Caminhos difíceis
Eu estava me sentindo anestesiada, como se estivesse ligada no piloto automático. Acho que qualquer outra garota teria um ataque histérico. Não eu. Ninguém me veria chorar em público ou ter um chilique... Deixei para trás o barulho das crianças brincando no parquinho, e segui pela estrada de terra batida até sair da propriedade. Ninguém reparou na minha saída. Ninguém se despediu.
A Travessia de Dailey estava silenciosa como acontecia na maior parte do dia... Todos os dias da semana. O ar quente e parado fazia dessa realidade algo mais deprimente do que já era. Olhei ao redor, numa despedida silenciosa. Flashes de um passado triste começaram a espocar na minha mente... Eu pisquei, e fiz força para espantar as lembranças. E as lágrimas.
As poucas casas próximas eram as mesmas desde que me entendo por gente - todas sem graça. A mercearia fora a única novidade naquele cenário: uma casa quadrada, pintada de amarelo e bege, com altas janelas de vidro e uma bomba de gasolina junto à parede.
Mais adiante, estava a pequena igreja, que necessitava de reformas urgentes. O reverendo que assumiu o presbitério vinha de Lancaster apenas nos dias de culto. Portanto, a igreja permanecia fechada quase a semana inteira.
O pequeno cemitério atrás do prédio fazia com que parecesse a igreja do filme O Cavaleiro sem Cabeça, de Tim Burton.
Meu pai estava enterrado ali. Alcancei o pórtico arruinado, mas parei hesitante. De onde eu estava, podia distinguir o seu túmulo dentre os que ficavam na primeira fila. Mais uma dor antiga, que pulsava no fundo da gaveta da minha vida. Eu me sentia inexplicavelmente culpada, como se estivesse abandonando-o.
Enxuguei os olhos úmidos, sabendo que era idiotice me sentir daquela maneira. Em primeiro lugar, ele próprio era um homem pouco dado a raízes... Estava sempre viajando com sua banda... Só parou quando adoeceu. Em segundo lugar, ele iria querer o melhor para mim. E se o melhor fosse sair da região; se essa fosse a única forma de vencer na vida... De ter uma vida! Então, era o que eu tinha que fazer.
Um dia eu iria voltar para colocar flores no seu túmulo, dirigindo um carro bem irado!
Não sei por quanto tempo caminhei, puxando a minha velha mala xadrez. As rodinhas encrencavam a cada trecho mais acidentado, o que dificultou a minha jornada. Olhando ao redor, achei que tinha feito um bom trecho, pois a paisagem tinha mudado bastante. Pelo menos o pequeno aglomerado de casas já tinha ficado para trás, dando lugar às propriedades rurais.
Pouco antes de alcançar a bifurcação que subdividia a estrada em duas direções opostas -, avistei as ruínas do hospital desativado onde meu pai faleceu. Alguns dos magníficos vitrais ainda estavam de pé. Eu podia avistá-los brilhando ao sol, por entre as folhas das árvores.
Andei mais um pouco e olhei para os dois lados. Eu estava bem no meio da bifurcação. E agora? Eu devia seguir para Berlim, ou Lancaster?
Quanto mais poderia aguentar debaixo daquele sol implacável... Eu detestava o calor do verão.
Eu detestava o meu aniversário.
Por mais que o lugar evocasse dolorosas lembranças, eu estava muito tentada a voltar alguns metros e procurar abrigo dentro das paredes arruinadas do velho hospital. De repente, uma caminhonete parou ao meu lado, levantando um monte de poeira. Tive que erguer a gola da camiseta para cobrir a boca e o nariz. Mesmo através daquela nuvem de pó, não foi difícil distinguir a motorista: era a Sra. Jones - secretária (e pau mandado) da diretora Winfield.
-Entre, Melissa. Eu lhe dou uma carona - ela sorriu, calorosamente.
Não me fiz de rogada. Joguei a mala e a mochila na traseira da caminhonete e dei a volta para entrar pela porta do passageiro.
A Sra. Jones continuava sorrindo, quando o motor fez o veículo saltar e engasgar, antes que ela acertasse a marcha.
-Desculpe - ela riu, sem o menor constrangimento. - Ainda não me acostumei com essa monstruosidade do Bill. Mas, enquanto o meu carro estiver no conserto...
Eu apenas sorri, contemplando a paisagem. Estava cansada demais para falar.
***
-Já sabe para onde está indo, Mel?
Olhei para ela, mas sua expressão permanecia concentrada na estrada.
-Não – respondi. - Não faço a menor ideia.
Ela comprimiu os lábios. - Você deveria ter esperado Janet procurá-la. Ela pretendia lhe dizer que você podia ficar na casa até conseguir um emprego.
