam sofrido menos. Mas... Qual teria sido a graça, não é mesmo?
-Graça do quê? - Questionei, ainda espantada.
-As pessoas são capazes de comprar um monte de rabiscos, se souberem que o autor se matou ou matou alguém. A obra adquire certo peso... Mórbido, devo concordar. Mas adquire peso. - Ele parecia se divertir com aquilo. Devo reconhecer que era uma opinião nada usual. Como se ele seguisse com a vida observando as coisas de um prisma diferente. Quase desumano... Ou inumano.
Fui percorrida por um arrepio. Inspirei com força e deixei passar. O sarcasmo estava todo ali, mas não poderia responder à altura, mesmo que quisesse.
O silêncio se estendeu... Eu esperei que ele fizesse a pergunta fatídica. Adriano devolveu os desenhos à mesa, em seguida puxou uma cadeira para perto de mim. Esperei... Ele não disse nada. De repente, com um suspiro, perguntou:
-Gostou das roupas?
Franzi as sobrancelhas, sentindo-me completamente perdida. Ele não devia me perguntar sobre o quê exatamente eu lembrei, durante a crise?
-Roupas?
Ele fez uma cara de falsa surpresa. Os cantos dos lábios se ergueram um pouco. Parecia estar se divertindo muito com a minha confusão.
-Charity não esteve aqui?
-Sim, esteve.
-E...? - ele levantou uma sobrancelha perfeita.
Ah, caiu a ficha... Que gafe! Eu deveria ter lhe agradecido assim que entrou no quarto. Provavelmente estava me achando a pessoa mais mal educada do planeta.
Abri a boca, atrapalhada demais para falar algo coerente assim, de cara. Quase gaguejei!
-Oh, muito obrigada! As roupas, c-claro... Elas são lindas. Mas eu não posso aceitar esse tipo de presente. Isso não é certo, sabe? ...permitir que gastem comigo... - fiz uma pequena pausa para recuperar o fôlego. - Tentei dizer isso a ela. Charity, quero dizer... A sua prima. Mas não consegui convencê-la a levar as roupas de volta.
Adriano riu.
-Charity é uma força da natureza.
-Deu para perceber...
Ele me perscrutou com o olhar. - Se é a sua consciência que a perturba, pode ficar tranquila. Charity tem toneladas de roupas. Todos os anos, doa sacos e mais sacos aos centros de assistência social de Paulo Santo, e Pequena Divina. As que ela lhe trouxe não envolveram gastos nem lhe deram trabalho algum.
Hmmm... Se isso fosse verdade, a situação era mais humilhante ainda. Sei que a intenção dele foi que eu não me sentisse em dívida para com ambos. Mas aos meus ouvidos soava como se eu fosse uma mendiga e os poderosos Cahill estivessem fazendo caridade comigo!
Ainda havia aquela sensação estranha... A impressão de que ele estava mentindo. As roupas eram do meu tamanho exato! Os sapatos também... Qual era a chance de duas pessoas fisicamente diferentes usarem o mesmo manequim e o mesmo número de calçado? Algumas etiquetas ainda estavam dentro das sacolas, como se alguém as tivesse arrancado às pressas.
Claro que Charity poderia ser daquelas garotas que compram tanta coisa, que nem conseguem usar a metade. Me diverti com a ideia de visualizar Charity perdida em seu closet de patricinha rica... Provavelmente ela necessitaria do auxílio de um mapa e de rastreamento por satélite.
Eu até poderia ignorar (com muito esforço) o fato de que o seu manequim era visivelmente maior do que o meu... Mas, e quanto aos estojos de maquiagem e higiene? E os cremes de beleza? Estavam todos lacrados! Ela também pretendia doá-los aos centros de caridade?
Derrotada, sacudi a cabeça.
-As roupas são maravilhosas. Só posso agradecer a ambos pela gentileza!
-Eu acreditaria que você gostou, se você não me olhasse desse jeito...
Encarei-o, sem entender.
-Como assim?
-Alguma coisa a desagradou - ele disse, empregando aquele seu tom sarcástico. - E apesar de ter recomendado que lhe trouxesse as peças mais simples, porque suspeitei que você não gostava de roupas chamativas... Conheço bem a minha prima. Algo de extravagante ela fez...
Adriano parecia conhecer a nós duas, muito bem. Isso era perturbador...
-Hmmm... - eu comecei, meio sem jeito. - Os sapatos. Não são para bater perna por aí, nem para trabalhar. Todos tem salto. E salto muito alto. Eu curto tênis, sabe? É mais prático.
Adriano deu uma gargalhada. Notei que ele não esperava por aquilo.
-E você é uma garota prática - ele comentou, assim que recuperou o fôlego.
-Eu tento ser.
Ele mudou de posição na cadeira e inclinou a cabeça. Os olhos brilhavam, divertidos.
-Posso ver?
Eu apontei para o pequeno closet. -Vá em frente.
Ele não se fez de rogado e abriu as portas de par a par. Olhou por alguns segundos para a fileira de sandálias chiques e exóticas - algumas cobertas de babados, fivelas e laçarotes, outras com várias pedrinhas brilhantes; e havia até um par de sapatos transparentes que cintilavam (pareciam ser de cristal)... Muito apropriados para uma Cinderela.
Ele riu novamente.
-Vou dar um jeito nessa parte - disse simplesmente.
-Ai, não, por favor. Eu já lhe devo tanto!
-Você não me deve nada - de repente ele ficou tão sério que quase me assustou.
-Tem certeza? - desviei os olhos para a janela.
-O que quer dizer? - ele me questionou, subitamente cauteloso.
Não respondi de imediato. Continuei olhando pela janela, como se pudesse encontrar alguma resposta lá fora.
A lembrança do monstro alado voltou a me assombrar. Eu queria tanto falar sobre isso... Mas também queria falar sobre a criatura que arrancou Crider de cima de mim. Eu só não tinha coragem suficiente para começar o assunto. Adriano iria recomendar a minha internação imediata na ala psiquiátrica, se soubesse o que estava se passando pela minha cabeça.
Será que tudo o que estava acontecendo era um produto da minha mente doentia? Eu pesquisei na internet e li algo sobre tumores cerebrais que causavam alucinações. Era por isso que o Dr. Talbott me mandou para a tomografia? E por que os resultados ainda não ficaram prontos? Ou será que ficaram e ninguém me avisou...? Não, esses sintomas me perseguiam desde a infância. Não podia ser um tumor. Caso contrário, eu já estaria morta.
Eu também li outro artigo sobre crianças rejeitadas. Pelo que entendi, elas tendem a se tornar adultos que vivem numa montanha-russa emocional. Algo do tipo: complexo de inferioridade num dia e mania de grandeza no outro. Tornam-se pessoas com baixa autoestima, enredadas pelo mundo da fantasia; elas se percebem como rejeitadas...
Mas eu não era assim. Quer dizer, tudo o que eu queria da vida era não ficar desempregada. No mais, a única coisa que se encaixava no meu atual comportamento, era a constante sensação de estar sendo vigiada; e que as pessoas estavam me ocultando os fatos.
-Você está segura, aqui... - Adriano disse baixinho, acompanhando o meu olhar transtornado. Por um momento fugaz, pude ver a preocupação passar pelas suas feições perfeitas. Mas não durou muito, pois logo ele reassumiu a costumeira expressão fria e profissional.
-É possível que a mente "invente" as próprias lembranças? - eu o questionei, num impulso.
-Sim. - Adriano suspirou e tomou minhas mãos novamente. - É possível. Especialmente depois de sofrer um trauma. A mente também pode misturar elementos do presente às situações passadas e fazer uma releitura diferente de como os fatos aconteceram.
Droga. Se isso fosse verdade... Se isso tivesse acontecido comigo, então, as minhas suspeitas me levariam a um beco sem saída. E o que eu mais precisava agora, era obter uma explicação que provasse que eu não estava louca.
-Aonde foi que vocês me encontraram, exatamente?
Agora foi a vez de Adriano parecer confuso. Sentou-se novamente diante de mim e me encarou com intensidade.
-Você foi encontrada na Montanha do Polonês, pela equipe de resgate. Os paramédicos relataram que você se perdeu numa das trilhas. Há quatro ou cinco quilômetros da pousada.
Não podia ser verdade. Minha mente não iria me pregar uma peça daquelas. Droga, eu não podia ser tão insana assim!
-Não, eu... Eu estava em Porto do Sul - contestei, num fio de voz.
-Não. - Ele rebateu, tranquilamente.
Dava para sentir alguma coisa muito errada, pairando no ar. Fixei seu rosto por alguns segundos e ele sustentou o meu olhar, com expressão indefinível. Ao contrário de mim, Adriano era uma pessoa muito difícil de ler. Às vezes, eu podia jurar que havia um rio de lava queimando pelo subterrâneo, pronto para fazer o vulcão entrar em atividade... Então, ele esfriava de um jeito, que eu não conseguia identificar nem a sombra das suas emoções. O vulcão transformava-se rapidamente em uma montanha coberta de neve.
A lembrança da enigmática conversa que tive com a Ásia Não-sei-do-quê, tirou meus pensamentos do atual curso.
-Não é a primeira vez que ouço falar na Montanha do Polonês. Por que esse nome?
Ele olhou para o chão, parecendo contrariado por um momento. Depois ergueu a cabeça de novo e começou a falar como um professor que repete a explicação para o aluno desatento. Será que estava entediado por conversar comigo? De repente, ele ficou tão esquivo... Como se uma parte sua não estivesse completamente envolvida na conversa.
Definitivamente, eu o entediava. Meu coração afundou, mortificado.
-A montanha recebeu esse nome porque, em 1832, um aventureiro de origem polaca se perdeu na região e nunca mais foi encontrado. De lá para cá, ocorreram frequentes relatos de pessoas que juraram ter presenciado alguma coisa sobrenatural acontecendo naquele lugar... Outros desaparecimentos foram registrados, mas nunca encontraram os corpos. Alguns dizem ter visto o polonês vagando por entre as árvores, pouco antes das pessoas sumirem. É por isso que os mais antigos consideram o local mal assombrado - ele deu um dos seus sorrisos resplandecentes, parecendo um garoto travesso.
