Cuide desses lábios
A ausência de Miguel no vestiário faz com que os ossos de Julie se enfraqueçam. A voz grave do homem estimulando as meninas para o próximo era o que a fazia se sentir capaz de tudo, capaz de vencer. Agora ela já não sabe mais. Sente como se boiasse sob o oceano e a luz do sol fica cada vez mais e mais distante conforme afunda.
- Olá, garotas. - diz uma voz atrás dela. Julie se vira de seu armário e sabe que o homem na beira da escada se trata do novo treinador que Miguel havia mencionado quando foi se despedir. Ele veste uma blusa regata muito justa, alaranjada da cor do uniforme do time. Miguel já era muito alto, mas o homem ali parado com um sorriso que Julie não aprecia, é pelo menos um palmo maior do que o antigo treinador.
- Quem é esse? - sussurra Larissa do armário ao lado.
- Sou Thiago, o novo técnico. - ele responde prontamente. - Eu vou substituir Miguel por tempo indeterminado. Ele vai passar um tempo no nordeste...
- Você sabia sobre isso? - Larissa indaga para Julie.
- ... mas eu prometo que serei tão bom quanto ele.
O namorado de Larissa, Nathan, aparece atrás de Thiago e desvia do enorme técnico para correr até a moça.
- Amor, você esqueceu isso. - o rapaz entrega o uniforme dobrado e passado.
- Obrigada, meu amor! - ela olha para Julie. - Ele não é o melhor namorado do mundo? - e dá um beijo rápido em Nathan.
- Certo, já chega. - Thiago interrompe e vai até eles. - Qual o seu nome? - ele pergunta ao namorado.
- Nathan.
- E você é? - quer saber da moça.
- Larissa.
- Bem, Nathan e Larissa... - ele se aproxima do casal. - Eu não quero ver vocês dois se beijando e abraçando e fazendo o que casais fazem no meu vestiário! Eu fui claro? - Thiago eleva a voz que ecoa pelos armários de ferro. Nathan engole em seco.
- Muito claro.
- Ótimo, agora se manda.
O rapaz corre escadas acima enquanto Julie e Larissa encaram a cena sem acreditar.
Na clínica da Universidade, Amanda está inclinada sobre a janela e observa o mundo lá fora.
- Oi! - chama Cláudio que entra com o professor Emerson, e a moça se vira contente. Ela não pode perceber a grande sombra que toma a janela e os observa por apenas um segundo antes de desaparecer.
- O que faz aqui? - ela dá um beijo na bochecha de Cláudio.
- Quis te ver antes de ir trabalhar.
- Está trabalhando aonde, otário? - Ulisses se levanta do canto onde estava sentado na sala.
- Ulisses... - repreende o professor Emerson com olhos fixos em algumas papeladas que parecem ser muito importantes.
Cláudio lança um rápido olhar para Ulisses mas o ignora.
- Certo, já vim buscar o que precisava. Agora você precisa se retirar, Cláudio. - o professor se direciona para a porta de aguarda que o aluno o siga.
- Te vejo depois, Amanda? - ele se certifica de perguntar antes de ir.
- Com certeza.
Dessa vez quem a beija na bochecha é ele, e se vira para sair. Vê que o professor Emerson não o aguardou e apenas deixou a porta aberta. Quando Cláudio está a um passo de sair, ele ouve um grito em suas costas.
- O que está fazendo? Me solte!
Tudo parece acontecer veloz e lento demais, ao mesmo tempo. Ulisses segura os braços de Amanda e tenta beijá-la a força. Cláudio somente se dá conta de que o empurrou violentamente quando o estampido de vários instrumentos que quase caem da mesa faz sua mente acordar.
- Não toque nela! - ele grita. Amanda tenta puxá-lo para longe de Ulisses.
- Tudo bem, eu estou bem. Vamos só sair daqui.
- Filho da puta. - Cláudio sibila e nem mesmo vê o soco de Ulisses vir em sua direção. A força da pancada é tanta que ele cai sobre a cadeira atrás deles. Consegue se equilibrar na mesa ao lado mas derruba diversos equipamentos.
- Parem! E se tivessem pacientes aqui? - Amanda implora.
- Quer ser esmagado como um inseto, seu ninguém? - Ulisses se aproxima violência.
