Aline
Acordo cedo. O sol acabou de aparecer no céu, são cinco e meia da manhã. Não me demoro muito entre lençóis, meu expediente começa às sete em ponto. Meu cabelo está um ninho de marfagarfos, mas nada que um bom banho não resolvesse e depois de uma longa noite terminando trabalhos pendentes.
Lavo meu cabelo e limpo meu corpo rapidamente, para não perder tempo. Que coisa preciosa é o tempo pra mim, a minha vida desde cedo foi ditada apenas por ele. Enquanto penteio os meus cabelos crespos, olho os emails no celular. Beyoncé toca a plenos pulmões pelo meu pequeno apartamento quarto e sala e eu cantarolo com ela, baixinho.
Me visto rápido, analisando meu corpo na roupa simples pra trabalhar, em meus um metro e setenta e nove de altura, com direito a um salto dez centímetros pra realmente me destacar. Olho o relógio, já estou atrasada. Coloco a música em fones de ouvido e vou direto para o carro, com a bolsa de marmita debaixo do braço e o celular na outra. Eram seis e meia da manhã, mas já estavam me ligando a trabalho.
Saio com o carro pela garagem do prédio, cumprimento o porteiro que rega as plantas na saída e vou dirigindo pelo trânsito complicado do Rio de Janeiro, com cuidado pra não esbarrar em nenhum maluco de ressaca em plena segunda feira.
Chegar ao trabalho não demora muito. Felizmente, eu trabalho próxima a minha casa e em quinze minutos chego no centro. O secretário engomadinho, Jorge, está na porta, cuidando de seus assuntos no balcão do hall e sorri pra mim.
-Bom dia, dona Aline.-ele diz, acenando de leve.-Seu cabelo está lindo.
Afago levemente o meu black power sorrindo pra ele, prestando atenção nas mechas próximas ao meu pescoço, procurando por pontas duplas e fios brancos, que não eram incomuns de serem vistos em mim.
-Ele acordou de péssimo humor hoje, mas que bom que você achou isso.-eu sorrio mais uma vez, antes de seguir para a minha sala.
Sou diretora comercial de uma grande empresa de produtos capilares. Nosso foco são pessoas de cabelos cacheados e crespos, que não possuem muitas opções no mercado. Utilizamos produtos veganos, sem testá-los em animais e conseguimos baratear o custo o máximo possível. Trabalhar naquele lugar é uma dos meus pequenos orgulhos.
Principalmente por aquele ser um problema tão pessoal para mim. Morei na Maré por quinze anos na minha vida,com o meu pai. Sei o que é ter black e ter que lavar com sabonete. Levar produtos de qualidades para uma parcela tão marginalizada da população é de extrema importância.
Eu estou trabalhando em uma linha para cabelos coloridos no momento. Minha equipe e eu permanecemos trabalhando nisso durante semanas e estamos prontos para apresentar ao diretor da empresa e tentar convencê-lo de nossa proposta.
-Por que eu deveria aceitar esse seu projeto?-pergunta o diretor da empresa, um homem de mais ou menos cinquenta anos, branco e muito bem abastado.
Apesar de difícil de crer, aquele é sim, sempre foi, um ambiente dominado por homens e por mais que nossa companhia queira passar uma ideia de diversa, eu como única mulher negra diretora de alguma coisa da história, posso dizer que não era, e que muitos aqui dentro acreditam nos cosméticos para diferentes etnias como algo passageiro, até a moda do liso-lisérrimo voltar. Aquela que nem nos abandonou inteiramente ainda.
-As pessoas "coloridas" estão crescendo cada vez mais em número. Tanto mulheres quanto homens. Temos grandes influenciadores digitais com cabelos coloridos e por isso, é o momento certo de dar atenção a esse tipo de cabelo que necessita de cuidados diferenciados.-eu explico, de frente para uma reunião repleta de homens.
Ter de se lidar com esses ambientes era extremamente revoltante pra mim, como deveria ser para todas as mulheres. Lidar eu sabia, mas me acostumar, nem um pouco. Mas esse era um conhecimento totalmente dispensável.
