Você não tem vergonha?
Julie bate à porta da casa de Jefferson e aguarda junto de Amanda. Elas se impacientam pela demora de alguém vir atender e começam a pensar que talvez eles não estejam. Finalmente, Allan abre a porta e franze a testa ao vê-las.
- Oi... - começa Julie.
- Precisamos conversar. - Amanda se prontifica e interrompe a amiga.
- Deus -Julie sussurra.
- Você deu o endereço da Julie para o Ulisses? - a moça não hesita.
- Você também? - Allan bufa. - Eu não conheço a senhora. Eu fui à sua festa porque Jefferson me obrigou.
- Senhora? - Amanda faz uma careta.
- Ele só está sendo educado. - Julie defende o rapaz, e Jefferson aparece atrás dele.
- O que está havendo? - ele ainda não percebeu as garotas. - Oi, gente! O que estão fazendo...
- Seu namorado deu o endereço de Julie para o Ulisses! - Amanda eleva a voz.
- Eu sei... - Jefferson respira fundo e lança um olhar para Allan. - Podemos entrar para conversarmos melhor?
As meninas passam por eles e adentram a casa.
- Alguém pode me explicar qual o problema com esse cara? - questiona Allan com genuína curiosidade.
- Ele é lunático, maníaco! - Amanda não demora a dizer. - Ele machucas as pessoas, não só física, mas psicologicamente também. É racista, homofóbico, é um ser humano terrível!
- Nossa... - Allan exclama baixinho.
- Eu não o quero perto de Julie. - diz Amanda.
- Eu também não! - concorda Jefferson.
- Tá bom, gente. Me desculpe. Eu não sabia, eu sinto muito mesmo. - pede Allan.
- Vocês acreditam que ele me ligou hoje? - conta Amanda.
- O que ele disse? - Julie tenta esconder a empolgação.
- Primeiro, ofendeu Allan e Jefferson por serem gays. Ele disse que te procurou no bar e ficou me perguntando sobre como eu te conheço aqui de Jacarepaguá. - relata Amanda.
- Ele não sabe que você morava aqui? - pergunta Julie, um pouco confusa.
- Quase ninguém sabe.
- Você morava aqui? - quer saber Jefferson. - Como foi parar naquele palácio na Barra?
- Quando eu tinha vinte e seis anos, uma tia-avó minha morreu e sua herança passou para mim, então eu me dediquei aos estudos e comprei aquela casa. - conta Amanda.
- Que vida triste... - comenta Allan com ironia mas sem intenção de ser maldoso.
- Foi mesmo, antes de vir o dinheiro. Meus sonhos eram apenas sonhos.
Julie olha para Amanda com muito carinho, mas a moça nem sequer percebe.
- Não se preocupe, Amanda. - diz Jefferson. - Nós vamos cuidar da Julie se o Ulisses aparecer.
- Obrigada, desculpe por surtar.
- Está tudo bem. - Jefferson a tranquiliza.
- Vem, vamos indo. - pede Julie para a amiga. Os quatro se despedem e as moças deixam a casa, Julie com um incômodo que ela não sabe de onde vem, e Amanda muito mais leve. - Eu tenho um jogo hoje. Quer ir?
- Sim! - Amanda concorda com felicidade. - Faz tempo que não te vejo jogar.
- Vamos até lá em casa para eu pegar minhas coisas e já podemos ir para a praça. - Julie diz com um sorriso.
Mais tarde, Amanda está na arquibancada da quadra e os Squares estão em formação. Thiago apita e o jogo começa. A amiga ovaciona e torce muito, apesar de seus gritos serem solitários pela pouca torcida presente. Ela vê sentada no banco de reservas uma garota de cabelos vermelhos, shorts muito curtos e cropped que deixa a barriga seca à mostra. Amanda reconhece a garota que havia feito uma cena no Karaokê, gritando que amava Agatha e que ela pagaria junto com todos os seus amigos dentistas. O que ela faz ali? Amanda franze a testa.
Ao final do jogo, ela corre até a quadra para comemorar a vitória com Julie.
- Vai, vai Squares! - ela festeja e abraça a amiga. - Nossa, você está suada. - Amanda se afasta rindo e com uma expressão um pouco desgostosa.
