Abrindo a bagagem e as portas do inferno
Agora eu tinha noção do quanto havia me enganado a respeito de Adriano Cahill... Ele não era apenas um médico bem situado na vida. O cara era absurdamente rico!
Fiquei ali... Sentada, no escuro, meditando sobre o curioso "fim de tarde" que passei em companhia de Caridade Cahill. Uma garota estranha, mas fascinante. Parecia frágil, glamourosa, mas ao mesmo tempo... Eu não saberia explicar. Ela era decidida, espontânea. Uma contradição em forma de gente.
Nada parecia ser o que era, naquele lugar.
Olhei para as pilhas de roupas que ela me trouxe, dobradas cuidadosamente sobre a mesinha de centro. Algumas já estavam guardadas no closet. O restante ficaria para o outro dia. Nunca vi tanta roupa de grife. E me serviam perfeitamente – bizarro! - como se ela tivesse tirado minhas medidas antes de escolhê-las.
Eu queria trabalhar para merecer minhas roupas, meu teto e minha comida. Não era nenhuma inválida ou coitadinha para me tornar alvo de piedade dos "riquinhos" da região. Eu já me sentia suficientemente constrangida só pelo tratamento VIP que estava recebendo no Caledônia... Queria saber a razão de cuidarem de mim. Afinal, eu não passava de uma estranha que não tinha onde cair morta. A curiosidade e o receio me queimavam por dentro. E apesar de ter tentado sondar Berenice, e Caridade, nenhuma das duas se dispôs a me esclarecer os fatos. Ambas se fizeram de desentendidas.
Quando falei das roupas que Berenice me arranjou, eu jamais poderia imaginar que Adriano mandaria a prima me trazer aquela avalanche de saias, calças, bermudas, shorts, blusas, camisetas, vestidos, sapatos... E não adiantou recusar. Caridade quase teve uma síncope. Disse que ficaria ofendida, especialmente depois de tomar uma iniciativa que – segundo suas próprias palavras – iria para o seu "caderninho de boas ações do ano". Como se distribuir guarda-roupas novos aos pobres fosse uma nova "curtição".
No final, Caridade ainda disse que se eu tivesse pena dela, aceitaria tudo sem reclamar. Caso contrário, o primo ficaria chateado. Que melodramática!
Bem, seus apelos venceram. Mas só porque eu queria evitar o constrangimento de suas súplicas.
Agora, cá estou eu. Sentada diante de uma confusão de tecidos coloridos. Claro que iria usar muito pouco de tudo aquilo. Roupas chiques, cheias de brilho e detalhes complicados, não faziam o meu estilo. Então, eu separei as menos... Espalhafatosas. Os sapatos, porém, continuavam sendo um problema à parte...
Suspirei, girando o corpo para olhar pela janela. A lua cheia banhava o interior do cômodo, portanto, não era necessário acender a luz. Depois de alguns minutos de distração, voltei a encarar a porta do pequeno closet, onde estava guardada a minha antiga mala de viagem... Decidi que não podia mais esperar para abri-la. Tinha que ser agora. Por alguma razão, eu precisava fazer isso sozinha, sem a intromissão de gente estranha.
Esquecendo-me dos sapatos nem um pouco práticos de Caridade, levantei da cama e caminhei devagar até as portas do closet. Eu me abaixei com cuidado por causa da cinta e comecei a puxar a mala xadrez para fora. Eu ainda sentia pontadas ocasionais nas costelas, mas a bandagem que apertava o meu tórax já não estava me incomodando tanto.
A mala estava bem pesadinha. Caramba! Eu atravessei dois estados carregando isso?
Eu a coloquei sobre o tampo da mesinha de centro com um baque surdo, derrubando no chão as roupas de Caridade. Senti outra pontada nas costelas, dessa vez mais forte. Adriano vai me matar se algo acontecer às minhas costelas. Bem, agora não adiantava chorar pelo leite derramado. O que está feito, está feito.
Acendi a luz do abajur e respirei fundo. Outra pontada. É agora! A hora da verdade! Tentei me preparar... No entanto, por mais que procurasse respirar devagar, o coração continuava galopando no peito. Bem... eu não ficaria menos ansiosa pela espera. Por outro lado, não senti a aproximação de nenhuma crise.
Era melhor acabar com aquilo de uma vez.
