Todo mundo tem que envelhecer, até Jenny
Narrar sempre foi a minha especialidade. Soube disso quando os professores me ensinaram a diferença de primeira e terceira pessoa. Eu soube, mas eles não. Disseram que a minha narrativa era confusa e necessitava de pontos de ligação. Como era o nome? Relação entre os fatos? Não acatei. Não entendiam que a capacidade de estar à mercê do protagonismo não precisa de relação?
Soube mais disso quando comecei a observar Jenny. A primeira vez que a vi foi pela janela do ônibus. Ela estava caminhando na avenida e a percebi de relance. Nunca acreditei em amor à primeira vista, então estaria mentindo se dissesse que me apaixonei. No máximo, reparei no balanço natural dela quando andava.
Na segunda vez, estávamos fazendo o mesmo caminho. Ela me ultrapassou. Tinha cheiro de shampoo de bebê.
— Gostosa, não é? — Ouvi um mal-educado logo atrás. — Consigo comer em menos de uma semana.
Virei para tentar demonstrar minha insatisfação com o comentário tão indelicado. Sabia que não estavam falando de mim, é claro — nunca fui de chamar a atenção dos garotos —, mas me incomodei.
Não era um babaca, afinal; eram dois. Eles riram com a minha encarada. Alguns idiotas nunca mudam.
Descobri que ela estudava no mesmo instituto técnico que eu, por isso a tinha visto na avenida. Começamos até a nos trombar no ponto de ônibus e, às vezes, dentro do ônibus também. Como boa investigadora, descobri mais coisas: ela gostava de comer paçoca, dar moedas de dez centavos para o cobrador e usar regatas brancas.
Sentei ao lado dela.
— Às vezes, as árvores parecem se mesclar com o céu. Ficam azuis, sabe? Eu nunca sei diferenciar um do outro.
Foi a primeira coisa que ela me disse. Não "oi" ou "tudo bem?". Nunca esqueci que as árvores podem ser azuis.
— Lorena — disse eu.
— Lorena é você?
— Sim.
— Jenny.
— Jenny — repeti, saboreando o nome dela.
— Lorena. — Ela saboreou o meu.
Percebi que a boca dela poderia ser interessante de saborear também, porém não comentei. Precisava de mais algumas vistas para decidir se deveria me apaixonar.
Não que eu tenha tido a chance. Descobri que o garoto que estava atrás de mim tinha conseguido foder o que queria foder, no final das contas. Jenny não me revelou os detalhes, mas os olhos dela brilhavam de excitação. Estava tão empolgada que não tive coragem de contar que alguns idiotas não mudam.
Se antes era eu e ela, Luca entrou no meio. Nunca o papel de observadora me serviu tão bem. Eles se beijavam e eu ficava atrás, desenhando shampoos e paçocas, escrevendo sobre o cabelo dela. Preto. O meu era vermelho nas pontas. O sol dava um brilho a mais. Quase um incêndio.
Até eu apagá-lo. Mas a tesoura que eu usei era vermelha, em homenagem ao que ia acabar.
— Uau, Lori. — Foi a única coisa que ela conseguiu falar quando me viu.
— Você parece um garoto — comentou Luca para mim enquanto a abraçava. Dei de ombros. Já esperava.
— Como podemos nos tornar infinitos? — questionou ela. Ele revirou os olhos. Eu não. A ingenuidade dela era uma das coisas que mais amava.
Naquele dia, ninguém respondeu. Jenny se distraiu desenhando uma linha reta na areia da praia — que estava vazia, já que era madrugada — e pisando em cima dela com os braços estendidos, como se estivesse se equilibrando em cima de uma corda invisível.
Soube que gostava de se equilibrar. Em uma tarde rara em que apenas eu desfrutava de sua companhia, Jenny nos fez atravessar a ponte em cima da avenida.
— O vento bate melhor aqui — comentou. — Passa a sensação de que estou andando em cima das nuvens.
— Mesmo com o barulho dos carros? — questionei.
— Não são carros, Lori — me repreendeu. — São aviões embaixo de nós.
Jenny piscou e eu sorri. Ela subiu em cima de um dos pequenos muros que delimitavam a ponte. Abri a boca para pedir que descesse, porém não falei nada. Teimosa do jeito que era, não me ouviria.
— Consigo ver o mundo todo.
