Capítulo 6
"Toda história sempre tem mais versões do que as que são contadas."
Três semanas se passaram e os dias na escola foram normais. Estava conversando com o Enzo com mais frequência no início, mas uns quatro dias atrás ele me disse que estaria um pouco ocupado por causa dos preparativos da viagem e isso fez com que nossas conversas diminuíssem.
Charlotte estava em seu velho estado pensativo, o olhar de quem só tinha corpo presente, mas com a mente a milhas de distância.
Ficamos um tempo em silêncio. Até que me lembrei de uma coisa.
— Amanhã eu não vou poder vir.
A névoa nos seus olhos se dissipou, Charlotte estava de volta à realidade.
— Não? Por quê?
— Vou pra casa. Tem algumas coisas que preciso resolver lá. — Disse. A palavra "casa" pesando em minha língua.
Um sorriso de gato surgiu em seus lábios e ela me cutucou com o ombro.
— Hmm... Isso que precisa resolver começa com "L" de saudade?
Revirei os olhos, um sorriso involuntário teimando em nascer.
— Eu pensei que "saudade" começasse com "S" e não com "L".
— A sua começa com "L".
— Não era você que não gostava de falar de garotos? — Impliquei.
— Não gosto de conversar sobre garotos quando o único foco é o tamanho do brinquedo deles ou quem queremos pegar naquela semana e esquecer o nome na seguinte. — Ela fez uma careta. — Não que eu me ache uma puritana, só que, sei lá. Não sei lidar com conversas vazias assim. Mas é diferente quando falamos sobre o que sentimos. É como dizer pro outro que queremos que ele conheça as coisas que guardamos no peito.
Por alguns instantes, observo Charlotte, mesmo quando seu olhar está focado em algo distante, que eu não poderia captar a menos que tivesse seus próprios olhos e ainda quando ela volta esses mesmos olhos para mim e sorri.
Mas eu não pude sorrir de volta, porque a realidade de que, esse tempo todo, eu só venho escondendo o que estou sentindo dentro do meu peito dos outros, começou a me sufocar mais do que o normal.
Foi aí que eu percebi que eu já tinha perdido meu próprio controle.
Por isso, mesmo quando voltamos a conversar, mesmo quando aquele momento passou e, então, o intervalo passou. Mesmo quando as aulas começaram e acabaram e eu já estava viajando, lá no fundo, ainda martelava o pensamento de como eu venho me acostumando com a máscara que coloquei em meu próprio rosto.
De como eu desaprendi a existir usando meu próprio rosto.
Eu ainda pensava sobre isso durante o caminho e quando cheguei ao meu destino.
Minha casa. A única que tive de verdade.
Viajei durante a madrugada e, só quando vi as luzes da cidade iluminando aquele caminho que eu já conhecia tão bem que me permiti pensar em como já tinha se passado mais um mês que não ia lá e me ver chegando naquela cidade, naquela casa, era como se estivesse diante das minhas lembranças de outra vida, embora tudo ainda fosse tão recente.
Era como se, ao finalmente chegar ali, pudesse encontrar meu pai em algum canto. Meus olhos teimando em olhar mais de uma vez para ver se seu carro ainda estava na garagem ou se eu era capaz de ouvi-lo roncando depois de acabar dormindo quando passei pela biblioteca.
Mas ele não estava lá, somente suas coisas, como se elas ainda estivessem esperando pacientemente por algo.
Os livros sempre organizados e limpos. O seu lugar imponente na mesa de jantar, o violão sobre a poltrona e o piano digital em um canto. As fotos em suas molduras e o sofá da sala.
Luiza iria para uma reunião da empresa em poucas horas e foi se preparar para ela, então fui me encontrar com Lucas, um dos meus amigos de infância, como tínhamos combinado quando disse que viria para cá.
Quando cheguei ao local, ele estava em uma mesa, encarando um copo de suco, enquanto seu corpo estava recostado na cadeira e seus dedos seguiam um ritmo imaginário no tampo da mesa.
Fui em direção a ele que, quando me viu, se levantou e me deu um abraço de urso, quase esmagando minhas costelas.
Dei alguns tapinhas em suas costas enquanto dizia:
— Ei, grandão. Eu também estava com saudades, mas desse jeito vou acabar quebrando alguma coisa. Tá treinando suas habilidades de matar uma pessoa de forma carinhosa?
Lucas me soltou, bagunçou meu cabelo e resmungou um "ninguém mandou ser tão miúda" e recebeu um gesto vulgar como resposta.
A verdade era que não sou eu que sou pequena. Certo, eu sou pequena, mas é Lucas que tem 1,92 e parece um armário de tão forte. Negro, de traços sérios e marcantes capazes de intimidar quem não conhecesse sua personalidade, mas depois que isso acontecesse, qualquer pensamento assim se dissipava.
— Senta aí, baixinha. — Disse, apontando para a cadeira em frente a sua.
Conversamos um pouco. Ele me contou sobre a faculdade, sempre exibindo o fato de que estava estudando medicina, como todo estudante de medicina fazia quando estava no início do seu curso (e em todo o resto dele) e eu contei sobre como estavam indo as coisas na minha nova cidade.
Ele era o melhor amigo do Enzo e irmão da minha melhor amiga, além de membro oficial do nosso quarteto, que existia a quase tanto tempo quanto nós mesmos. Na verdade, Lucas foi o nosso "cupido", ou tentou ser, se me permitem ser sincera sobre isso.
O vi respirar fundo e coçar os cabelos curtos pela segunda vez desde que cheguei.
— Sam, me desculpe, mas eu preciso te contar uma coisa.
Abaixei a colher de sorvete que estava levando até minha boca e esperei que ele dissesse o que queria. Seus olhos estavam desviando para o açaí na sua frente, enquanto ele apenas largou a colher no meio dele e escondeu as mãos debaixo da mesa.
— O que aconteceu?
— Outro dia vi Enzo com uma garota.
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