Puxei o reco. Estava encrencado. A tampa cedeu para trás aos poucos, por causa do volume interno – vagamente notei que o tecido xadrez da mala estava tão gasto que mais parecia cinza do que azul. Dobrei a tampa totalmente para trás, querendo evitar que os adesivos da minha infância reativassem as reações que o Dr. Talbott classificou como psicossomáticas. (Grego de novo. Amém!).
Roupas e livros. Foram as primeiras coisas que identifiquei. Estavam cuidadosamente dobrados e empilhados para aproveitar o máximo do espaço. As roupas eram práticas, mas já puídas – uma calça jeans desfiada em algumas partes da barra, outra calça de agasalho, três camisetas de cores básicas, um par de sapatilhas pretas com um furo na sola direita, dois pares de calcinha e sutiã de algodão... Nossa, eu viajei com pouca roupa, mesmo. Onde estava o meu casaco de inverno desbotado? E o meu suéter marrom? Como eu iria suportar o inverno rigoroso da Terra do Fogo sem eles?
Suspirei, desanimada. Continuei vasculhando meus parcos pertences na esperança de encontrar algo que me fizesse preencher o abismo entre a Comarca de Hemup e a Comarca Celta. Parecia até uma ironia que, na real, ambas fossem vizinhas. Na minha cabeça, porém, a distância parecia a mesma entre o Brasil e a África... Isto é, com um imenso oceano entre elas.
Quanto aos livros, não eram muitos. Apesar de usados, estavam em bom estado de conservação. Eu tinha levado alguns dos meus romances preferidos, e o manual de desenho... Será que deixei os outros livros no orfanato?
Ao lado deles, encontrei pequenos envelopes que guardavam algumas recordações – recortes de revistas adolescentes, cartões-postais que eu colecionava por causa das paisagens... e os meus queridos chaveiros de bonequinhos que eu adorava! Eram miniaturas e estavam todas ali: o ursinho panda, a garotinha chinesa, o cão maltês, a porquinha dançarina, os três huskies puxadores de trenós, o golden retriever de óculos de sol, o leãozinho balofo, o coelho vesgo, a miniatura do velho celeiro que ficava na saída da Travessia de Dailey – uma lembrança da minha "fortaleza da solidão"...
Havia também um estojo contendo pincéis e lápis de grafite; outro com penas de bico; e um penal de plástico transparente, grande e disforme, com pequenos potinhos de tinta para tecido, nanquim, e aquarela. Lembrei que eu não tinha a escala de cores completa, pois todos os meus utensílios vinham de segunda mão. Eu considerava essas tintas como as minhas maiores preciosidades; algumas doadas para minhas aulas de educação artística, no ensino médio, outras compradas com muito sacrifício.
Mais ao fundo, achei um pequeno e surrado álbum de fotografias... senti o suor orvalhar sobre a testa. Enxuguei-o com as costas da mão e corajosamente folheei as páginas amareladas, a fim de recapitular parte da minha insípida trajetória.
Olhando para aquelas poucas fotos, onde as pessoas apareciam sorridentes, fiz uma breve reflexão sobre a ironia das coisas. Um espectador que as visse, desprovido das devidas informações, poderia realmente acreditar que minha mãe foi uma mãe maravilhosa; que meu pai não tinha morrido (que ele ainda estava por aí, tocando o seu violão); que as meninas que conheci no orfanato e na escola foram realmente minhas grandes amigas; que todas as tutoras gostavam de mim...
Fechei o álbum com força. Não me faria bem olhar para o passado. Essa conclusão também era válida para o único brinquedo que eu conservara durante todos esses anos: a boneca que meu pai havia me dado, e que esteve comigo na hora de sua morte... Eu a reconheci, prensada no fundo da mala. Mais um fantasma do meu passado... Meus olhos encheram de lágrimas, enquanto eu a colocava cuidadosamente ao lado do álbum, no sofá, para não ter que olhar para ela uma segunda vez. Por que eu guardava aquelas coisas, se me faziam tanto mal? Claro que eu sabia o motivo... Antes ter um passado infeliz, do que não ter passado algum.
Tive que respirar fundo algumas vezes, antes de prosseguir.
Continuei vasculhando a mala... Encontrei dois pares de meias. Peraí! Cadê os meus tênis e os meus chinelos? Num saquinho transparente encontrei um pendrive. Esse item não estava entre as coisas que eu me lembrava. Fiquei curiosa. Abri o pequeno objeto e girei entre os dedos. De um lado havia um adesivo escrito: arquivos & e-books. A letra não era minha...
