Maria e Carmem
Eu não estou escrevendo esse texto. Pedi para a minha irmã escrevê-lo de acordo com a língua portuguesa padrão. Eu sou surda. Esse texto é mais um desabafo meu do que qualquer outra coisa. Tenho vinte e três anos, me chamo Maria, abreviada para MA por aqueles que utilizam a linguagem de sinais comigo. Sou surda desde o nascimento, tenho má formação da minha estrutura auditiva, não conseguindo reconhecer nenhum tipo de som.
Como surda e mulher, já passei por todo o tipo de coisas. Todas mesmo. Certa vez, eu estava numa festa (porque sim, pessoas surdas podem e vão à festas) e um homem me puxou pelo braço. Ele falou comigo e se aproximou perigosamente de mim. Ele fedia e tinha um cabelo entupido de gel. Eu não sou uma surda letrada, por isso, não podia ler os lábios dele, mas ele parecia interessado em mim.
Tentei me afastar, mas ele me segurou com mais força. Estava doendo e eu não gosto que pessoas desconhecidas me toquem, acho que ninguém gosta. Eu tentei a língua de sinais, com a mão que estava livre. Ele demorou bastante tempo para entender que era assim que eu me comunicava, devia estar bêbado, ou chapado. Era difícil não perceber. Seu olhar mudou totalmente em relação a mim, ele se afastou, me soltou me empurrando de leve, ele me tratou como uma aberração.
Eu não estava querendo ficar com ele, nem perto disso, mas dói ser tratada como contagiosa. Talvez seja uma seja uma das piores das coisas sobre a deficiência, qualquer que seja ela. Pessoas surdas, cegas, paralíticas e etc-etera são frequentemente consideradas inválidas, como se não tivéssemos capacidade de pensar. Isso acontece com tanta frequência que fica difícil não se achar incapaz de fazer qualquer coisa que seja. As pessoas costumam achar que não pensamos, que não sentimos e que não sabemos sobre o que falam só porque não ouvimos ou nos movemos.
Em libras, a expressão facial entra como uma parte importante para a compreensão daquilo que está sendo falado, então sim, sabemos identificar quando os outros estão com raiva, felizes, tristes ou fazendo comentários rudes sobre nossa deficiência. Nós temos olhos e conseguimos entender as coisas, surpresa!
Eu não estudei numa escola que tivesse estrutura para mim, minha família não tinha estrutura para tal. Minha irmã explicava a matéria pra mim e por isso sempre precisou estudar muito para não me ensinar nada errado. Eu estudei artes na faculdade, porque amo pintar e o faço desde criança. É uma das poucas atividades que não precisa de nenhum tipo de palavra e é por isso que eu amo, além de adorar cores, já que elas estimulam diferentes sentimentos no cérebro.
As pessoas que me conhecem costumam dizer que eu não tenho medo de falar o que penso e sinto. Pode parecer irônico, mas não deixa de ser verdade. Talvez, me comunicar de forma diferenciada tenha feito com que a minha necessidade de comunicação aumentasse mais, não sei. As coisas escapam pelos meus sinais de maneira muito natural, é difícil pra mim controlar os gestos. Eles estão comigo, estão na minha cabeça.
Não tenho muitos amigos ouvintes além da minha irmã, Carmem. Ela sempre me apoiou durante a minha jornada. É adotada e tem a mesma idade que eu. É a pessoa que mais amo no mundo (meus pais que me perdoem). Ela está sorrindo enquanto escreve isso. O sorriso dela é bonito. Disseram pra mim uma vez que a voz dela é linda. Eu queria poder ouvir. Minha irmã é musicista, toca violino. Ela costuma traduzir as letras dos clipes que passam na televisão pra mim. Eu gosto, é como uma dança com palavras. Eu não sei se é assim que música é, mas é como eu entendo ela.
Nós temos dois pais. Eu sou filha de um deles, de outro relacionamento, enquanto o nosso outro pai se juntou a nós um ano depois, já Carmem três anos após. Somos bem felizes. Todos aqui falam libras e acreditem ou não, isso é sim, um privilégio. Meu pai inclusive dá aulas em instituições carentes, para sanar esse problema. Não conheci minha mãe. Ela morreu quando eu nasci pré-matura, de sete meses.
Minha família por parte de mãe não quer saber de mim. Me consideram um erro. Na verdade, consideram toda a nossa família um erro, mas eu sou o maior deles, porque nasci quando a filha deles morreu e ainda por cima, "defeituosa". Isso acontece com certa frequência. As pessoas sempre parecem decepcionadas quando me conhecem pessoalmente.
A maioria delas disfarça, mas todos parecem gostar da ideia de me consertar. É claro que eu queria poder ouvir, deve ser uma coisa maravilhosa, mas não sinto falta de algo que nunca tive e tenho certeza que a surdez foi algo que me tornou muito mais forte.
Muita gente me trata como se eu fosse outra coisa que não humana. Mas, pasme, eu sou humana. A falta de audição não é o que eu sou. Eu sou uma filha, uma irmã, uma aluna, uma pintora, uma mulher, que deve ser respeitada como todas outras. Por isso eu pedi para minha irmã escrever esse texto. Para mim, pessoas intolerantes que são defeituosas, eu só enxergo o mundo diferente de você e tenho algumas coisas a dizer, que todo mundo deveria ler.
Essa boba que escreve está chorando com o que eu estou dizendo. Ela acabou de pedir para eu parar de rir dela, mas não é fácil. Minha irmã sempre foi sentimental, totalmente diferente de mim.
De qualquer forma, o que eu quero dizer é que nós devemos tratar todas pessoas como pessoas, não apenas a partir de seus defeitos. Vou contar um pequeno evento que aconteceu na primeira exposição de arte de minha autoria. Isso já faz mais ou menos uma semana e é a primeira vez que minha irmã está sabendo disso também:
Era a primeira amostra importante da minha curta vida, na Casa França Brasil, que ficava no centro da cidade, próximo de outros centros culturais, o que ajudava muito na hora de conseguir expectadores, que muitas vezes vinham de outros museus. Eu trabalhava com instalações sensoriais além da pintura, para explorar os sentidos que as pessoas geralmente ignoram, principalmente o tato. Minha obra favorita era o Chão de Tinta, que era um grande piso, coberto com tinta óleo, onde as pessoas precisavam sentir a tinta, sem vê-la, pois a sala era escura demais para que se pudesse ver algo. No final, as luzes eram acesas e todos podiam ver o que estava pintado.
A exposição não estava muito cheia, mas tinham outras pessoas além da minha família e isso era um ótimo sinal. O curador veio falar comigo.
-A exposição está sendo um sucesso, considerando que é a sua primeira, parabéns.-minha irmã traduziu pra mim. Eu agradeci e fiquei muito feliz. Apertei a mão dele e fiquei perto da parece que continha informações sobre minhas obras e sobre quem eu era.
Eu vi pessoas vindo e indo, algumas vinham falar comigo. A maioria adorava saber que eu era surda, outras ficavam meio espantadas, mas tudo estava correndo tão bem que eu achei estar vivendo um sonho.
-Estou tão feliz hoje.-eu disse a minha irmã.
-Tudo veio a partir do seu esforço, Maria.-ela gesticulou, com um sorriso, parecendo emocionada.
Eu a abracei. Ela se afastou de mim para falar com um de nossos pais. Nesse meio tempo, uma senhorinha se aproximou de mim. Ela tinha um cabelo loiro tingido e bem preso e usava roupas num chamativo tom de rosa. Eu tinha um intérprete próximo, caso minha irmã estivesse longe e a pessoa que conversasse comigo não soubesse libras, que era 99% dos casos.
A velhinha nos olhou, perguntou alguma coisa e o meu intérprete, Luís, apontou pra mim, com um sorriso. Eu acenei para ela e sorri. Ela fez alguma pergunta pra mim. Eu olhei para Luís. Ele falou alguma coisa pra mulher e eu sabia que ele estava dizendo que eu era surda. É a única palavra que eu sei identificar, já que é assim que fui denominada durante toda a minha curta vida. A senhora pareceu assustada.