-E como você pretende que lidemos com o público?-o homem ao seu lado pergunta, com olhos descrentes abaixo dos óculos, o Marcos.
Marcos era do pior tipo. Machista, violento com a mulher, apesar dos dois negarem de pés juntos e eu tenho certeza de que quando me viro para mostrar os 'sketches' da ideia de comercial que havíamos desenvolvido, ele encara a minha bunda fixamente.
-A minha ideia era abordar isso de maneira diferente das outras marcas. Normalmente o cabelo colorido é associado com rebeldia, mas não necessariamente precisa ser assim. Na minha visão, seria ótimo que incluíssemos diferentes mulheres e homens, com estilos diferentes entre si.-eu os olho.-Pensamos em usar uma pegada meio "Black or White", onde os atores mudariam a todo o tempo com seus diferentes cabelos, estilos e corpos, mostrando aquilo que nós, Divarsidade, representamos.-eu digo, terminando o show de slides com os sketches do meu cuidadosamente planejado projeto.
Meu chefe olha para mim por alguns minutos e logo depois para os slides. Ele suspira e fita seus colegas, diretores de outras áreas da empresa. A única outra mulher presente além de mim era Larissa, Diretora Farmacológica. Ela sorri de maneira sutil para o projeto, enrolando uma mecha dos cabelos lisos.
-Eu gostei.-ela diz, aliviando um pouco a minha tensão. Ainda assim, eu sabia que ela era a mais fácil de conquistar dali. Olho para os outros, esperando alguma resposta.
Percebo então que realmente havia subestimado a minha capacidade de ser ingênua.
-André, o estagiário.-chama o diretor geral. Meu estagiário olhou meio surpreso por ter sido chamado em tal situação.
-É Alex...-ele murmura, antes de suspirar.-Sim, senhor?-ele pergunta, tentando demonstrar confiança.
-O que você acha do projeto?-meu chefe pergunta à ele.
Olho surpresa com uma pergunta tão ridiculamente afrontosa à minha posição de diretora e idealizadora do projeto. Ninguém da sala além de mim parece incomodado, mas isso era porque a competência de nenhum deles é posta à prova. Talvez Larissa me entenda.
-Bem, senhor, eu sinceramente... Não gosto muito dessa ideia de ter homem de cabelo colorido no comercial.-ele parece se esforçar pra achar as palavras adequadas. Não tava conseguindo muito.-A-afinal, quase não existem homens que pintem ou liguem pra seus cabelos. Esse é um aspecto muito mais feminino, afinal. Pra que colocar eles e correr o risco de ser criticado pelos movimentos conservadores sem o retorno financeiro devido?-meu estagiário diz. Meu. Estagiário. Diz. Não posso acreditar naquilo, nem por um segundo.-As ideias da Aline parecem ter muitos desses... Problemas, pra mim, afinal.
A quantidade de vezes que ele repetia a palavra "afinal" me perturbava profundamente.
-Adoro sua percepção e a ousadia de dizê-la, André.-sorri Arlindo, meu chefe.-Acho que ele tem razão. Vamos fazer isso. Dispensados.-todos começam a se dirigir para a porta da sala de reuniões.
Tudo aconteceu muito rápido, mas a minha língua e meu psicológico já eram treinados com anos de experiências, apesar de nunca ter sofrido algo tão discarado assim. Não posso ficar calada mais nenhum segundo sequer.
-Com licença, chefe.-eu falo alto, quero ser ouvida -para variar-. Todos olham pra mim e param de se mover em direção a saída.-Você ouviu o Alex, nosso estagiário. Eu mereço defender a minha visão como Diretora Comercial.
-Ah, claro. Sentem-se, por favor.-ele manda e todos voltam a sentara, parecendo contrariados e de saco cheio. Que surpreendente, principalmente naquele ambiente que abraça de maneira tão forte as diferenças.
Acho que eduquei meu autocontrole para chegar nesse momento. Respiro fundo.
-Senhor, a Divarsidade não é uma empresa de maiorias, primeiramente. Nossa ideia é abraçar todos os tipos de pessoa. Dessa forma, não é incoerente representar homens que pintam os cabelos. Além disso, como somos os ÚNICOS que atuariam nesse ramo oficialmente, todos os compradores iriam em busca de nossos produtos.-eu faço uma pausa para respirar.