Conectei o pendrive no laptop e cliquei até ter acesso aos arquivos. Apareceram alguns clássicos da literatura; projetos de histórias em quadrinhos; artigos sobre história da arte; imagens de esculturas, de quadros, e de gravuras; resumos sobre os principais museus do mundo, seus acervos e respectivos endereços eletrônicos... Nossa! Fiquei intrigada. Como consegui essa compilação? Mais um mistério que rondava a fronteira entre Hemp e Celta.
Fechei o dispositivo, cliquei na solicitação de "retirada com segurança", e puxei seu encaixe do canal USB. Peraí! Como eu sabia o procedimento? Nunca tive um pendrive antes. Fiquei parada por um instante, encarando o pequeno dispositivo... Então, dei de ombros e o guardei no saquinho.
Voltei a me concentrar na mala... Como em qualquer filme de suspense, o impacto sempre ficava reservado para o final. No fundo, encontrei folhas de vários tamanhos - estavam esticadas e embaladas cuidadosamente dentro de lâminas de plástico.
Eram os meus desenhos. Eu me lembrava deles, é claro!
Fui puxando um por um. Cada desenho representava minhas impressões sobre os cenários bucólicos da região de Coos que marcaram a minha infância e adolescência: o antigo orfanato; o hospital onde meu pai morreu, agora desativado, com todos aqueles vitrais fantasmagóricos e o seu jardim ensolarado; a ponte coberta de madeira que cruzava o rio, não muito longe da Travessia de Dailey; os trilhos da estrada de ferro... Enfim.
Os próximos desenhos tinham um tema muito diferente... eram mais antigos. Eles esboçavam as minhas primeiras tentativas de "exorcizar" as alucinações. Lá estavam os olhos amarelos e vermelhos em espectros disformes, sem rosto; e o monstro alado que assombrara os meus piores pesadelos.
Sim, eu tinha feito vários esboços à carvão dele: batendo as asas ou em seu voo rasante; pousado sobre os galhos das árvores, à luz do luar; pairando diante da janela do meu quarto... Olhar para ele me causou um súbito e terrível mal-estar. A vertigem me dominou, e o ar começou a faltar. Parecia que eu tinha levado um soco no estômago.
E foi desse jeito, sem aviso, que a crise me dominou.
Por um breve momento de lucidez, arrependi-me amargamente de não ter dado ouvidos a Adriano, ou ao Dr. Talbott. Eu sabia que não teria tempo para alcançar o botão de emergência. Completamente paralisada, tombei de lado sobre a cama com o rosto virado para a janela. Que ótimo! Assim eu teria uma vista privilegiada da morte chegando. E lá veio ela, batendo suas enormes asas, enquanto eu aguardava, indefesa.
Meu coração retumbava em meus ouvidos, ecoando o bater daquelas asas em um crescendo orquestrado, até que o som monótono de ambos se tornasse um único som. Um guincho metálico. Então, a vista escureceu na mesma proporção em que a batida dominou tudo. Houve um apagão. E depois, o silêncio.
De repente, uma coisa muito doida aconteceu: imagens surgiram do nada e espocaram na minha cabeça. Inicialmente eram flashes de luzes e sombras que agrediam a minha sensibilidade. Depois, tornaram-se mais definidas... Algumas eu reconhecia, outras eram estranhas e sem sentido. Elas passavam tão rápido que e eu não conseguia entender muita coisa... Mas eu via os fragmentos das cenas como se fizesse parte delas...
Assim, alucinações, pesadelos e fatos se misturaram, unindo passado e presente – a menina que eu fui, e a mulher que me tornei... Mas quem era aquela outra mulher? Parecia ser... Eu.
***
Tarde ensolarada...
Do alto da muralha, eu podia avistar as árvores do bosque. Um perfume característico de incenso queimando me envolveu; eu soube instantaneamente que as mulheres do forte estavam fazendo suas oferendas à Vesta.
A paz me envolvia como um manto protetor - até que, de repente, percebi uma sombra correndo por entre as árvores. Era ele. Eu já estava esperando por aquele confronto.
* * *
Templo em ruínas...
Eu usava um conjunto de véus delicados, que esvoaçavam como se quisessem se lançar pelo penhasco. Ele estava se aproximando cada vez mais rápido... Eu já podia senti-lo às minhas costas.
Ao me virar, finalmente pude vê-lo. Estava magnífico em sua fúria. Os músculos pareciam espantosamente esculpidos na dureza do mármore... Notei que ainda usava seu traje de guerreiro, e a ritualística pintura celta camuflava suas feições, fazendo o olhar cor de jade mais assustador do que costumava ser para os seus inimigos... Mas não para mim.