- Ele parou com a quimioterapia a menos de um ano! - a moça grita com ódio, e tudo se silencia. A respiração pesada e acelerada de Cláudio é a única coisa que os três ouvem. Amanda pode jurar que enxerga choque por trás dos olhos azuis claro de Ulisses. Ela se agacha perto do amigo e envolve seu rosto com as mãos, se certificando de que não está muito ferido, mas os olhos de Cláudio fuzilam Ulisses. Mais uma vez, nenhum deles percebe a sombra que volta a observá-los do lado de fora da janela.
- Que bagunça! - exclama o professor Emerson quando retorna.
- Eu estou bem, Amanda. - Cláudio sacode a cabeça para que a moça solte seu rosto. - Professor, a universidade precisa fazer alguma coisa!
Amanda puxa o amigo para fora da sala. Ele leva uma mão ao lábio e finalmente sente a dor do soco conforme a adrenalina abaixa. Sente a boca inchada e sangrando. Eles deixam o laboratório e Ulisses por conta do professor Emerson.
- O Reitor vai saber sobre isso! - Emerson que sempre é muito paciente, tempesteia contra o jovem com o dedo apontado para seu rosto. - Você pode não participar da festa de formatura, garoto.
- Vá em frente. Conte para quem quiser. Eu te garanto, vou estar lá. - Ulisses confronta.
O professor não prolonga tal discussão e deixa o aluno xingando, ao que ele imagina, sozinho. Se
apenas ele virasse o corpo, veria a sombra à espreita em suas costas.
Ele não perde muito mais tempo naquele lugar e se apressa para seu carro pelo estacionamento. Àquela hora, a universidade está vazia entre turnos.
- Ei, doutorzinho!
Ulisses gira o corpo em pânico. Aquela voz não pode estar ali. Ele passa os olhos apressados pelos arredores mas não vê uma alma viva. Puxa o celular com as mãos tremendo e engole em seco.
- Segurança, venha para mais perto do meu carro, agora! - ele ordena sem gentileza. À distância, de onde é observado, um monstro pode ouvir sua voz rígida e tem vontade de apertar seu pescoço até a laringe virar pó. O monstro o vê caminhar mais depressa para o carro. Ulisses dá mais uma olhada em volta e desaparece dentro do veículo.
- Que porra aconteceu com você? - indaga Jefferson ao ver o estado de Cláudio quando ele chega na banquinha.
- Um cara... meu colega de classe. Ele me bateu. - conta já indo para trás do balcão.
- Você está bem?
Antes que Cláudio possa responder, chega um cliente de cabelos volumosos desgrenhados e roupa surrada, a quem Jefferson reconhece já ter visto no bar de Julie. Jefferson orienta que Cláudio o atenda.
- Posso ajudar, senhor? - o homem revira alguns jornais e ergue os olhos lentos para Cláudio.
- O que houve aí? - apenas os olhos negros do cliente são o bastante para Cláudio saber que ele se refere aos seus lábios, mas ele acha estranha a pergunta.
- Eu... - por um instante ele pensa em responder, mas muda de ideia. - No que posso ajudar? Os jornais são 3 reais.
O homem volta os olhos para os papéis e Cláudio tem vontade de gritar diante da lentidão de seus movimentos. Ele tira três moedas e deixa em cima do balcão.
- Cuide desses lábios. - o cliente vira-se e vai embora. Jefferson o observa pensativo. É realmente um cara muito estranho.
~
A clínica do Dr. Roberto Medeiros é a mais conceituada do Rio de Janeiro e seu luxo é inegável, ainda que Ulisses ache a sua própria muito melhor. Ele adentra o escritório do pai e aguarda em frente a mesa com expressão carrancuda.
- Arthur me ligou. Pode começar a explicar. - ordena Roberto.
- Foi culpa do outro aluno. O nome dele é Cláudio Rodrigues. - ele aguarda que seu pai diga algo. - Ele não pode ser um dentista. Seria uma ofensa à profissão. Eu espero que você lide com isso dentro dos termos da lei, pai.
- O que você sabe sobre os termos da lei, meu filho? - finaliza o assunto com autoridade. Ulisses o fita com raiva e dá as costas. Quando ele está prestes a abrir a porta, alguém do outro lado se antecipa e o Dr. Cândido Lopes entra. Eles se encaram e Ulisses o dribla para sair.
