A Morte do Justo
Um conto adicional de Uma História Bárbara
...e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro.
(1 Tessalonicenses 4:16)
Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida.
(Apocalipse 2:10)
Mas aquele que perseverar até ao fim, esse será salvo.
(Mateus 24:13)
Aquela cela fria no subsolo do Coliseu era uma velha conhecida do ancião. Logo ao entrar, seus olhos tinham corrido para o lugar da parede que continham os risquinhos feitos com a ponta do capacete, marcando os dias agoniantes que passara ali. Lá estavam eles, desgastados, mas ainda visíveis; sua memória sobrecarregada pelos anos não o ludibriara.
As pupilas castanhas do velho senhor retornaram às inscrições agora, como a uma lembrança de que dias melhores tinham vindo após elas, de que dias melhores sempre podem vir. Ele já não precisava mais entalhar a parede para manter a sanidade. Tinha acontecido exatamente como ela dissera: ele não temia mais a morte. Não mais temia a dor, embora preferisse evitá-la, quando possível.
Sua alma estava em paz.
O homem perscrutou o calabouço, para localizar sua interlocutora daquele dia – e de tantos outros depois. Estava curioso para saber se ela também havia reconhecido a enxovia; ela não era tão boa com localização. Mas era boa em muitas outras coisas, como o que estava fazendo naquele momento: consolar uma jovenzinha assustada que chorava em seus braços, animá-la, e encorajá-la, para que enfrentasse de cabeça erguida seu destino, direcionando os pensamentos para a recompensa que lhe estava reservada.
Pois, no fim das contas, a morte não tinha real poder sobre eles.
Era apenas mais uma etapa.
As entranhas daquele senhor se encheram de ternura e orgulho ao contemplar a idosa em atividade. Ela também tinha evoluído tanto. Aprendera a ser mais paciente, e até carinhosa, pois às vezes as pessoas precisavam de carinho. Uma doçura, pouco a pouco, tinha revestido seus modos bruscos ao longo da vida. Mas eles ainda estavam lá, como no olhar que ela lançou ao ancião do outro lado da cela, com uma das sobrancelhas erguidas.
O ancião sorriu para si, ao ler naquele olhar duas coisas. Sim, ela lembrava. E estava cobrando dele que fizesse sua parte no trabalho em equipe – a forma como haviam trabalhado a vida inteira; por que se demorava tanto?! Os companheiros precisavam dele.
Com um suspiro profundo, o velhinho esfregou o próprio rosto, e puxou um pouco suas calças, ajeitando o pano dos joelhos, enquanto pensava no que fazer.
"Alleluia. Dilexi, quoniam exaudit Dominus vocem deprecationis meae", entoou subitamente a voz grave e enrouquecida, que não combinava muito com as palavras em latim, apesar de pronunciá-las com perfeição.
Ele não fitava ninguém em particular, cantava para si, em voz alta, mas acabou transmitindo sua tranquilidade aos muitos ocupantes daquele cárcere lotado. Progressivamente, os soluços e murmúrios agoniados silenciaram, e somente o salmo do ancião reboava no subsolo silencioso do Circo Máximo.
"...Misericors Dominus et iustus, et Deus noster miseretur", outras vozes se juntaram ao solo, que logo se tornou um coro. Vozes de homens, mulheres e crianças, entoando um hino que conheciam havia muito, mas ainda não tinham tido a oportunidade de sentir na pele, como naquele dia.
"Pretiosa in conspectu Domini mors sanctorum eius".
Preciosa é à vista do Senhor a morte dos seus santos.
Uma atmosfera gloriosa e de paz imperava quando eles terminaram de cantar o salmo. Algumas pessoas emendaram outros, fazendo soar uma contínua cantilena de fundo, enquanto outros, acalmados, pensavam em como minimizar os danos.
Era noite profunda agora, e somente um estreito retângulo de luz se coava pelo respiradouro que dava para a rua, pois o luar estava muito intenso. Outros cristãos tinham sabido da notícia da prisão de seus irmãos e, agora, com a cidade adormecida, saíam de seus esconderijos para ver o que podiam fazer.
Alguns se achegaram ao respiradouro da cela em que estavam o ancião, sua esposa e os companheiros. Traziam algumas limas, e trabalharam com afinco, junto a alguns dos que estavam presos, para romper pelo menos duas ou três das barras de ferro.
Assim, conseguiram passar para os de fora um bebê que a mãe, trêmula e de olhos marejados, entregou para a segurança, e ainda algumas das crianças menores, cujo tamanho permitia que atravessassem pelo buraco.
Isso garantiria a continuidade. Aos que ficaram, restava esperar, orar, e, eventualmente, resignar-se.
Uns poucos se recostaram como podiam para dormir. O velhinho tinha vontade de fazê-lo, também. Estava terrivelmente cansado, suas costas doíam – já não tinha mais o vigor dos tempos de guerreiro – e os soldados não haviam sido especialmente delicados com ele em respeito às suas cãs. Mas, novamente, ele viu a esposa, incansável em seu cansaço, sussurrando palavras de ânimo à mãe que tivera que entregar o bebê, e soube que tinha que seguir o exemplo dela.
"Você precisa ser forte", ele ouviu mentalmente aquele pedido-encorajamento que ele e a esposa costumavam fazer um ao outro, tantas vezes durante tantos anos, e cogitou que logo teria muito tempo para descansar, de qualquer forma.
Ele logo entraria no Descanso. A próxima parada era o lugar onde não haveria mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor. Não custava gastar as últimas forças para ajudar seus irmãos a ter uma travessia suave.
