Aniversário
O dia do seu aniversário é uma data especial, ou deveria ser... É quando as pessoas se reúnem para celebrar o seu nascimento. O que significa que você é importante para elas; que existe uma razão para a sua existência – já que os propósitos divinos não podem ser elucidados apenas porque você nasceu...
O nascimento é um evento real. Um fato. Mas também envolve amor, fé e magia. As pessoas parecem acreditar que aquele pequenino ser que está chegando ao mundo traz consigo uma centelha divina; que possui um importante papel a desempenhar em um projeto maior...
Tá. Eu acredito que existe um plano divino. E que esse plano opera por meios misteriosos. A nossa missão na Terra é decifrá-lo e aplicá-lo.
Mas essa era apenas a minha teoria.
Ultimamente, eu apenas me questionava se existia um motivo para que uma pessoa vivesse... Eu, por exemplo. E outra morresse... Meu pai. Por que alguém que levava uma vida tão insípida quanto a minha continuava respirando, enquanto outra pessoa, que teria feito muito melhor, era obrigada a partir?
Eu me sentia presa no que resolvi chamar de "armadilha existencial". Na mesma medida em que depreciava a minha existência, agarrava-me a ela com unhas e dentes, na esperança de que o futuro fosse melhor...
Em que parte do plano divino a minha existência se encaixava?
***
Ninguém quis uma menina de seis anos com histórico psiquiátrico.
Os candidatos a pais preferiam adotar os bebês... De preferência, os bebês perfeitos, sem problemas de saúde, ou de adaptação.
Minhas frequentes alucinações eram um verdadeiro enigma para os adultos, até mesmo para o psiquiatra infantil designado pela Assistência Social do Governo. Ele havia atribuído os episódios à conta de um grave trauma psicológico - já que tudo começou no dia da morte do meu pai, quando minha mãe me abandonou. Por causa dessas alucinações, as outras crianças não queriam brincar comigo. Eu era motivo de chacotas e piadas cruéis; e isso me levou a procurar refúgio no isolamento e nos meus desenhos.
Eu adorava desenhar, pois era uma maneira de por para fora as minhas angústias e anseios. Sempre que possível, estava escondida em algum canto, desenvolvendo estórias de aventuras, retratando cenários que me impressionavam, e até lugares que eu nunca tinha visto pessoalmente; enfim, projetando o mundo como eu o desejava.
Por outro lado, os livros e a TV eram os meus eternos companheiros; transportavam-me para longe dos meus medos e da realidade estéril de afeto.
Eu cresci e me fechei em mim mesma. Houve um ponto, uma linha que atravessei... quando fui eu quem não quis mais ser adotada. Já não acreditava que houvesse a chance de encontrar pais que me amassem de verdade. Para ser sincera, não acreditava mais em qualquer espécie de amor verdadeiro.
No fundo, talvez, eu até acreditasse... Mas acreditava muito mais que não merecia ser amada. Isolar-me voluntariamente foi uma forma de evitar mágoas como a que estava arquivada numa das gavetas mais profundas da minha vida. A mágoa do abandono.
Naturalmente, o meu aniversário de 18 anos não ajudaria para que esse panorama se modificasse. Muito pelo contrário. Eu sentia como se, de repente, estivesse sendo lançada pela amurada de um navio em noite de tempestade. Teria que ceder minha cama a outra criança abandonada, e deixar o orfanato. Ela teria melhor sorte do que eu?
***
Uma sensação de pânico foi me dominando enquanto caminhava até o gabinete da diretora. Sempre mantive uma atitude apática e indiferente... Mas essa era a primeira vez que eu tinha dificuldade em disfarçar o nervosismo. Acho que, enfim, acordei para a gravidade da situação. Não havia nenhuma perspectiva à vista. Nenhum lugar para onde ir. E parte disso, eu sabia, era minha culpa.
Para começar, eu não possuía qualificação profissional. Embora tivesse completado o ensino médio, o meu histórico escolar era pobre de notas, assim como o meu currículo era pobre em experiências.
Durante a escola, eu achava que me apagar seria a melhor alternativa; que quanto menos as pessoas me notassem, melhor. A única matéria em que me destaquei foi "Artes" - e mesmo assim, tratei de me refrear para que as pessoas não me notassem.
Eu preferia ser esquecida. Mas, numa comunidade tão pequena como a Travessia de Dailey, não só as pessoas não esquecem, como não deixam você esquecer.