Considerei suas palavras por alguns instantes, depois respondi com uma certeza surpreendente até para mim mesma:
-Não quero mais viver na Travessia de Dailey, Sra. Jones. Não há perspectivas de emprego por aqui. Prefiro recomeçar em outro lugar. - De preferência, aonde as pessoas não conheçam o meu histórico psiquiátrico.
Passamos por Stark, e dez minutos depois alcançamos Berlim. A Sra. Jones me disse que pretendia fazer algumas compras antes de ir para casa. Assim, o meu destino final seria a calçada em frente à mercearia local.
Quando o carro estacionou, agradeci pela carona e abri a porta. Ela saiu devagar e ficou me observando passar as alças da mochila pelos braços. Sua expressão era concentrada, quando disse:
-Mel, você não tem para onde ir... Por acaso, eu tenho um quarto sobrando em cima da nossa garagem.
Levantei os olhos para ela, incrédula.
-Não é grande coisa. Pelo contrário, o Bill transformou-o num depósito. E temo lhe dizer que não limpo aquele lugar há meses... – concluiu com relutância.
-Sra. Jones, eu posso me ajeitar em qualquer lugar. Até na casinha do cachorro, se for preciso.
Ela fez uma careta.
-Posso limpar o quarto e ajudá-la com a casa também - argumentei, com medo de que ela voltasse atrás.
-Ok, coloque sua mala de volta e vamos às compras. Tenho uma lista do que está faltando em casa. Por certo, você também vai precisar de alguma coisa...
Contei mentalmente o meu dinheiro e constatei que não poderia comprar nada. Então, sacudi a cabeça.
-Não, estou bem. Mas vou com a senhora para ajudá-la a carregar as compras.
***
A partir daquele dia, passei a ter esperanças de que as coisas fossem melhorar.
Com algum esforço, consegui limpar o quarto sobre a garagem. A Sra. Jones não estava brincando quando disse que o lugar tinha virado um depósito... Mas, em meio às quinquilharias, encontrei alguns itens que até me serviriam. Havia um colchonete velho, que coloquei sobre a carcaça de um armário deitado na horizontal. Isso! Agora eu tinha uma cama. Também improvisei algumas telas de alumínio retorcido, que encontrei no fundo do quintal, como cabides para pendurar as minhas roupas...
Na primeira noite, eu já tinha me instalado satisfatoriamente.
O banheiro conjugado estava interditado, com exceção do vaso sanitário. O Sr. Jones prontificou-se em arrumá-lo, mas os dias foram passando... Então, eu encontrei uma mangueira velha e conectei a base na torneira que ficava do lado de fora da garagem. Depois, passei sua extensão pela basculante e... Isso! Agora eu também podia tomar banho de mangueira.
Tomar banhos gelados e ter que contornar todo o entulho do qual não consegui me livrar, mesmo sabendo que havia dois quartos de hóspedes confortáveis dentro da casa dos Joneses – eram fatores que não iriam me abater. Eu não permitiria isso. Toda vez que o desânimo ameaçava contaminar o meu humor, eu pensava: Melhor isso do que estar dormindo nas ruas. Pense bem, garota, os pioneiros e bandeirantes tiveram uma vida bem mais difícil que a sua, e sobreviveram.
Pela manhã, eu ajudava a Sra. Jones a arrumar a casa, começando pelos quartos de suas duas filhas adolescentes, Christina e Jennifer. Elas não eram chegadas ao serviço doméstico e deixavam tudo virado do avesso. A pobre senhora estava sempre correndo de um lado para o outro a fim de organizar toda a bagunça. Eu passei a ajudá-la para que pudesse dedicar um pouco mais de tempo para si mesma. Achei que era uma boa maneira de lhe agradecer por ter me estendido a mão numa hora de necessidade.
Todas as tarde, eu saía pela cidade procurando emprego. A Sra. Jones havia me sugerido dois lugares, cujos chefes eram conhecidos do seu marido. No primeiro, me acharam muito jovem e desqualificada para qualquer tarefa. Mas não disseram isso abertamente... A Sra. Jones tinha afirmado categoricamente que estavam procurando por uma recepcionista. Mas, após avaliar a minha aparência, ouvi do entrevistador a célebre frase: "No momento, nosso quadro de funcionários está completo".
Puxa vida, se o problema era minha aparência, eu poderia melhorá-la... Bastava conseguir um emprego. Com um salário básico, eu poderia cortar o cabelo, comprar algumas roupas... sei lá! E se o problema era a falta de experiência... Bem, a gente sempre tinha que começar de algum ponto... Mas quem estaria disposto a me dar a primeira chance? Claro que parte deste sufoco era minha própria culpa. Eu devia ter me esforçado mais nos estudos e descolado um estágio, ao invés de me preocupar com o que os outros diziam de mim.
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