Tentei andar calmamente, atenta. O pior realmente aconteceu: ela não conseguiu se equilibrar e caiu em direção aos carros passando lá embaixo. Ou teria caído, se eu, apavorada, não tivesse agarrado sua mão e impedido. De forma desajeitada, consegui puxá-la para cima e para o meu abraço. Chorei.
— Nunca mais faça isso! — exclamei.
Ela me olhou e pediu desculpa, também assustada.
— Parece que as formas de eternidade não gostam de mim.
— Você procura as formas erradas.
Jenny me encarou, claramente confusa. Nunca fui muito boa em verbalizar, então apenas lhe dei um beijo. Não teve gosto de nenhuma fruta ou brilho labial. Era só Jenny.
— Beijo da amizade? — Ela afirmou mais do que perguntou.
Incredulidade sempre foi uma palavra estranha para mim. Sequei a água restante dos meus olhos e a levei de volta para casa.
Nasci gostando de dançar, mas não em público. É claro que Jenny amava se exibir, Luca também. Como a terceira ponta do triângulo, eu comparecia. Ela se mexia como se não houvesse amanhã. Eu só observava. Quando Luca a abordava para beijá-la, eu também abordava alguma garota para beijar. Só para não ficar tanto em desvantagem.
— Você acha que meus seios são pequenos demais?
Estávamos do lado de fora da boate. Luca havia ficado dentro, mas Jenny me arrastou para a entrada. Não perguntei o motivo.
— Acho que eles são perfeitos — respondi sem hesitar, estranhando o questionamento.
— Luca não gosta mais tanto assim deles. Ele diz que são pequenos.
Céus, ela tinha dezenove anos e, mesmo falando de um assunto tão impróprio, era como se fosse uma criança.
— Quem tem que gostar dos seus seios é você, não ele.
— Se ele não gostar, não faremos mais sexo. Não seremos mais tão infinitos.
— É assim que você se torna infinita?
— É assim que torno nós dois infinitos.
— Já tentou ser infinita com outra coisa? Ou outra pessoa? — comentei, intimamente me perguntando se aquele inútil tomava as devidas providências para impedir uma gravidez.
— Não sei. Ele foi o único que me prometeu "para sempre".
Fiquei quieta, afinal.
No Natal, fizemos cookies e bebemos Nesquik. Os pais de Jenny tinham viajado. Luca não quis passar o momento com ela. Preferiu farrear e transar com as primeiras putinhas que aparecessem. Jenny sabia, só que preferia fingir que não. Nós duas fizemos nossa ceia e ela me mostrou a carta que escreveu para o Papai Noel. Abrimos uma garrafa de vinho caro e bebemos até o meio da madrugada.
— Lori.
— Fala.
Jenny estava deitada no meu colo enquanto eu fazia carinho em sua cabeça.
— Por que você me beijou?
Parei o carinho.
— Queria tentar experimentar um pouco da sua eternidade.
Não era mentira.
— Eu só sou infinita com o Luca.
— Sei disso.
Jenny ficou quieta. Pisquei e quase pude vê-la como nos quadrinhos da Turma da Mônica, junto com os balõezinhos de pensamento. Ela sentou.
— Você pode fazer de novo?
Eu fiz. Uma vez. Duas. Três. Não sei em qual momento arranquei a camiseta dela, chupei os seus seios perfeitos e a fiz ter um orgasmo. Não sei em qual momento foi porque foram vários.
É claro que essa noite foi engolida por um buraco negro e aquilo nunca mais se repetiu. Pelo menos não comigo.
Aliás, buraco negro é tão usado que se tornou clichê, mas agora percebo que é a melhor associação que posso fazer para o que aconteceu depois.
Em outra boate, Jenny me puxou pela mão e me fez dançar. O problema foi estarmos muito perto. O problema foi não conseguir disfarçar o quanto ela era deslumbrante. O problema foi não ter me afastado. O problema foi termos dado a entender que talvez nos beijássemos. O problema foi esquecermos do Luca.
— Sai de perto dessa vadia. Agora.
Ele não gritou. Não espancou ela em público. Apenas levou Jenny para fora. Ninguém percebeu além de mim. Decidi não ir atrás; não naquele momento. Uma parte de mim se perguntou se ela iria escolher ficar comigo ou com ele.
Quando percebi a demora, resolvi ao menos olhar se a briga estava muito feia. Talvez eu pudesse ajudar. Não queria vê-la infeliz. A última coisa que eu queria era vê-la infeliz.
A verdade é que eu nunca tinha me dado conta do que era infelicidade até avistá-la sentada na calçada da boate. O vestido estava rasgado nas coxas e onde deveria cobrir o sutiã. O rímel escorria pelas bochechas. Vi marcas vermelhas nos braços dela. E nas pernas. A boca sangrando. Luca aparentemente tinha ido embora.
— Jenny. — Toquei o ombro dela com suavidade. Ela se sobressaltou com o gesto. — Onde está o Luca?
Ela não respondeu. Aquela noite estava cheia de primeiras vezes. Jenny nunca tinha dirigido aquele olhar para mim. De nojo. Pura repulsa e tormento.
Foi então que eu entendi.
— O que foi que ele fez? — murmurei, em completo horror, mesmo sabendo que ela não diria nada.
Nunca disse.
Não me deixava falar com ela. Não me olhava. Quando via que eu ia tocá-la, começava a tremer.
Mesmo assim, eu passava as noites em claro do lado de sua cama. Jenny cochilava por trinta minutos, talvez, antes de acordar aos soluços. Dizer que a família dela viveu o inferno na Terra é eufemismo. Nada que eles fizessem adiantava. Nada que eu fizesse adiantava. Nada que qualquer um fizesse adiantava. Ela não falava com os psicólogos. Não comia direito. Estava tão magra que eu podia ver seus ossos repuxando a pele. Eu podia ver os cabelos dela no travesseiro. Tufos.
Quando Jenny finalmente parou de chorar ao acordar, eu comecei a chorar no lugar dela. A culpa de não ter impedido o que aconteceu me corroía a sanidade. Eu comecei aquilo. Nunca deveria tê-la beijado. Nunca deveria ter sentado do lado dela no ônibus. Nunca deveria ter reparado no gosto dela por paçocas.
— Não chore.
Era a primeira vez que eu a ouvia em meses. Estava baixa e rouca, mas era a voz dela. A surpresa me fez conter as lágrimas.
— Sinto tanto, tanto. Espero que você me perdoe um dia. — As sentenças saíram embargadas.
Ela não respondeu por alguns minutos.
— Não consigo mais chorar. Não consigo mais sentir nada. Não consigo — confidenciou, abraçando as pernas. — Só tenho vontade de não existir.
Me ajoelhei ao lado da cama. Ela se encolheu.
— Como? Você queria ser infinita, lembra disso? Lembra de como nós riamos e íamos a praia e escutávamos o barulho dos aviões?
Ela apertou os lençóis e percebi que a qualquer momento poderia gritar.
— Você não vai mais às aulas. Não pode deixar o técnico de lado — desconversou, ignorando tudo o que eu disse.
— Foda-se o técnico.
— Não, Lorena. Você ainda está viva.
— Você também está viva. Nós duas estamos. Ainda estamos aqui. — Jenny fechou os olhos. — Por favor, você tem que nos deixar te ajudar.
Ela balançou a cabeça, muda, apertando os lábios. Ficamos em silêncio por longos instantes.
— Deita comigo.
Apesar do pedido inesperado, não hesitei. Com toda a calma e suavidade, embalei-a no meu abraço. Mesmo com as cobertas, Jenny tremia. Não pude nem imaginar o que estava se passando na cabeça dela. Comecei a chorar. Sabia que deveria ser forte por nós duas, mas não consegui.
Não consegui.
Ela não acordou pelo resto da noite. Talvez eu tenha cochilado por algumas poucas horas. Por algum instinto desconhecido, eu verificava sua respiração com frequência.
— Quero que você assista as aulas — sussurrou Jenny quando estava amanhecendo. — Por favor.
Vi a possibilidade de argumentar.
— Posso te buscar quando voltar? Podemos ir naquela floricultura que você gosta. — Sabia que estava pedindo demais, no entanto, a tentativa era minha melhor escolha.
Ela ponderou.
— Tudo bem.
Um pouco a contragosto, tive que soltá-la para ir (tentar) aprender algo sobre lançamentos contábeis e leis trabalhistas.