Os anos que se seguiram foram a repetição, com pequenas variações, do primeiro ano que frequentei a escola. Época em que fiquei conhecida como "Carrie, a Estranha".
Não sei o que era pior naqueles tempos: as surras, as pedradas, ou os apelidos e xingamentos...
Na frente dos adultos, passei a agir como Peter Parker. E quando ninguém estava olhando, eu me transformava em Indiana Jones... Melissa Baker: uma figurinha apagada, que não abre a boca e não se relaciona com ninguém. Mas quando consegue um tempo só para ela, inventa grandes aventuras – embrenhando-se pelas propriedades rurais.
Eu sempre estava salvando o mundo dos alienígenas, encontrando tesouros perdidos, e perseguindo vilões criados pela minha imaginação... Além de espionar os adultos, é claro. Assim, eu me sentia poderosa! Um ser invisível, mas também, inatingível.
Foi por me sentir assim, invisível e inatingível, que eu mapeei todos os caminhos secretos da região e criei o meu próprio esconderijo no celeiro abandonado dos Wilker. Local onde guardei meus tesouros: livros, gibis, brinquedos, e meus desenhos. O celeiro era a minha "fortaleza da solidão"...
Mas agora, a minha vida dupla não me salvaria do que estava prestes a acontecer.
***
18 anos... Para todos os efeitos legais, adulta. Só que eu não me sentia adulta. Ainda não possuía ambições próprias de uma adulta. Eu não sabia o que fazer ou desejar de uma vida da qual estava vivendo completamente à margem. Portanto, minha única e real aspiração era continuar mantendo em segredo as crises alucinatórias.
O mais secreto dos meus anseios era ser considerada uma garota normal, digna de ter uma vida normal. Tinha muito medo de que uma crise acabasse me conduzindo direto para o sanatório. Definitivamente, isso era a única coisa que eu não queria. Provavelmente os médicos iriam me trancar e jogar a chave fora. Eu tinha que continuar fingindo para manter as pessoas de fora do meu drama particular.
***
A diretora Janet Winfield me endereçou um sorriso gelado, quando entrei em seu gabinete. Eu já tinha ouvido falar da expressão "sorriso profissional". E achava que, no caso dela, cabia perfeitamente.
Às vezes, eu me perguntava se o fato de comandar a instituição e efetuar o processo de desligamento tantas vezes, acabou deixando-a assim... Insensível. Ela se importava realmente com o destino dos seus órfãos depois que deixavam a casa, ou não dava a mínima? Eu ainda não sabia a resposta, mesmo depois de todo aquele tempo. A única certeza que eu tinha era que ela demonstrava uma dureza assustadora. Por um tempo, pensei que nutrisse rancor por mim. Pelo fato de não ter me esforçado tanto quanto esperava que eu fizesse. Talvez não aceitasse estar às voltas com uma criança problemática por mais tempo do que o necessário. Bem... Agora, finalmente, ela iria se livrar de mim.
A diretora empilhou cuidadosamente seus papéis, lançando-me alguns olhares furtivos. Eu esperei, tentando me preparar para o que ela teria a me dizer.
-O que faremos com você, Melissa? O conselho executivo estava cogitando a possibilidade de tentar colocá-la no programa de bolsas da faculdade local. Mas, com o seu currículo e nota insuficiente no ENEM... Sem chance - suspirou. – Você terá de repetir a avaliação. Até lá...
Ela cruzou os braços e me encarou.
-Sabe, eu não entendo – disse, em tom de desabafo. - Você teve todas as chances. Preferiu chamar a atenção das pessoas para suas estórias patéticas de fantasmas e monstros... - ela deu uma risadinha jocosa. - Francamente, o que você teria de tão especial, que faltava às outras crianças, para que as "criaturas de outro mundo" perdessem seu precioso tempo vindo atrás de você. Só de você! Eles teriam que ser uns monstros bem desocupados... - ela riu da própria piada. - Você não pensava nisso, quando resolvia acordar a casa toda de madrugada, com seus gritos histéricos e estórias cabeludas? Você realmente acreditava que poderia enrolar os adultos com essas maquinações? O melhor que conseguiu foi ficar marcada como maluca.
Deixei passar... Eu já estava habituada as suas palavras duras; e, francamente, preferia que ela acreditasse no que quisesse acreditar.