- Meu amigo, como está? - Roberto se levanta mas Cândido não corresponde a alegria.
- A conversa que teremos hoje não será agradável.
- Sente-se, Cândido. - o homem parece confuso e os dois se acomodam nas cadeiras.
- Arthur Carvalho me ligou. O professor Emerson reclamou do comportamento de seu filho no laboratório de hoje....
- Estou ciente da situação. - Roberto interrompe.
- Eu o ouvi. - Cândido se inclina sobre a mesa. - Eu juro, Roberto, se você ousar fazer isso... se você privar esse aluno de se formar, sua carreira está acabada.
Roberto engole em seco.
- Você é o presidente do Conselho Nacional e meu grande amigo, mas eu sou o presidente Regional e não vou permitir que seu filho nojento acabe com a vida desse rapaz. Eu fui claro?
No apartamento da família Medeiros, Ulisses bate o pé para seu quarto mas Iris o impede de continuar.
- É verdade?
- Me deixe em paz. - ele passa pela irmã mas tem o braço puxado.
- Olhe para mim!
- Como caralhos você já sabe sobre isso?
- O pai ligou pra mãe e ela me contou. Praticamente me pediu para conversar com você. - conta Iris.
- E você, é claro, está obedecendo as ordens imaculadas.
- Não é hora de ser sarcástico. Você machucou um colega? - Iris questiona.
- Sim, eu soquei um idiota! Por que? É crime? Ele não deveria ser dentista. Sem falar que ele é doente. Uma pessoa doente não pode cuidar de outras pessoas doentes. - Ulisses não pode conter o desconforto por ter os olhos tão azuis da irmã arregalados e chocados sobre ele.
- Minha... nossa. Você realmente disse isso? Você não pode ser meu irmão! Não é possível que a gente tenha o mesmo sangue em nossas veias.
Ulisses revira os olhos e volta a caminhar para longe de Iris.
- Eu também bati em um colega no outro dia, lembra? Quando saí com Alexandre. - ela fala alto e consegue retomar a atenção do irmão. - Mas eu fiz isso porque ele quase matou o Alexandre. Paulo é seu nome. Paulo e Lídia. Essa garota me inferniza desde o ensino fundamental. E sabe por que? Porque eu sou uma Medeiros.
- Do que está falando? - Ulisses volta alguns passos.
- Pela mesma razão de você ser tão arrogante, é a razão da minha vida ser um inferno! Eles pensam que eu sou apenas uma garota rica e mimada. Eles olham para mim e enxergam apenas cifrões e motoristas particulares e uma casa gigante. - ela toma fôlego. - Agora vai. Vá para o seu quarto, irmão. Não sou eu a mimada. Eu sou a adolescente, e você é a criança!
Iris dá as costas e some ao virar o corredor.
Ao final do jogo, Julie, Larissa e Cristina vão juntas para o vestiário.
- Você acredita nesse cara? - briga Cristina. - Tipo, eu sei que nunca tive a chance de jogar quando Miguel era técnico mas meu Deus!
- Pois é, e o que foi aquilo mais cedo com Nathan? - continua Julie.
- Parece que ele se acha o macho alfa só porque está treinando um time de garotas. - comenta Larissa.
- De quem estão falando? - a voz de Thiago em suas costas as faz sobressaltar.
- Ninguém. - Julie e Larissa falam juntas.
O técnico observa as três garotas.
- Você foi ótima, sabia? - fala para Cristina. - Quantos anos você tem?
- Quinze.
- Você tem uma forma maravilhosa para um corpo tão jovem. Parabéns. - ele pisca para a garota e as deixa.
- Eu ouvi o que acabei de ouvir? - Julie arregala os olhos.
- Forma maravilhosa? - Larissa repete em choque.
- Quem é esse cara que está nos treinando? - Julie mantém os olhos no chão muito aturdida.
No Karaokê de Jacarepaguá, Amanda, Cláudio e Felipe estão em uma mesa. A moça ergue a mão e Agatha vai até eles.
- Oi, gente. O que vão querer? - ela cumprimenta-os, e repara nos lábios de Cláudio. - Nossa, o que aconteceu? - pergunta alarmada.