Ele gritou angustiado e eu quis ceder ao impulso de obedecê-lo, só para fazer cessar o seu sofrimento. Mas simplesmente não podia... Eu tinha que feri-lo para salvá-lo.
Meu olhar para ele foi de adeus, antes que eu me virasse novamente e abrisse os braços diante do precipício.
* * *
O corpo do meu pai estava coberto por um lençol branco.
Permaneci sentada por muito tempo - agarrada à minha boneca –, até compreender que fui abandonada à própria sorte. De repente o corpo se mexeu e uma mancha de sangue começou a se formar no lençol, empapando todo o tecido... Olhei desesperadamente ao redor, mas não havia ninguém que pudesse me ajudar.
O sangue escorreu pelo chão, atingindo os meus sapatos.
* * *
O velho com olhos escarlates estava sorrindo. Mas não havia bondade em seu sorriso quando estendeu a mão para mim. Ele tinha um ramo de louros em sua cabeça... Abriu a boca, e então disse:
-Litterae non entrat sine sanguine.
Embora não entendesse o significado das palavras, eu sabia que se tratava de uma sentence de morte.
* * *
Trovões fizeram o solo tremer, enquanto os raios riscavam o céu cor de sangue.
Os portões do casarão se abriram vagarosamente, à medida que a assistente social me puxava pelo braço até a varanda, onde o reverendo estava nos aguardando... Aquele seria o meu novo lar. Eles me guiaram para dentro e me apresentaram às outras crianças. De repente, todos começaram a rir e a cantarolar:
-Pobre Melissa, ninguém a quis.
Eles tinham os olhos escarlates. Eu queria fugir, mas fui encurralada...
-Agora você nos pertence.
* * *
A celebração acontecia em torno de uma enorme fogueira. Um grupo de jovens comemorava a colheita, cantando e dançando ao som da cítara...
As taças de vinho não permaneciam vazias por muito tempo... Talvez eu até já estivesse um pouco bêbada. Mas o fato é que me sentia alegre e relaxada. Isso era tão bom!
Subitamente, minha cintura foi envolvida por braços musculosos e protetores. Ele começou a sussurrar carinhosamente em meu ouvido, fazendo-me promessas sensuais. Eu estremeci de expectativa.
O riso masculino indicava que ele sabia exatamente o que estava fazendo comigo. Eu era como argila em suas mãos. Mas eu também guardava a secreta satisfação de saber que ele perderia seu invejável controle muito em breve... nas minhas mãos.
Eu me aconcheguei mais àqueles braços. Agora, eu lhe pertencia de corpo e alma...
* * *
A trilha ladeava a estrada de ferro abandonada, parcialmente oculta pelas enormes árvores secas... O outono havia chegado. Fazia muito frio e o céu estava nublado.
Eu já estava sem fôlego para continuar correndo. A criatura alada me perseguia e eu procurava desesperadamente por algum refúgio. Contudo, um grupo de crianças jogava pedregulhos em mim - machucando minhas costas, fazendo-me sangrar...
-Melissa maluca, Melissa maluca, Melissa maluca! - elas entoavam.
* * *
Ao longo da muralha, acontecia uma batalha decisiva.
Homens poderosos tinham os dentes à mostra - guerreiros de armadura com olhos amarelos lutavam ferozmente contra outros, cujos olhos eram escarlates... Os olhos amarelos estavam em menor número, mas eram infinitamente mais fortes. Além disso, algo precioso estava em jogo: a sua liberdade.
As cabeças espetadas em estacas serviam como alerta para que os mortos não ousassem se levantar. Havia sangue por toda parte. O sangue manchava a minha túnica diáfana.
No reflexo distorcido de um escudo, vi que meus olhos já não eram mais castanhos; eram escarlates como os olhos das perversas criaturas... vi também a imagem do guerreiro de olhos cor de jade. Ele estava parado bem atrás de mim, observando-me. Quando me virei, seus olhos tinham se tornado amarelos, e sua expressão era de intenso sofrimento... Ele deixou cair a espada no chão de sangue.
Estendi minha mão para ele. E ele estendeu a sua...
-Você prometeu - eu o lembrei.
* * *
A espiral de loucura evaporou-se de repente. Então, os últimos quarenta dias finalmente começaram a fazer algum sentido, quando as memórias emergiram lentamente das águas escuras do esquecimento...
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