A diretora notou a minha expressão de contrariedade e mudou de tom:
-Naturalmente, você era apenas uma criança. Não tinha compreensão de quanto estava sendo patética ao querer toda a atenção para si mesma. Infelizmente, ao invés de usar a sua criatividade em benefício dos estudos, ou de uma adoção promissora, resolveu fechar-se em seu mundinho particular. Essas visões...
-Quê visões? - levantei as sobrancelhas, fingindo não compreender...
Ué, não foi ela mesma quem disse que eu as inventei? Não sejamos contraditórios nessa altura do campeonato, por favor! - refleti com ironia.
-Melissa... - ela sacudiu a cabeça, reassumindo a máscara de frieza ao perceber que eu não baixaria a minha guarda. - Acho que fui muito dura com você. Parte desse seu comportamento é minha culpa, eu reconheço. Não estava preparada para lidar com uma criança tão... tão diferente.
-Mas o Reverendo Merritt estava - repliquei, sem esconder o meu rancor.
O reverendo foi diretor da casa, antes que a Sra. Winfield assumisse o cargo. Ele era quase como um pai para todos nós. Foi o único a nos tratar com consideração; e a se preocupar sinceramente com as minhas crises. Ele não me considerava maluca, nem maquiavélica...
Infelizmente, o reverendo faleceu; então, o conselho executivo designou a Sra. Winfield para ocupar o seu lugar. Foi uma mudança drástica no funcionamento da casa... Para pior.
-O reverendo prestou um excelente serviço à comunidade - a Sra. Winfield reconheceu a contragosto. - Só lhe faltou um pouco de pulso firme... E claro, ele teve a péssima ideia de permitir que as crianças entrassem e saíssem daqui como se esta casa fosse um hotel... Os pais reapareciam quando lhes dava na cabeça.
Ela sabia muito bem que a situação não era essa. O orfanato presbiteriano foi uma iniciativa de receber meninos e meninas que vinham de lares desfeitos, cujos pais estavam desempregados ou engrossavam as fileiras dos "sem-terra" e dos "sem-teto". Algumas crianças voltavam para casa ao cabo de poucas semanas, assim que seus pais conseguiam trabalho... Outras, vítimas da violência e da exploração, permaneciam por mais tempo.
A casa localizava-se numa zona de grave incidência de desemprego, dentro da Comarca; especialmente, depois que a Millie móveis fechou as portas. A Millie ficava em Groveton... Uma comunidade próxima tanto da Travessia de Dailey quanto de Stark. O impacto do seu fechamento sobre o mercado de trabalho local foi suficiente para desequilibrar o orçamento de famílias inteiras, que dependiam direta ou indiretamente da indústria moveleira.
O reverendo compreendia que a situação financeira afetava seriamente as relações familiares, e não era radical como a Sra. Winfield a ponto de negar abrigo a uma criança, cujo pai estivesse saindo temporariamente da comarca para procurar trabalho. (Se fosse ela, teria denunciado esse pai às autoridades por abandono).
Com o fechamento da Millie, o nível de desemprego ficou crítico... Se para os trabalhadores mais experientes estava complicado, que dirá para aqueles que ainda não possuíam nenhuma qualificação... Os mais jovens estavam deixando a região para tentar a sorte em Berlim ou Lancaster. Mas as pessoas comentavam que as melhores oportunidades estavam no litoral, e no Vale Merrimack.
A situação vinha me preocupando, nas últimas semanas... Pois eu também iria engrossar as fileiras dos desempregados.
Como se acompanhasse o curso dos meus pensamentos, a Sra. Winfield disse:
-Aconselho que volte à escola de Groveton e procure algum curso profissionalizante direcionado ao comércio local; qualquer coisa que lhe dê a chance de conseguir um emprego imediato - ela passou a mão pela testa e suspirou de novo. - Isto é, se realmente quiser uma colocação razoável no mercado de trabalho.
Nesse momento, o telefone tocou e ela me dispensou bruscamente com um gesto.
Sério? Era só isso? Nenhum "Feliz Aniversário!", ou: "Vamos apoiar você, não se preocupe!"...
Agora eu teria de aprender a me virar sozinha... Minha cabeça começou a doer com o peso da depressão. Fui para o dormitório a fim de recolher as minhas coisas. Juntei tudo rapidamente, sem prestar atenção. Parei. Inspirei fundo.
E forcei-me a ter foco.
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