A guria abriu bem os olhos e se jogou para trás, como que se protegendo de uma investida. Me cansei daquele silêncio. Queria informações, e era pra ontem.

      — Como tu te chamas? Quem é teu pai? O que estavas fazendo naquele posto e como foi parar lá?

      Em vez de explicações, a criança abaixou a cabeça e fechou os olhos, por um instante pude sentir um choro se formando em seu peito. Toda a dor pela qual ela havia passado estava voltando com tudo, me fazendo pensar que eu não escolhera bem minhas palavras. 

      — Tente entender — empreguei um tom mais ameno — , já estamos perto de São Paulo. Eu preciso saber com quem eu tenho que te deixar. Se tu não confiasse em mim, não teria nem entrado no meu caminhão. Então, porque tu não me ajuda pra que eu possa te ajudar? 

      — Tu não entende — ela rebateu.

      — Não, não entendo mesmo.

      Joguei uma quinta marcha, buzinei para um antigo conhecido que me ultrapassou.

      Uma idéia me ocorreu e tratei de po-la em prática. 

      — Toma — estendi o celular para minha pequena companheira de viagem.

      Ela olhou para meu aparelho com indiferença.

      — Se não quer me dizer o que aconteceu, pelo menos ligue para o teu pai.Tu disse que ele é o melhor pai do mundo, não é? Pense em como ele deve estar preocupado contigo, em quantas noites ele ficou sem dormir pensando em ti, no que pode ter acontecido com a filha dele.

      — Eu não sei se consigo… — ela tentou me empurrar de volta o aparelho, que recusei.

      — Consegue, sim. Tem que fazer isso. Não é justo com ele. Acha certo fazer seu pai e sua família ficarem agoniados por sua causa? Sabe como um pai se sente quando um filho fica longe da gente? — ela fez sinal que não. — O coração da gente se quebra. A gente não vê gosto em nada, não consegue comer, nem dormir. A vida não tem graça. Não tem um único dia que eu não penso na minha filha. Tudo isso que eu faço, essas viagens longas, é por ela, pra ganhar dinheiro e pagar a operação dela. Se eu pudesse, eu a levava comigo sempre, mas não dá, então eu olho para o retrato dela sempre e penso que ela está me esperando. É assim que eu enfrento a saudade. E quando a gente se encontra, não tem coisa mais bonita e gostosa pra mim do que receber um abraço dela. Todo pai vira um menino quando a filha diz: eu te amo. 

      A imagem da Isadora me veio às mente. Lembrei de quando a enfermeira a colocou nos meus braços, de seu chorinho débil. De quando a coloquei no berço pela primeira vez, do dia em que a ensinei a andar de bicicleta.

      — Eu não sei o que aconteceu contigo. Mas tem gente esperando tu voltar pra casa. Pensa no teu pai, nas pessoas que te amam, que não sabem se tu foi sequestrada ou não. Se tu ama tua família, liga e diz que tá bem e tá voltando pra casa. 

      A guria tornou a me olhar em dúvida, meneando a cabeça para os lados.

      — Isso vai fazer bem pra todo mundo — encorajei-a.

      Uma lágrima correu de um dos olhos dela. A mãozinha que segurava o smartphone tremia, mas a dúvida e o receio já não mais existiam no rosto dela, que começou a teclar.

      — Alô? — uma voz jovem de homem respondeu. 

      — Pai, sou eu.

      — Filha? É você? Onde você tá, meu amor? — ouvi vozes de duas ou três pessoas, uma destas disse “ é ela?

      — Eu tô num caminhão, pai. Um moço muito bom me encontrou, cuidou bem de mim, me deu roupa e comida… Não chora, pai. Desculpa eu ter te causado preocupação… — subitamente a criança soluçava. — Eu não tive culpa… Eu não podia ligar… 

      — Filha, diz com quem você tá… Quem é esse homem que te encontrou, quero falar com ele! Você tá bem mesmo, meu anjo? O que foi que aconteceu, o que aqueles dois fizeram com você?

      — Pai…! Eu te amo! 

      — Eu também te amo… Não sabe como eu tô feliz de estar ouvindo tua voz, minha filha… Não chora! Deixa eu falar com o cara que te encontrou.

      — Tá…

      Peguei novamente o celular, mas assim que eu disse alô e principiei contar tudo o que aconteceu, a tela escureceu.

      Fim da bateria.

Capítulo de 728 palavras