-Mas é precisamente isso o que atrai os turistas. - Ele me explicou, divertido. - A montanha atualmente conta com uma boa infraestrutura para receber os visitantes ansiosos por emoções mais intensas. Alguns querem tentar a "sorte"... E, quem sabe, avistar algum fantasma. Parapsicólogos, ufólogos, bruxos, ocultistas, enfim... - ele deu risada, deixando bem claro que considerava tudo aquilo uma bobagem. - Centenas de pessoas invadem a região. O lugar conta com chalés, camping, centro recreativo, atividades ao ar livre... E até uma agência de turismo encarregada das excursões.
Ah... Uma montanha cheia de mistérios.
Mistério, mesmo, foi a lembrança súbita de um número de celular que me assaltou. Fiquei até atordoada. Carmen... Se eu não estava em Porto do Sul, então ela e o irmão, Bob, não deveriam existir. Eu precisava telefonar para ela e descobrir as peças que faltavam no meu quebra-cabeça. Instintivamente, considerei o fato de que Adriano não iria me ajudar nesse sentido.
Olhei para ele por um longo momento; então, me forcei a dizer as palavras:
-Acho que ainda não me recuperei completamente. É muita informação... Preciso ficar sozinha. Você me entende, não é?
Adriano semicerrou os olhos, desconfiado. Levantou-se muito devagar... Nesse exato instante, pareceu-me um predador se preparando para saltar sobre a presa. Seus olhos fulguraram - foi um rápido lampejo por detrás das lentes, antes que sua expressão reassumisse a costumeira fachada fria.
-Claro que eu compreendo. Descanse... - Deu um sorriso educado e deixou o quarto.
No silêncio que se seguiu, não consegui recuperar a calma pretendida. O coração continuou acelerado e eu tive uma leve vertigem. Olhei para o telefone e vi a lista de ramais colada sobre o tampo do criado-mudo. Disquei o número e fui atendida imediatamente pela telefonista.
-Pois não?
-Poderia, por favor, completar uma ligação?
Ela ouviu pacientemente enquanto eu ditava o número, depois perguntou: - Qual o código?
-Ah, desculpe. Só sei que fica em Porto do Sul.
-Por favor, aguarde... - respondeu a mulher, em tom profissional.
Tom profissional, sorriso profissional... Eu tinha que aprender isso também.
-Srta. Baker?
Como ela sabia o meu nome? Ah, claro, o identificador. Ela devia ter a lista de pessoas internadas na ala particular. Paranoia...
-Sim?
-A senhorita precisa desligar o aparelho, para que eu possa completar a chamada. Quando tocar, estará com a pessoa na linha.
Oh.
-Claro, desculpe. Estou desligando...
Coloquei o fone no gancho e esperei. Alguns segundos depois, o aparelho tocou e eu atendi.
-Alô, Carmen?
-Alô... Aqui não tem nenhuma Carmen - disse uma voz muito grave e antipática. - você deve ter discado o número errado.
-Não pode ser, o celular dela é este. Já liguei para ele, em outra situação.
-Dona... - o sujeito deu uma risadinha. - Eu tenho certeza de que não sou Carmen. Nem conheço ninguém com esse nome. Passar bem.
Ele desligou na minha cara. Fiquei olhando para o gancho do telefone sem acreditar.
Desliguei e voltei a chamar a telefonista.
-Oi, o número que te dei... Poderia, por favor, repeti-lo para mim?
-Claro. - Ela disse exatamente o mesmo número que lhe forneci.
-Obrigada - desliguei de novo, sentindo-me desconsolada.
Olhei para o laptop com renovada esperança. Entrei no Google e digitei "Loja de Departamentos Vila Verde - Terra do Porto/Porto do Sul". Rapidamente, o site de busca me forneceu uma lista enorme de citações feitas à loja. Mas a única página que me interessava era aquela que tinha endereço e telefone.
Olhei novamente para o aparelho telefônico, tamborilando os dedos no tampo do criado-mudo. Então, decidi tentar uma coisa diferente. Ao invés de solicitar à telefonista, disquei o zero para conseguir linha direta. E funcionou!
-Loja de Departamentos Vila Verde, bom dia - disse uma voz de mulher.
Respirei aliviada. - Bom dia. Eu gostaria de falar com Carmen...
-Sim, qual o setor?
-Setor de Pessoal? - hesitei. A telefonista não deveria conhecer a Carmen? Existia mais de uma Carmen na mesma loja?
-Só um momento... - soou a voz do outro lado.
Fiquei ouvindo música e promoções da loja por um longo minuto, até que alguém atendeu. A voz era de mulher.
-Setor de Pessoal.
-Carmen?
-Ela mesma - e lá vinha aquele tom profissional de novo. - Em que posso ser útil?
-Sou eu, Carmen. Melissa.
Um silêncio angustiante dominou a linha, parecendo durar uma eternidade. Até que Carmen suspirou.
-Melissa? Que Melissa?
CONTINUA NA AMAZON...
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