treize
Três meses atrás...
Aceitar fazer os figurinos para uma ópera de cinco atos em um mês foi, talvez, a pior decisão da minha vida (segunda pior, a primeira todo mundo sabe qual foi). Um pequeno incêndio no ateliê dos meus concorrentes, o Maison Toussaint, danificou quase todos os figurinos encomendados para uma adaptação da belíssima tragédia lírica Enée et Lavinie, baseada na Eneida, de Virgílio, contando a lendária história de amor do herói Enéias, filho de Vênus, e sua amada, a Princesa Lavínia. Os irmãos Toussaint declararam-se incapazes de refazer, restaurar e finalizar os figurinos a tempo, então eu gentilmente me ofereci para fazer o que eles não podiam. E antes que me perguntem: não, eu não provoquei o incêndio.
No dia da estreia, eu passei a tarde na casa de Albertine fazendo basicamente nada, o hobbie preferido da nobreza. Quatro horas antes de sair, começamos a nos arrumar, como de costume. Era um ritual gostoso até; tomar um delicioso banho perfumado, ter o meu cabelo escovado e penteado pelas criadas de Albertine, passar uma maquiagem que provavelmente contém chumbo e pode me matar e depois vestir sete (7) camadas de vestido, sem contar as meias, ligas, acessórios etc. Apesar de eu estar menos na merda do que eu estava quando cheguei ao ano de 1769, eu ainda não tinha como ostentar um enorme colar de diamantes ou uma gargantilha de pérolas, então Albertine sempre se oferecia para me emprestar alguns apetrechos, que eu educadamente recusava - assim como no século XXI, as pessoas iam começar a achar que eu estou roubando ou dando para um velho rico. Eu não me importava tanto assim em não usar jóias, os vestidos que eu usava eram um espetáculo por eles próprios. E, obviamente, tinha gente que não gostava muito disso.
"Quem é Joséphine Marchand?", muitos passaram a se perguntar no verão de 69. Uma designer de moda franco-americana viajante do tempo que veio do ano de 2019 para revolucionar a moda parisiense!? Não! Joséphine Marchand é um mistério, uma incógnita, um gênio de origens cabalísticas e indecifráveis. Ou, resumidamente, ninguém sabia de onde eu vinha e não era eu que ia explicar. Bom, mais ou menos. Albertine, minha amiga mais próxima, vez ou outra perguntava sobre a minha família. Eu disse que estavam todos mortos, já que morto e não-nascido é quase a mesma coisa dependendo do seu sistema de crenças. Em nome de fazer circular uma fofoca inofensiva, eu decidi mentir e dar detalhes bem vagos sobre uma remota ascendência nobre da Normandia e ter tido uma pequena herança usurpada por um tio maléfico que queria se casar comigo (eu tenho certeza que já assisti pelo menos duas novelas assim). A verdade é que a minha presença entre certos círculos sociais incomodava um pouco parte da nobreza conservadora (se é que existe outro tipo) e eu enxerguei isso como um possível problema para os meus negócios. Deixar aqueles babacas pensarem que eu era um deles não me trazia muito orgulho, mas poderia evitar problemas - evitava que eles começassem a tentar desvendar minhas origens por eles próprios e chegassem na família Brunet ou na jovem desquitada que eu acabei me tornando. Como eu costumo dizer: a fofoca mais perigosa sempre é aquela não contada.
Eu e Albertine chegamos ao teatro e eu estava animadíssima para ver os meus figurinos ganharem vida no espetáculo. Com o livreto da ópera em mãos, nos sentamos no camarote e aguardamos a abertura das cortinas com algumas taças de conhaque. Eu vi algumas pessoas olhando para mim e cochichando. Ainda que houvesse um espectro de nobreza fictício pairando em cima de mim, muitos ainda torciam o nariz para a minha presença e criticavam minhas conexões com os poderosos, afinal eu era uma modista, portanto uma trabalhadora e trabalhar é coisa de burguês (pelo menos neste século). Olhando em volta pelos balcões e galerias, tentando vislumbrar alguma dama usando um vestido meu, eu me deparei com um rosto que eu definitivamente não queria ver.
— Albertine, o que o seu irmão está fazendo aqui!? — Eu perguntei.
— Eu não sei, eu nem sabia que ele vinha. — Disse Albertine, entornando mais uma dose de conhaque. — Eu vou chamá-lo para se sentar conosco. Armand!
Eu nem tive tempo de impedir que Albertine chamasse o irmão dela. Ela não somente estava começando a ficar bêbada como eu não tinha uma boa razão para que ela não o chamasse. "Amiga, me desculpe, mas eu quero muito dar para o seu irmão que não vale nada e para evitar que isso aconteça eu preciso fugir dele como o diabo foge da cruz" não era apropriado de se dizer. Ele veio até nós com aquele sorriso idiota no rosto e fez uma pequena reverência.
— Querida irmã! — Ele disse, e então olhou para mim. — Mademoiselle Marchand, como vai?
— Eu estou bem, monsieur le prince. — Eu disse, sorrindo de maneira simpática.
— Será difícil prestar atenção no espetáculo agora... — Ele murmurou, com a intenção de que eu ouvisse. Eu não sabia dizer se ele estava falando que seria difícil para ele ou para mim, mas acho que era isso que ele queria.
— Sabia que foi Joséphine quem fez o figurino da ópera, Armand? — Disse Albertine, um pouco animada demais. Ela com certeza está bêbada.
— Como se falassem de outra coisa desde que cheguei... — Disse Armand, sorrindo para mim. Eu sabia que ele estava exagerando. — Pelo visto a minha profecia se cumpriu, não é verdade? — Ele sussurrou para mim, bem próximo do meu ouvido.