Então ela fez algo bem estúpido. Ela tentou gritar para pedir desculpas. Meu intérprete segurou o riso e traduziu para mim. Eu não sei exatamente o que é um grito. Só sei que às pessoas gostam de jogar saliva pra fora da boca enquanto o fazem e minha irmã diz que fazem doer os ouvidos.
Eu fiz um tudo bem para Luís. A mulher se afastou rapidamente, como se estivesse assustada com a linguagem de sinais. Ela falou. Luís hesitou, mas traduziu.
-Como você pode pintar bem se não sabe ficar com as mãos calmas?
Ela havia me perguntado isso. Eu não me abalei e respondi que aquela era a única forma que eu tinha para me comunicar. Já haviam me dito que os surdos proferem alguns sons enquanto fazem linguagem de sinais, por precisarem de seu rosto e não saberem controlar a emissão de sons às vezes. Eu presumo que foi o que aconteceu, porque a senhora se afastou mais e fez o sinal de uma cruz com as mãos.
Preferia que Luís não traduzisse, mas havia feito com que ele prometesse traduzir todas as críticas, sendo quaisquer que fossem.
-Você é um demônio.
Eu ri da mulher, mas ela parecia realmente assustada. Isso tornava a situação mais cômica.
-Sou humana, como você. A única diferença é que você é ignorante.-Luís pareceu gostar de traduzir isso. A mulher começou a fazer um escândalo e as pessoas estavam olhando.
-Não tem necessidade de eu te dizer o que ela tá falando, não vale a pena.-ele diz.
Suspiro e olho para Luís, que parecia desconfortável com aquela situação, enquanto remexia sua pulseira com as cores do arco-íris.
-Por que você me odeia?-perguntei a ela.
-Deus criou o homem com ouvidos para ouvir.-ela respondeu e Luís traduziu.
Não precisei pensar na resposta. Já havia lidado com outros que eram assim e sabia que não seria a última vez.
-Deus criou o homem com um coração para amar e uma cabeça para pensar. A Bíblia diz que devemos respeitar e amar ao próximo, não discriminar. Os surdos nunca discriminariam você. Você é defeituosa, porque os discrimina. Eu posso não ouvir, mas você não consegue escutar.
A mulher continuou de cara fechada para mim e sua boca se movimentava mais rápido e ela não podia fixar seus olhos em lugar algum. Eu olhei para Luís, buscando ajuda para entender o que ela falava.
-Ela não sabe o que dizer. Está tentando encontrar argumentos.-e acrescentou-Você é boa demais, Maria. Eu já teria sido grosso com ela.
Eu ri dele.
-Se nós queremos respeito, temos que respeitar também.-eu disse e ele apenas fez que "sim".
Um homem então se aproximou de nós. A mulher parou de mexer os lábios na mesma hora. Eu pude reconhecê-lo com rapidez. Era um crítico de uma revista famosa de artes plásticas. Eu simplesmente amo o trabalho dele. Ele estava com o folder da minha exposição na mão.
Ele começou a fazer linguagem de sinais e a falar ao mesmo tempo.
-Você é Maria?-ele perguntou e eu confirmei.-Sua arte é fantástica. Você tem muito talento. É muito interessante ver o mundo pelos seus olhos, eu realmente adorei a experiência. Obrigada por proporcionar essas novas sensações, você é uma artista fenomenal.
A senhora estava horrorizada e saiu da exposição, jogando meu folder no chão. Não me importei nenhum pouco, porém. Aquela crítica havia me feito ganhar o dia. Fui finalmente reconhecida pelo meu trabalho e aquilo era mais precioso que qualquer condição de existência.
A Carmem está chocada aqui. Ela está rindo também. Agora, nós vamos até um bar que é aqui na esquina de casa. Gostei de fazer isso aqui, parece um diário. Vou voltar a escravizar ela para escrever pra mim quando voltarmos, sou eu que vou pagar pra ela ficar bêbada mesmo.
Ela disse que estou acabando com a imagem dela durante esse relato. Talvez seja intencional. Eu sempre fui a irmã mais interessante mesmo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro