III
Tínhamos saído do Rio Grande do Sul há quase duas horas, e a menina não movera um único músculo do rosto, se tornando uma coisa incômoda aquele silêncio. Olhei de canto para ela.
— Não vai me dizer seu nome? — perguntei.
Ela, nem aí.
Nenhum posto da Polícia Rodoviária por perto. Quando se precisa dela, onde está?
— Com quem tenho que te deixar em São Paulo?
A menina ignorou minha segunda pergunta, esticou o braço e tocou a pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida que sempre carrego no painel.
— Que santa é essa? — ela perguntou.
— É a padroeira do Brasil. A mãe de Jesus.
— Ela não é assim — ela atalhou. — Escura?
Expliquei para a garotinha que a mãe de Jesus aparece para o povo sofrido e injustiçado. No México, apareceu sob a forma de uma moça índia e recebeu o nome de Nossa Senhora de Guadalupe; no Brasil, como uma mulher negra, para dar esperança aos escravos e pobres. Mas o rosto dela, ao certo, ninguém sabia como era.
— Que história bonita — ela disse.
Assenti, sorrindo.
— Está com fome, né?
Ela confirmou.
— Tem um posto um posto com churrascaria logo à frente. A comida é boa. Podemos parar e comer.
Um sorriso surgiu no rostinho pintado da guria e fiquei feliz. Olhei os pés descalços e sujos de poeira dela, os joelhos ralados.
— Por que seus joelhos estão machucados, guria?
— É que eu caí enquanto corria de uns cachorros bravos, e também de uns homens.
— Homens correram atrás de você? Por que? — meu sangue começou a ferver.
— Eu passei em frente a uma plantação de cenoura. Estava com fome e arranquei algumas pra comer. Mas os moços me viram e correram atrás de mim. Tropecei e caí.
— Podia ter pedido pra eles.
— Eu não vi que tinha colonos por perto. E sou tímida pra pedir.
— Mas me pediu trocado lá atrás — lembrei-a.
Abaixando a cabeça, ela se virou para a janela.
— Tu é do sul?
— Nasci em Joinville. Mas sou de São Paulo.
— Como veio parar aqui?
Silêncio. Me ocorreu que eu já havia feito algum progresso, por isso me contentei (por enquanto) com as informações que ela me passou.
— Posso ligar o rádio? Tu gosta de música? — perguntei.
— O caminhão é seu, moço. Tudo bem, por mim.
Sintonizei na mesma rádio sertaneja que eu estava ouvindo, só com moda de viola e clássico. Por sorte, achei logo de cara “ Fogão de lenha”, de Chitãozinho e Xororó.
Cantei a modinha, olhando de furto para minha companheira ao lado.
— Música bonita — ela comentou. — Faz a gente lembrar café feito pela vó. Fraquinho e doce. E o campo.
— Já morasse no campo?
— Meu avô era do campo. Eu ia pra lá em fins de semana, e ele gostava de ouvir essas músicas. Não gosto de música sertaneja, mas gosto de campo, porque as pessoas vêem as coisas com simplicidade.
Me admirei desse ponto de vista, e fiquei ainda mais curioso por conhecer a história da minha pequena passageira. Ela não era uma criança qualquer.
Uma carreta Scania me ultrapassou, trocamos buzinadas de cortesia. Avistei um dos postos da Petrobrás com churrascaria e loja de conveniência. Acionei seta, reduzi marchas no câmbio, entrei no acostamento.
Capítulo de 532 palavras
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