- Ulisses... - Amanda diz apenas.
- Ah, aquele colega idiota de vocês? - ela revira os olhos.
- Eu o subestimei. - comenta Felipe com frustração.
- Você o idolatrou. Ele era sua inspiração. Agora você sabe que jamais vai querer ser como ele. - diz Cláudio.
- Verdade... - Felipe abaixa os olhos.
- Bem, eu vou querer uma coca e batatas fritas. - pede Amanda.
- Cerveja. - contribui Felipe, e Cláudio pede o mesmo.
- Já trago. - Agatha se afasta e quando chega ao balcão, vê Clara em uma mesa, e seu olhar não é nada feliz. Ela resolve ir até a garota. - Pode parar com isso, por favor?
- Eu te vi falar com ela. - diz Clara por entre os dentes.
- Eu estava atendendo ela! É uma cliente e minha amiga. - Clara permanece de olhos cerrados. - Se está tão brava comigo, mesmo que não tenha motivo mas tudo bem, por que ainda vem aqui?
- Porque eu te amo! - a garota grita. Todos os clientes olham para as duas, incluindo Amanda, Cláudio e Felipe. Agatha se apavora com a situação e puxa Clara para fora do Karaokê pela porta dos fundos.
- Está louca? Esse é meu trabalho, você não pode fazer essas coisas aqui!
- Não me deixe, Agatha. - os olhos da garota estão marejados de lágrimas e Agatha pensa que aquela cena não combina nada com ela.
- Eu não estou te deixando, sua maluca. Foi você quem surtou, esqueceu?
- Eu vou fazer você pagar por isso! - ela caminha para longe. - Você e seus amiguinhos dentistas!
Agatha respira fundo e volta para dentro, apenas para se deparar com Amanda segurando a mão de Cláudio. Ela sente o estômago revirar e foge para a cozinha. Ela soca a pia e tenta recuperar o fôlego.
- O que foi aquilo? Está tudo bem? - Amanda pergunta de longe do balcão. Agatha imagina que a moça viu seu estado alterado depois do drama de Clara, mas espera que não tenha visto seu acesso de raiva a pouco.
- Você ouviu. Ela me ama. - Agatha se aproxima.
- Não estou brincando. Ela parecia bem brava e todos a ouviram gritar lá de fora.
- Estou bem, volte para seus amigos.
Amanda dá um sorriso apertado e triste, mas é o que faz. Algumas horas e bebidas depois, ela está com Felipe esperando por Cláudio do lado de fora.
- Amanda, estava pensando... - Felipe começa mas se interrompe.
- Sim?
- Bem, eu estava pensando se... você não quer... sair alguma hora?
- Felipe, - a moça ri. - o que acha que estávamos fazendo esse tempo todo?
- Eu sei. - ele retribui a risada. - Eu quis dizer, só eu e você. Sabe... talvez um jantar ou almoço.
- Ah...! - Amanda arregala os olhos. - Ah... Certo. É... Eu...
- Desculpe, eu não deveria... - Felipe tem as bochechas coradas.
- Não, não é isso. Eu só estou surpresa. É claro, eu saio com você. - ela recebe um sorriso contente do rapaz. - Nós somos amigos a tanto tempo, não vejo problemas nisso.
- Mas você sabe que isso seria mais como um...
- Foi mal, o banheiro estava lotado. - Cláudio aparece e interrompe.
- ... encontro. - Felipe termina em um sussurro.
- Então, vamos? Felipe, me dá uma carona? - pede Cláudio.
- Claro.
- Então, vamos conversar mais sobre... aquilo depois? - Amanda sorri. Ela hesita mas dá um beijo na bochecha quente e vermelha do rapaz. Cláudio os observa confuso e eles entram no carro de Felipe.
- O que foi isso? - ele quer saber.
- Nada. - Felipe desconversa e dá mais um sorriso para Amanda que espera eles saírem para também ir.
Já em casa, Cláudio destranca a porta do humilde apartamento e há um papel no chão. Ele olha ao redor com aflição e acende as luzes. Seu coração perde uma batida e depois bate descompassado quando lê o papel.
CUIDADO DOUTORZINHO. ALGUÉM PODE FAZER MUITO PIOR DO QUE MACHUCAR SEUS LINDOS LÁBIOS.
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