-Mas...-Marcos, o Babaca, abre a boca para me cortar, mas eu levanto a mão.
-Você ouviu o Alex sem o interromper. Faça o mesmo comigo.-ele me olha, desconfortável. Pena que estou pouco me fodendo pro conforto dele, numa hora dessas ou em qualquer outra.-Diretor Arlindo, eu tenho anos de experiência no ramo e desde que fui contratada, nossas vendas dobraram a cada nova companha. Assim, me tornei Diretora Comercial e fui a primeira mulher a chegar até aqui, apesar de cuidados com cabelo serem algo de mulher, segundo nosso estagiário lindo. Desvalorizar meu projeto pela opinião de um garoto que nunca trabalhou no ramo é que é inconsequente.
-Senhorita Aline, sua ousadia está sendo ofensiva para nosso espaço. Isso aqui é ua reunião séria.-meu chefe diz, parecendo sem energia para tal discussão. Coitado dele, está exausto.
-Antes de qualquer coisa, me chame de Diretora Aline, porque é isso que eu sou. Meu estado civil não importa mais do que o meu cargo nesse ambiente de reunião de trabalho. Usei a mesma terminologia que o Alex. E você acabou de dizer que a ousadia dele era algo digno, pois então a minha também é.-os diretores me olham, meio incrédulos ou ofendidos.-Com todo o respeito, não serei desmoralizada em valorização de alguém que acabou de chegar quando estou certa.
-A senhorita está agindo de forma muito histérica. Se acalme um pouco, Aline.-diz Arlindo, sem me olhar, organizando documentos em sua mesa.
-Não confunda querer respeito com histeria, por favor. Eu não estou gritando ou ofendendo ninguém.-está cada vez mais difícil não fazê-lo. Esses homens realmente estão se esforçando, tenho que dar crédito a eles por isso.
Meu chefe suspira. Marcos, aquela cobra, sussurra algo para o seu assessor, que faz os dois sorrirem. Alguma piadinha, com certeza. Eu ignoro os dois com prazer. Não faria uma cena na frente daqueles que não valiam a pena.
-Só queria ouvir uma opinião sobre o projeto, não seja assim, Aline. Entendo que você seja sensível, mas por favor, se comporte.-Arlindo está perdendo sua paciência, mas eu já havia perdido a minha muito tempo atrás.
-Então ouça as opiniões do meu time de publicitárias e assessoras de marketing.-falo como sendo a maior obviedade do mundo. Talvez fosse.- Trabalharam comigo enquanto amadurecíamos a ideia. Elas estão qualificadas pra falar de tudo o que quiser saber. O estagiário não parece a escolha mais apropriada na minha opinião.-respondo, já pronta para acertar alguém com meu salto alto.
Eu odeio gente que muda a forma de tratamento por conta do gênero. Sim, eu odeio muitas pessoas, eu sei.
-Peço que não me ensine a fazer meu trabalho, Aline.-ele fala, com uma voz ameaçadora.
Pena que eu não tinha nenhum medo dele. Que figura ameaçadora um homem de um metro e meio, com apenas uma auréola de cabelos tingidos de um preto vergonhoso era. No máximo ele iria morder meu tornozelo.
-Você acabou de pedir para um estagiário me mostrar como se faz o meu.-eu digo, rindo.-Já é a segunda vez que você se contradiz nessa reunião, acho que o machismo pode ser um pilar mesmo de uma empresa com um nome tão patético quanto "Divarsidade".
-Aline, se quer continuar trabalhando aqui, é melhor que pare agora com essa insubordinação.-as orelhas de Arlindo começavam a ficar vermelhas. É de fato difícil não rir dessa situação.
Meu psicológico está indo para o espaço é ainda são cinco da tarde.