— Monsieur, isso não é apropriado. — Eu disse, baixinho, bem séria. — Mantenha distância.
— Sabe que penso em você desde aquela noite em Versalhes, não é? — Ele disse, baixo também, mas olhando para frente, fingindo que não falava comigo. — É algum tipo de prazer, Joséphine? Me fazer miserável?
— Eu não sei do que você está falando.
— As poucas vezes que nos encontramos depois daquele baile eu vi você me encarar com esses lindos olhos seus até precisar esconder o próprio sorriso atrás de um leque. Houve aquela vez em que eu lhe levei uma taça e você a pegou com as duas mãos, deslizando os dedos pela minha palma. Os sussurros, os olhares... Fui levado a acreditar que a minha afeição era correspondida.
— Sua afeição é inapropriada, monsieur le prince. — Eu disse. — Não é nada além de um desejo tolo.
— Temo que todos os meus desejos sejam tolos... — Ele sorriu. A música começou a tocar e as cortinas do espetáculo foram abertas. — E você? Possui algum desejo sábio?
— Assistir a ópera. — Eu disse, respirando fundo. Valois, dando-se por vencido, ajeitou-se em sua cadeira e olhou para frente.
Eu e Valois engajamos em um flerte inofensivo nos últimos meses? Sim. Eu estava interessada? Sim também. Era uma boa ideia? Absolutamente não.
Eu comecei a cogitar a ideia de ter um amante fazia um tempo, havia um buraco no meu peito do tamanho de uma vida inteira perdida 250 anos no futuro e eu pretendia enfiar um homem ou, quem sabe, uma mulher nele. Nos salons e nos bailes eu conheci uma grande variedade de cavalheiros, dos jovens e intensos libertinos em busca de aventura aos velhos sedutores dispostos a colocar dinheiro onde faltar amor. As mulheres, bem, eram lindas e me mandavam sinais homoeróticos muito confusos o tempo todo, mas no geral não pareciam verdadeiramente interessadas, não do jeito que eu gostaria. As regras de etiqueta, os protocolos comportamentais, aquelas roupas pouco reveladoras... Eu estava ficando louca, eu precisava muito transar e encontrar a pessoa ideal era o meu maior desafio, já que as mulheres pareciam inacessíveis e a grande maioria dos homens despertavam nenhum sentimento em mim além de nojo generalizado. E então havia Armand Louis L'Angelle, Le Marquis de Valois... Esse sim despertava muitas outras coisas em mim.
Valois não somente era alto, bonito e misterioso como ele sabia muito bem do efeito que causava nas pessoas e, principalmente, sabia usar tudo isso como uma perigosa arma de sedução. Era aquele jeito dandy meio afeminado com uma poderosíssima aura bissexual pairando em volta dele que estava me tirando do sério. Em um dos salons de Albertine eu o vi engajar em uma calorosa discussão filosófica com outros homens, travando o maxilar toda vez que aparentava concentrado, gesticulando com uma taça de conhaque em mãos... E piscando para mim ao notar que eu o encarava. Desde Versalhes, a tensão sexual em nossas interações era quase palpável, por isso eu não me surpreendi quando rumores sobre nós (inofensivos até então) surgiram. Mas não se enganem, aqui no topo dessa pirâmide social, não é o sexo e o romance que ofendem e escandalizam, a traição e a putaria por essas bandas correm soltas e são basicamente institucionalizadas. A verdadeira transgressão, o ato mais vulgar e imperdoável, era um prince du sang publicamente demonstrar seu interesse em uma costureira.
Minha amiga Albertine é fantástica, mas incrivelmente fraca para bebida, portanto não foi uma surpresa quando ela começou a passar mal na metade do terceiro ato da ópera após encher a cara de conhaque mesmo a contragosto meu. Não era a primeira vez que isso acontecia e eu, como uma amiga de classe social muito inferior, basicamente fazia o papel de dama de companhia para ela - ou seja, ajudava ela a sair discretamente dessas situações constrangedoras.
— Vamos, Albertine. — Eu disse, ajudando ela a se levantar. — É melhor irmos embora, você não está bem.
— Não! — Ela disse, manhosa. — Você trabalhou tanto no vestido final para o casamento de Cadmo e Hermione...
— Ópera errada. — Eu murmurei, suspirando. O casamento no final era entre Enéias e Lavínia, ela estava muito doida. — Está tudo bem, podemos vir outro dia.
— Não, eu vou para casa. — Disse Albertine, apontando para o próprio peito, revirando os olhos de bêbada. — Você fica.
— Eu não posso, Albertine, nós viemos juntas. Como eu voltaria para casa? — Eu perguntei. Eu já vivi essa cena (amiga bêbada que me deu carona querendo ir embora mais cedo) tantas vezes durante a minha vida que quase me trouxe conforto passar por isso de novo.
— Eu posso deixá-la em casa. — Disse Monsieur de Valois, intrometendo-se em nossa pequena discussão. Ah, não...
— Perfeito! — Exclamou Albertine, mais alto do que deveria, já que estávamos em um teatro lotado no meio de uma ópera. — Armand pode te levar, viu?
— Ah, não, eu não quero incomodar... — Eu disse, tentando disfarçar meu nervosismo.
— Não será incomodo algum, Mademoiselle Marchand. — Disse Valois, bem sério. — Eu posso deixá-la em Les Marais tranquilamente, será um prazer.
▪ ▪ ▪ ▪ ▪ ▪ ▪
Continua...
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro