1 - A Menina no Meu Quarto
Jota acordou com a pequena Alice entrando debaixo do lençol da cama que dividia com Fernanda. A garota era pequena, magricela, com cabelos negros e cheios e grandes olhos pretos, em contraste com a pele muito branca.
A mãe da menina estava naquilo que as pessoas costumam chamar de "o sétimo sono", como aquele ronco baixinho e constante podia confirmar. O visor verde do rádio relógio mostrava 3:33. Jota estalou os lábios, um hábito que tinha desde criança, ao se sentir contrariado, e sussurrou para a filha, cuja cabeça acabava de surgir de debaixo do lençol:
- Alice, volte já para a sua cama.
- Pai, - sussurrou ainda mais baixo a garota - a mamãe está dormindo! Shhhhh! - pedindo silêncio a ele, que não pôde deixar de sorrir.
- Por isso mesmo que você deve voltar para sua cama, Foguetinho. - falou ele, sério.
- Não consigo dormir com todo o barulho que ela faz, pai. - disse Alice, estendendo o A de pai, de maneira suplicante: "paaaaai".
- Ela quem, Alice? - respondeu Jota, mal-humorado, não deixando de reparar, um tanto enciumado, que a filha o chamava de pai, enquanto ainda chamava Fernanda de mamãe.
- A Marta. Ela faz muito barulho.
- Quem é Marta? - falou o pai, tentando rapidamente lembrar dos nomes das heroínas dos últimos desenhos assistidos pela filha - Alguma de suas bonecas?
- Claro que não - sussurrou a menina, olhando séria para o pai, parecendo desconfiada de estar sendo vítima de uma piada dele - É a menina que mora no meu quarto. Ela é muito barulhenta.
- A menina que mora no seu quarto se chama Alice, - respondeu - e ela é mesmo muito barulhenta.
Alice não pareceu entender a gracinha do pai e continuou falando, agora ainda mais baixo: - Ontem, a Marta me disse que estava com muita raiva e por isso ficou gritando a noite toda.
- Ah é? - Jota resolveu entrar no jogo da menina, rindo disfarçadamente da imaginação fértil da filha - O que é que ela gritava?
- Ela gritava "para, para de bater, está doendo, por favor, para", aí ela dizia umas coisas feias que não posso te falar, porque a mamãe vai lavar a minha boca com sabão, e aí ela ria e falava que iria me levar pra casa dela, que fica muito longe daqui, para morar com o homem malvado.
Dessa vez Jota não sorriu. O que essa menina andava vendo na TV ou no Youtube? Precisaria ter uma conversa séria com a Soraia, sua babá. Será que ela andava assistindo novela na frente da menina? Ou coisa pior, tipo o programa da Márcia ou da Sonia Abrão?
- Chega disso, Alice! Você vai para a sua cama agora. - Jota tentou falar calmo, mas ao mesmo tempo sério.
- Por favor, pai! - Alice não sussurrava mais, parecia verdadeiramente assustada - Me deixa dormir aqui com vocês. Eu não quero ir embora com a Marta.
Jota ficou ainda mais apreensivo. Abraçou a filha e falou baixo no ouvido dela: - Vamos até o seu quarto. Vou botar a Marta para fora e ela nunca mais vai assustar você, certo?
Alice sorriu e sussurrou: - Certo!
Jota levantou, pegou Alice no colo e a levou até o corredor. Na porta do quarto, deixou a filha no chão.
- Vou entrar e vou mandar ela embora. Fique ouvindo.
O homem entrou no quarto da filha, iluminado com o pequeno abajur decorado com o rosto da Mérida, a protagonista da animação Valente.
- Marta! - falou alto o suficiente para que Alice ouvisse do corredor - Vá já embora dessa casa, não quero mais saber de você assustando minha filhinha! O que? Você vai embora agora? É isso mesmo que você tem que fazer. E não volte mais aqui.
Ele foi até o corredor e pegou a filha no colo.
- Pronto, meu Foguetinho, ela já foi embora.
Alice não falou nada, mas sua expressão de alívio foi visível. Seja lá o que estivesse atormentando a menina, parecia ser sério. Conversaria sobre isso com Fernanda no dia seguinte, sem falta, pensou ele, enquanto colocava a garota na cama. Antes de sair do quarto, teve um arrepio de frio, o cômodo estava muito mais gelado que o seu próprio. Fechou os vidros da janela para deixar a filha mais aquecida.
Quando Jota voltou a deitar, Fernanda abriu os olhos e perguntou, sonolenta: - O que houve?
- Sua filha teve um pesadelo e queria dormir aqui, mas agora já está tudo bem!
***
Em seu quarto, Alice mantinha a mão na frente dos olhos, abrindo apenas uma fresta minúscula para olhar no canto mais escuro, onde vivia Marta. Apesar do pai tê-la expulsado, a menina ainda continuava ali. Alice a tinha visto enquanto entrava no aposento, no colo de seu pai.
Marta saiu de seu canto e veio se aproximando lentamente da cama, olhando fixamente para a garotinha de quatro anos. Ela parecia ter cerca de dez anos, usava um vestido branco, com uma fita cor-de-rosa na cintura, os cabelos eram escuros, longos e desgrenhados, a pele muito branca e só era possível ver duas grandes manchas escuras onde deveriam estar os olhos. Seu vestido parecia muito velho e desgastado, e estava rasgado em várias partes, como na manga direita e no colarinho. Ela estava descalça e sua perna direita se arrastava, virada em um ângulo que não era natural, que dava a impressão de deixá-la extremamente dolorida.
- Eu falei que ninguém podia saber que eu morava aqui. Para quem você falou que eu moro aqui? - Alice ouviu a voz rouca de Marta.
- Só para meu pai. Me desculpa!
- Vamos para a minha casa e eu te desculpo.
- De verdade? - falou Alice, assustada demais para dizer não.
***
Ao entrar no quarto, na manhã seguinte, Fernanda não viu Alice. Foi até o banheiro, depois na cozinha, por fim voltou ao quarto e olhou debaixo da cama e no guarda-roupa, antes de gritar o nome do marido, desesperada.
Procuraram por toda a casa, depois no prédio e no condomínio. Quando a polícia chegou, explicaram que a porta estava fechada por dentro, as telas das janelas estavam todas intactas.
Os pais foram detidos como suspeitos do desaparecimento de Alice, mas acabaram sendo soltos depois que a polícia analisou as câmeras de segurança do condomínio e viram a menina chegando da escola e pegando o elevador em direção ao apartamento, com a babá, por volta das 17h do dia anterior. Os pais chegaram cerca de uma hora depois e logo em seguida a babá usou o mesmo elevador para ir embora do local, sem a menina. Nenhuma movimentação estranha foi vista depois disso.
Fernanda mal reparou em tudo o que aconteceu nos dias que se seguiram ao sumiço da menina, chorando sem parar e chamando pela filha durante os dois dias em que ficou detida e nos vários dias seguintes. Hoje, tantos anos depois, ela está casada novamente e espera seu primeiro filho do novo marido.
Jota repetiu a história de sua última noite com Alice muitas vezes. Frequentemente ele sonhava que entrava no quarto da filha e encontrava uma menina assustadora, com os cabelos despenteados, muito suja e com dois buracos negros no lugar dos olhos. No sonho, ele botava a desconhecida para fora com violência. Na última vez em que isso aconteceu, acordou gritando o nome Marta, levantou da cama em um pulo, arrancou a tela da janela de seu quarto e se jogou do décimo terceiro andar. Enquanto caia, finalmente sentiu um pouco de paz.
Alice nunca foi encontrada. Hoje ela deve estar com oito anos.
(Este conto é baseado em acontecimentos reais)
Gostou do conto? Logo estarei postando mais alguns. Não perca minhas duas histórias em capítulos, que estou atualizando regularmente:
A MULHER PÁLIDA - uma fantasia sobre um rapaz que se apaixona pela morte.
FELIZ ANO NOVO - uma ficção científica sobre uma inteligência artificial que decide que os humanos não são lógicos o bastante para estarem no mundo.
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