- Então, o que achou? Ainda estou em forma? - pergunta Julie, também rindo.
- Com certeza! Mas me diz uma coisa: quem é aquela garota? - ela aponta para Clara.
- A namorada do nosso treinador.
- É mesmo? - Amanda não consegue tirar os olhos da garota.
- Acho que sim. O cara é esquisito. Ela pode ser uma prostituta.
Clara não parece ter notado a presença de Amanda, e ela se aproveita disso para fitar a garota e pensar sobre como o mundo é pequeno, ou se é aquilo é mais do que uma coincidência.
Cláudio assiste televisão em casa e recebe uma ligação de Felipe o convidando para ir ao Karaokê. Dentro de poucos minutos, eles se encontram em uma mesa.
- Amanda não vem? - pergunta Cláudio.
- Acho que não. - Felipe parece muito mais sério do que o normal. O rapaz é sempre o mais risonho do grupo de amigos.
- Sério? - Cláudio franze a testa e não pode afastar a preocupação. Algo não parece certo. Ele senta-se em frente ao outro.
- Na verdade, é sobre isso que quero falar. - começa Felipe. - Eu te vi dar uma rosa para ela na festa.
- Ah, aquilo não foi nada...
- Qual é, somos dois caras aqui. Eu sei o que você quer. - ele abaixa o tom de voz. - Mas sério, cara, acho que você consegue algo melhor.
- Como assim? - o rumo daquela conversa deixa Cláudio muito desconfortável.
- Ela é muito velha para você, não acha? Quer dizer, eu não ficaria com uma mulher mais velha.
Cláudio fita Felipe por um longo tempo sem acreditar que o amigo dissera aquelas palavras. Ele se levanta sem nada a responder.
- Onde você vai? - pergunta Felipe.
Cláudio repara que Agatha está um pouco distante perto de outras mesas, mas presta atenção na conversa dos dois. Ele pensa que se ela ouviu a estupidez que Felipe dissera, talvez a partir de hoje, a comida do rapaz venha com presentinhos infelizes.
- Me liga quando você mudar esse pensamento idiota. - ele resolve ir até a moça que os observa. - Ei, eu não te vi na festa da Amanda, nem na formatura.
- Eu não curto festas, Amanda sabe disso. - ela sorri. - Ela só me convidou para ser gentil.
- E ela é.
- Eu não pude deixar de ouvir o que seu amigo disse. - a teoria de Cláudio estava correta, mas ela parece mais ferida do que com raiva.
- Babaca.
- Você gosta mesmo dela?
- Eu... eu não sei.
- Devia descobrir. Se ela gostar de você também, você ganha. Se não, você pode seguir em frente.
Ele acha estranho receber conselhos de uma simples conhecida, mas aquilo martela o fundo de sua mente, então ele sorri.
- Obrigado. - quando Cláudio sai pela porta do Karaokê, Lillian, a namorada de Ulisses passa por ele, o que o faz franzir o rosto muito confuso sobre a razão de ela estar ali, sozinha. Mas acha melhor não ficar para descobrir, e seguir o conselho de Agatha ao invés disso.
A paz de Ulisses é perturbada quando seu pai, sem sua permissão, pausa o filme que ele assiste no cinema em seu apartamento. O homem senta ao lado do filho.
- Eu contratei uma recepcionista para você. - diz Roberto.
- Ah, é? - Ulisses não olha para o pai.
- É, sim. Você vai amá-la.
- Ela é gostosa? Qual seu nome?
- Rúbia... alguma coisa. É muito gostosa, dos fios de cabelo às unhas do pé.
Ulisses lança um olhar suspeito. Roberto apenas sorri e desaparece na escuridão, mas não antes de dar play no filme novamente.
No dia seguinte, o rapaz chega na clínica para seu primeiro dia de trabalho. Ele solta um riso indignado quando se depara com a tal recepcionista gostosa que seu pai contratara. É uma mulher grande, de corpo rechonchudo e cabelos pintados de vermelho.
- Pai, seu filho da... - ele emite.
- O que é, senhor? - diz Rúbia. Ela tem a voz muito rouca que arde aos ouvidos.
- Nada, nada. - Ulisses desconversa. - Tenho clientes hoje, Rúbia?