Com palavras gentis e ponderadas, dirigidas aos vizinhos que estivessem mais apavorados, ele também se lançou ao trabalho.
***
A manhã veio encontrar os cristãos todos adormecidos.
As crianças que não eram pequenas o bastante para passar pelo respiradouro arrombado, nem grandes o bastante para compreender o que se passava, começaram a reclamar de fome para seus pais. Estes pediam paciência, mas reconheciam sua inutilidade; se fossem um botim pequeno, os soldados provavelmente lhes dariam última refeição, para que as bestas pudessem fartar-se. Com um grupo tão grande, porém, elas poderiam banquetear-se, a despeito das carnes magras.
Ao ouvir as queixas, porém, a anciã tomou as mãos dos que estavam ao seu lado, convocando a oração do Pai Nosso. Aquele podia vir ser o seu dia derradeiro, mas ainda era um dia, e o pão de cada dia Ele prometera enviar.
Demorou, mas de fato o alimento veio. Lá pelo meio da tarde, alguns carcereiros mal-encarados trouxeram bacias com pedaços de pão, e trouxeram também até vinho, num luxo bastante inédito. Propuseram dar o vinho aos mais novos, para encorajá-los e, o quanto possível, anestesiar.
A ideia foi aprovada pelo grupo, mas decidiram, previamente, realizar uma última ceia.
Fazei isto em memória de mim... Vou preparar-vos lugar.
(Lucas 22:19 – João 14:2)
Um ato de lembrança, esperança, confiança... e desafio.
As poucas horas seguintes transcorreram em silêncio, quebrado apenas pelas brincadeiras dos pequenos cristãos que, de barriga forrada, já estavam despreocupados. Alguns até estavam tirando um cochilo.
Os adultos, porém, cujas mentes já tinham sido dilatadas pela vida para que conhecessem a preocupação e o medo, meditavam. Reafirmavam seus motivos. Pensavam naqueles que tinham ficado de fora, pensavam no que lhes tinham dito e no que gostariam de ter dito, ou nas palavras que prefeririam retirar. Nos exemplos que tinham dado e que estavam prestes a dar. Pensavam no porvir. No imediato, e no prometido. E, assim, oscilavam entre temor e expectativa.
E a hora chegou.
Um legionário abriu a porta e uma pequena tropa invadiu a cela lotada, incitando os cristãos para fora. Como um pequeno rebanho eles seguiram, escoltados pelos açougueiros, pelos corredores de pedra úmida do Circo. Em meio ao percurso, o ancião, que parecia esquecido de sua dama, abriu caminho até ela e capturou sua destra trêmula, entrelaçando-lhes os dedos. Pressionou-lhe a palma com delicadeza, como centenas de vezes antes, e recebeu idêntica resposta. Com o canto do olho, viu as várias rugas dela se esticarem em um sorriso pensativo.
Novo hino soou, entoado em voz baixa pelos irmãos já conformados. Aquele casal não os acompanhou de início. Pensavam no legado deixado. Seus filhos – e netos, e talvez bisnetos – estavam em segurança, espalhados pelo mundo, e provavelmente demorariam a ter notícia do acontecimento daquele dia. Certamente quando soubessem se entristeceriam, chorariam, mas não longamente, pois sempre souberam que terminaria assim.
Era o seu destino. Não, era a sua escolha.
Não havia utilidade para arrependimento, e nem a mínima intenção de se arrependerem.
Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho.
(Filipenses 1:21)
A areia da arena logo os saudou. Não era a mesma areia, certamente, nem o mesmo prédio, na verdade – parte dele tivera que ser reconstruída após o incêndio. Também não estava entre as bestas lá na frente o leão que tivera preguiça de atacá-los quando não era a sua hora. E, ainda assim, as lembranças não poderiam deixar de brotar do solo, e movê-los um pouquinho, só um pouco.
O grupo de feras não era tão grande, e – embora a multidão e os soldados não acreditassem nessa hipótese – os cristãos talvez pudessem escapar dos bichos, ou driblá-los, caso se organizassem. Assim, selecionando os mais ágeis para uma caçada interessante, os algozes os separaram do grupo grande – que rumorejava o hino mais alto agora, num crescendo que acompanhava a intensidade do momento. Quanto aos restantes, as espadas se incumbiriam de facilitar o trabalho dos animais.
Dois legionários sacaram os gládios e se postaram à frente. Foram ceifando, aos pares, as vidas que lhes eram encaminhadas por outros soldados, cutucando os prisioneiros com as lanças para darem seus últimos passos. Alguns – dentre eles o casal de anciãos – tentavam não olhar o espetáculo macabro que se passava à distância de um metro. Outros contemplavam sem desviar o olhar: julgavam honrar, assim, a coragem de seus companheiros. Todos, porém, tinham desligado os ouvidos, pois os risos e zombarias e gritos do público em nada devia afetá-los naquela hora.
O polegar do ancião ainda roçava as costas da mão de sua esposa em sossegados movimentos circulares quando um espeto em suas costelas indicou que havia chegado a sua vez. Eles caminharam à frente, soltando as mãos, para se ajoelhar ante os carrascos, a pequena distância um do outro.
Quando os joelhos cansados tocaram a terra, numa prostração despida de significado para aqueles espíritos de pé, os idosos trocaram um olhar.
– Aposto que chego até Ele antes de você – a tremida voz feminina soltou, numa provocação juvenil.
– Vai sonhando. Minhas pernas são mais longas – emitiu o homem, ele também eternamente jovem, por dentro.
Um par de sorrisos alegres enfeitou seus rostos, e permaneceu cristalizado definitivamente nos crânios que rolaram pelo chão bege.
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