Mais tarde, Jenny me esperava na porta de casa. Fiquei animada ao vê-la de regata branca. Entrelacei os dedos dela nos meus, sentindo que podia fazer isso.
A floricultura era enorme e ficava dentro de um aglomerado de lojas. Sempre gostamos de falar sobre as expressões dos anões de jardim e especular suas histórias. Normalmente era Jenny que puxava o gancho, mas naquela visita ela ficou em silêncio. Eu entendi. Não queria forçá-la. Deixei-a roçar nas pétalas que lhe chamaram atenção. Fiquei feliz por ver seus hábitos antigos aflorando. Pensei em levá-la para a represa que ficava atrás do comércio. Ela também amava passar as tardes ali.
— Está com fome? Quer que eu compre algo?
Jenny fez um gesto vago com a cabeça e eu me afastei. A lanchonete não ficava muito longe. No caminho, pude ver uma caixa cheia de gatinhos em frente a uma loja de animais.
— Você quer? — me perguntou uma moça.
Refleti. Ajoelhei e peguei um gatinho preto no colo. Ele miou. Esparramou-se nos meus braços. Não pude evitar meu sorriso.
— Sim. Conheço alguém que vai cuidar muito bem dele.
Com o pequeno miando no colo e uma sacola de salgados na mão, voltei para a floricultura. Rodei atrás de Jenny. Meu coração batia mais forte à medida que eu percebia que ela não estava em lugar nenhum.
Perguntei ao segurança e aos vendedores ambulantes; ninguém sabia dizer onde estava a moça de cabelos curtos e regata branca. Desesperada, passei a perguntar a todos que passavam no meu caminho. Sem sucesso.
As horas que passei andando pelo local em busca dela foram o meu tormento mais sufocante. Depois de duas horas sem resultados, liguei para os pais dela. O animalzinho miava, sem saber o que acontecia. Eu chorava silenciosamente enquanto desconhecidos tentavam achá-la.
Mais duas horas para nos chamarem e pedirem para irmos à represa, a mesma que eu queria ter podido levá-la naquele dia.
Gritei.
Nada me fez parar de gritar, só os braços da mãe de Jenny ao meu redor e o gatinho arranhando minhas mãos. Naquele instante, o mundo era injusto. Podre. A água não escondia o corpo dela. Eu sabia que ela tinha feito aquilo a si mesma. Eu sabia; e saber tirava todas as partículas de consciência sobre coisas boas que eu possuía.
No funeral, não levei flores. Quase não levei a mim. Não conseguia encarar seu corpo estendido no caixão. Não conseguia receber nenhum abraço. Não conseguia entoar nenhum dos cânticos cristãos. Não conseguia. Quando Luca apareceu, eu o coloquei para fora, aos berros. Jenny não o denunciou quando estava viva.
Não sei como consegui acompanhar o caixão. Poderia ter desfalecido no meio do caminho se não tivessem me sustentado. O barulho da terra cobrindo Jenny foi uma das piores coisas que já ouvi. Eles jogaram pétalas brancas em cima dela, e eu queria gritar como só eu a conhecia e só eu sabia que ela gostava de pétalas amarelas, mas estava muito concentrada em conter meus soluços desesperados.
Ninguém conseguiu me tirar de lá. Tentaram me arrastar para fora do cemitério; neguei com veemência, contudo. Todos foram embora e só restou a minha alma tentando se comunicar com a dela. Sentei em cima da terra suja e abracei meus joelhos. Estava engasgando com meus próprios sentimentos, deixando que eles me dilacerassem por não colocá-los para fora.
Não fiz questão de calcular o tempo que fiquei em cima do túmulo. Em determinados momentos, achei que tinha ouvido a risada dela. Achei que ela viria me tirar dali, estendendo a mão e dizendo: "Vamos colocar granulado colorido na massa do cookie, Lori?". Que sorriria para mim e me explicaria, de forma óbvia, como as luzes dos prédios eram a forma de camuflagem das fadas. Que seguraria meu rosto entre as mãos e me ensinaria a ser infinita.
Não era a risada dela. Não era a voz dela. Não eram as mãos dela.
Arrancaram sua respiração, seus batimentos, sua pele quente, seu sangue correndo nas veias. Arrancaram o protagonismo dela na minha história e a minha função de narradora. Arrancaram sua eternidade. Jenny não era mais infinita.
Nem eu.
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