- Agenda cheia, Dr. Medeiros. - ela dá um breve olhar para um senhora que aguarda em uma das cadeiras da recepção. - Aquela é a dona Rosa.
Antes de começar seus afazeres, Ulisses abre o bloco de notas de seu celular, e anota um número de telefone que está nele em um papel que ele entrega para Rúbia.
- Ligue para esse número e veja se tem alguma Julie. Não diga quem está perguntando, invente alguma coisa. - ordena Ulisses, e em seguida convida Rosa, sua primeira paciente oficial, para entrar no consultório.
Rúbia obedece as ordens do chefe e realiza a ligação. Uma mulher de voz fina e terrível dicção a atende e é difícil entender muito bem o que ela diz.
No bar, Rita desliga o telefone e vai até Julie.
- Ligaram procurando por você. - conta velozmente.
- Quem era, Rita? - Julie sente-se ansiosa. Ela sabe o quanto é errado o seu desejo desesperado.
- Uma mulher, ela não disse o nome.
- É claro. - ela não consegue conter a tristeza que a toma. - Eu me odeio. - fala baixinho.
- A festa foi muito boa, posso ver. Você está diferente! - diz Rita.
- Eu estou como sempre. - Julie responde com a voz alta e nervosa, e se afasta. Ela vai para a rua pela porta da cozinha, que leva a um beco atrás do bar. - Que droga, sai da minha cabeça! Você é problema.
A voz de Amanda reafirmando como Ulisses é um ser humano terrível toma conta das lembranças de Julie. Ela sacode a cabeça para afastar tudo aquilo e retorna para dentro.
Depois de ser atendida com muito cuidado e zelo, Rosa se levanta com feição contente.
- Meu querido, você é muito especial. - diz ela com sua voz tremida e gentil.
- Imagina, dona Rosa. Só estou fazendo meu trabalho. - Ulisses sorri por baixo da máscara.
- Não, é mais do que isso. Você se importa. Tem um lindo coração. - ela envolve a mão do rapaz com as suas que são quentes e enrugadas. Ulisses sente-se um pouco sem reação e apenas a guia de volta para a recepção.
- Havia uma Julie, Dr. Medeiros. - diz Rúbia depois que a paciente se retira.
- Ótimo. - Ulisses não se importa com seus horários, ou os próximos pacientes que chegarão. Ele pega as chaves do carro e sai depressa.
Ele se lembra do caminho como se tivesse sido gravado numa prensa em sua mente. Ele se olha no espelho retrovisor.
- Isso vai ser fácil. - fala sozinho. - Será que vou aguentar como a Amanda?
Ulisses solta uma risada alta e seca que colide nas janelas fechadas e abafadas do carro. Uma grande motocicleta acelera de algum lugar atrás dele e o ultrapassa. Aquilo o irrita muito e ele também pisa fundo no acelerador. Ele abaixa a janela do banco do passageiro e reconhece o capacete, a moto, a forma daquele corpo. Mais uma vez, o motoqueiro o ultrapassa e Ulisses percebe aquele olhar por baixo do capacete pelo espelho retrovisor da moto. A pessoa mostra o dedo do meio, e Ulisses apenas vira na primeira rua que consegue, muito irritado. Algum tempo se passa e depois de muitas voltas para despistar o motoqueiro que Ulisses ainda temia que o seguisse, ele aparece novamente com uma mulher na garupa. Ulisses não sabe como ele pode tê-lo encontrado pois nem ele próprio sabe direito aonde está, mas a motocicleta apenas para ao lado de seu carro por um segundo, e logo acelera com um grande estouro e o som do motor rugindo.
Julie está na companhia de Jefferson lavando a calçada em frente ao bar quando a BMW de Ulisses estaciona do outro lado da rua. Ulisses ainda está nervoso e suado pela adrenalina dos eventos anteriores, e Jefferson repara nisso.
- Diga que eu não estou! - Julie se assombra quando o vê sair do carro e some para o fundo da cozinha.
- Oi, cara. Você conhece alguma Julie? - Ulisses aborda Jefferson.
- Sim, o que você quer com ela? - o rapaz é sério e impassível.
- Conhecê-la melhor.
- Ela não está, desculpe.
Julie observa tudo escondida pela porta da cozinha quando Clarice aparece atrás dela.