-Você não é nenhum rei pra ter subordinados, Arlindo. Acho que você tá se confundindo, mas eu entendo que você esteja sensível.-eu suspiro, e puxo meu pendrive com todos os meus projetos e aqueles futuros do computador acoplado ao projetor que mostrava meus slides.-E graças à todo o meu estudo, querido, eu prezo mais pelo respeito à minha pessoa do que a um emprego num lugar tão ridiculamente hipócrita como esse. Trabalho demais pra isso e ninguem merece esse tratamento. Eu vou apresentar meu trabalho em outro lugar e vou ganhar dinheiro lá. Me demito. Minha equipe e eu estaremos fora em duas horas.-eu ando com minhas coisas embaixo dos braços e abro a porta, aproveitando o silêncio. Paro e me viro para eles, de lado pra passagem.-Ah, tem mais umas coisinhas. Primeiro, nem tentem roubar o meu projeto, porque eu já patenteei ele. Além disso, se eu fosse vocês, não pegava na mão do Marcos, porque ele ficou com ela no saco a reunião toda. Deve ser algum probleminha de higiene, tadinho.
Fecho a porta sorrindo, apreciando as caras incrédulas que tinha ganhado naquela reunião. Chego na minha sala como um furacão e explico a situação para a minha equipe que aguardava o resultado da reunião. A culpa conseguia me consumir agora. Elas riem, apesar de tudo. Isso era um bom sinal.
-Você é minha heroína, Aline!-diz uma delas, Marisa, baixinha de cabelos azuis.
-Vocês não estão bravas? Eu meio que demiti vocês junto.-eu pergunto, temerosa por elas.
-Nem um pouco! A gente também já tava cansada dessa hipocrisia astronômica.-diz Eliana, a que estava a mais tempo comigo.
-Nós sabemos nos cuidar, Lin. Relaxa. E se pudermos, te seguiremos na sua próxima empreitada.-sorri Bianca, tocando no meu ombro.
-Sabia que tinha montado o time certo.-eu digo, sorrindo pra elas.
-Bem, a gente deveria tirar nossas coisas daqui né.-fala Natália, já começando a arrumar suas coisas numa caixa de plástico dobrável.
-Vamos nessa.-eu digo, com um suspiro.
.
Entro no meu carro e deixo minhas coisas no banco do carona. Dou um suspiro alto. A sensação de empoderamento acaba aqui. Agora só me sinto desempregada. Droga. Talvez fosse melhor só deixar aquela merda daquela criança estagiária ganhar o dia. O lugar pagava bem. Eu até consegui morar na Tijuca.
Não. Eu tenho que pensar em mim. Valorizar sempre a sua integridade mental, é o meu lema. Começo a me questionar se seria a melhor maneira de mantê-la, porém. Bem, eu sempre mantinha fundos pra caso algo acontecer, de qualquer forma. Só não achava que teria que usar elas tão cedo na vida.
-Que merda de sociedade.-eu digo, tirando os saltos que machucaram meus pés. Nota mental: nunca mais usar aquelas coisas. E dando a partida no meu Prius preto, jogo eles no Audi de Marcos que estava a duas vagas de distância. O alarme começa a tocar e a porta do motorista fica um pouco amassada. Ter trinta e cinco anos não tornava ninguém adulto e eu tinha plena noção disso.-Tchau, Divarsidade.
Dirijo pelas ruas da cidade com o meu carro e faço um desvio do caminho de casa, parando no barzinho mais próximo, sujo e com cara de antigo no meio do Centro da Cidade, com poucas pessoas ás sete horas da noite.
Sento no balcão vazio e o barman olha pra mim estranhando uma moça descalça no seu pé sujo. Eu estou estranhando também.
-Cinquenta e um.- Eu digo, olhando pra ele de maneira direta e nem um pouco aberta para discussão.
Não deveria fazer aquilo, eu tava dirigindo. Mas eu não me importava com muita coisa mais. O meu emprego era tudo o que eu tinha. Meu pai morreu, minha mãe me abandonou quando eu tinha cinco anos e não tinha nenhum outro membro da família. Sem falar de qualquer outro tipo de relacionamento. O mais próximo de amigas eram as meninas que eu tinha colocado na rua comigo hoje mais cedo.
Sou um ser humano ótimo.
Meu pai tava certo. Às vezes álcool é a solução mais rápida pra esquecer os problemas da vida mesmo.
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