- O que está fazendo?
Julie dá um pulo de susto.
- Deus, mãe, você me assustou.
Clarice aperta os olhos para onde Julie tanto olha e vê Jefferson conversando com Ulisses.
- Quem é aquele? - a mãe questiona.
- Só um cara.
- Ei, ele voltou! - Rita exclama e corre para a cozinha por entre Julie e Clarice. Julie fecha os olhos com uma careta.
- Você não se lembra de mim, da festa? - pergunta Ulisses.
- Na verdade, me lembro. - diz Jefferson.
- Então! Não pode só me dizer o número de telefone dela, ou o endereço da casa?
Jefferson solta um riso sarcástico e inacreditável.
- Você o conheceu na festa? - Clarice, que presta atenção na conversa, questiona.
- Shh! - exclama Julie.
- Na Barra da Tijuca? Ele é rico! Vá lá, vá lá agora! - Clarice a puxa pelo braço e Julie se debate para tentar escapar. - Olá, querido. Desculpe, ela não te viu aí. - ela solta Julie em frente a Ulisses e retorna depressa para dentro do bar. Jefferson observa de olhos muito arregalados.
- Oi, garota! Lembra de mim? Da festa? - Ulisses se ilumina ao ver Julie, mesmo que ela esteja com vestimentas surradas, com manchas por todos os lados, um avental úmido e os cabelos bagunçados e suados.
- Claro, doutor. O que você quer? - Julie sente a voz tremer.
- Eu quero te fazer um convite. - Ulisses tem a voz maliciosa e insinuosa.
- Você tem namorada. Não tem vergonha?
Jefferson consegue apenas prestar atenção.
- Qual o problema?
Julie lança um olhar um tanto desesperado a Jefferson.
- Que convite é esse? - pergunta ela.
- Vamos dar uma volta de carro.
- Eu... não sei.
- Eu te busco hoje às oito e meia. Não aceito um não como resposta.
- Humm... - Julie parece pensar em algum argumento mas Ulisses é mais rápido.
- Você é amiga da Amanda, e eu sou bem popular. Você fingiu bem não me conhecer na festa.
Julie abre a boca para falar algo, mas desiste no meio do caminho simplesmente por não saber o que dizer. Ulisses estica seu aparelho celular para a garota.
- Digita seu endereço. - ele ordena. As mãos de Julie tremem conforme ela faz o que ele mandou e ela devolve o celular. - Te vejo hoje à noite?
A moça apenas concorda com a cabeça e Ulisses torna para Jefferson.
- Valeu pela ajuda, cara. - diz com sarcasmo. Ele dá um tapinha no ombro de Jefferson e abre um sorriso para Julie.
- Nem pense nisso! Você não vai sair com ele! - diz Jefferson quando Ulisses se vai.
- Ah, ótimo. - Julie suspira. - "Eu prometo, Amanda. Eu vou cuidar da Julie se o Ulisses aparecer." Cuidou muito mesmo, Jeff. - ela vai para dentro do bar.
- O que eu poderia fazer? - ele briga. - Eu tentei impedi-lo de te ver mas sua mãe...
- Você podia ter dito alguma coisa! - Julie grita e chama atenção dos clientes.
- Amanda disse que o cara é lunático. Eu não queria que ele me espancasse.
- Tá certo, maricas. Esqueci que você é viado. - ela cruza os braços e sibila.
- Vai pro inferno. - Jefferson fala alto o bastante apenas para que Julie o ouvisse, e se retira sem saber se algum dia dirigirá mais uma palavra à garota.
Somente alguns passos são necessários para que ele chegue até a banquinha, e ele derruba alguns chocolates quando vai para trás do balcão possesso pela raiva.
- Tudo bem? - pergunta Cláudio.
- Você não vai acreditar no que aconteceu... - Jefferson começa como se pudesse confidenciar qualquer coisa ao outro. - Seu colega, aquele Ulisses. Ele convidou Julie para sair.
- Quê? - Cláudio quase grita. - Ela não vai, né?
- Acho que sim... - Jefferson sacode a cabeça e não sabe se sente-se magoado, preocupado, ou se permite que o ódio pelo que Julie dissera o domine e faça com que ele não se importe mais.
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