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Perdendo o controle. Como se alguma coisa estivesse escorrendo por entre os vãos de seus dedos. E a culpa era toda dele. Ele sabia, ele tinha plena convicção de como as coisas funcionavam ali, sabia (em partes) o que era o hotel. Mas mesmo assim ele resolvera reabri-lo. Gastara milhões na reforma de uma coisa que já estava resolvida. Era só deixá-lo lá, reduzido a escombros ele apodreceria. Sem poder se alimentar ele se tornaria fraco, apenas uma concha vazia. Talvez ele morresse. Mas fato era que ele não poderia mais ferir ninguém.
Mas não foi o que ele fizera. A decisão que ele tomara (e agora não entendia porquê de fato tomara aquela decisão) foi de reformar o hotel e reabrir suas portas.
No fundo ele pensou que talvez pudesse ser diferente. Ele imaginou que a explosão tinha sido forte o suficiente para matar o que quer que fosse, a coisa. Mas estava errado. Sempre estivera errado, e a culpa era toda dele.
Desde o início tinha sido sua culpa. Carol quisera ir embora, no início mas ele resolveu ficar. Por quê? A resposta era que talvez, naquela época ele chegou a pensar que realmente estivesse apaixonado, e no fundo ele achava que poderia ter algum tipo de salvação para ela. Reat dissera que não, naquela noite em 1983, mas ele achava que sim, e aquilo tinha sido seu grande erro.
Talvez as coisas pudessem ter sido diferentes se ele tivesse tomado outra decisão, se eles tivessem simplesmente partido. Ele não seria um milionário hoje, mas achava que poderia viver com aquilo, ao menos era melhor do que viver com o peso da culpa que agora se abatia sobre ele.
Ter fugido. Teria sido a decisão correta.
Mas ele decidira ficar. Ele decidiu aceitar o emprego no Pride Outstretched, ele decidiu trair sua mulher e se deitar com Scalet, ele decidiu entrar na sala de Thomas Reat e aceitar a herança maldita, e ele decidiu reabrir o Pride Outstretched.
Tudo decisão sua. Escolhas que ele não podia voltar atrás.
Agora ele só podia assumir sua culpa e viver com ela, aceitar as consequências. A consequência estava lá em cima, no elevador de serviço, parado no sexto andar.
Mas ele achava que podia controlar a coisa uma última vez. Era preciso. Havia alguns milhões em jogo, e era um dinheiro que ele estava precisando. Só mais uma temporada. Depois daquilo ele fecharia o hotel e o deixaria apodrecer. Pegaria sua filha e fugiria para as praias quentes do Rio de janeiro onde ele era proprietário do Golden Pallace Hotel, em Copacabana.
Depois de algum tempo o maravilhoso jardim ao redor do hotel seria tomado pelo mato. O gramado do estacionamento cresceria tanto que ocultaria as partes pavimentadas. Musgo e ervas cresceriam pelas paredes, o teto cederia e árvores e outras plantas cresceriam no saguão principal e no chafariz. O Pride Outstretched se tornaria habitação de animais silvestres, e Havler sabia que eles não estavam no cardápio do Pride Outstretched.
Apenas uma sombra.
Era o que o hotel sempre fora e continuaria a ser, uma sombra que o acompanhava como um estigma. Depois de muito tempo ele continuaria a ser uma sombra que assombraria seus pesadelos, mas ele estaria em paz, pois o hotel não conseguiria mais machucar, seria incapaz de matar. Com o tempo ele dormiria.
Tudo o que ele precisava fazer era controlar a coisa uma última vez.
Não parecia, mas Havler estava precisando do dinheiro e o dinheiro que iria entrar na próxima temporada não era grande coisa, mas o ajudaria a sanar algumas dívidas importantes, o tiraria do buraco financeiro. Se ele fechasse as portas do hotel agora iria à falência. Teria que vender o carro, a casa na cidade, a casa e o hotel no Rio de janeiro, ficaria devendo milhões em dividas trabalhistas, e talvez fosse preso por passar cheques sem fundos.
Ele não podia simplesmente correr aquele risco. Precisava que a temporada de verão acontecesse. A última temporada.
Ele achava que podia controlar. Havia coisas que podiam ser feitas. Podia isolar três ou até quatro andares do hotel, podia isolar alguns lugares que considerava serem perigosos no Pride Outstretched. Manteria o chafariz desligado com a desculpa que ele estava quebrado. Desativaria um dos elevadores principais. O hotel não receberia muitos hóspedes naquela temporada. Seria a pior de todas, mas mesmo assim ele precisava dela.
Podia ainda reduzir o quadro de funcionários em mais da metade. E ficaria de olho em cada sinal. Um dos sinais estava no elevador de serviço agora. Um sinal de que alguma coisa estava mudando e ele sentia aquela mudança no ar e todo seu corpo tremia, ao mesmo tempo que um medo incontrolável se apossava de seu interior. O hotel parecia estar mudando, a esfera ficava mais estranha, como se a coisa se preparasse para algo, algo que ele não sabia o que era.
Era apenas uma impressão, mas era forte, chegava a lhe dar calafrios.
João Havler estava preocupado, e a preocupação era intensa, dilacerava sua alma.
Que rumo as coisas tomariam? Como seria quando a chuva começasse a cair e o hotel ficasse isolado do mundo como um buraco, uma armadilha?
Era isso o que era o Pride Outstretched, uma armadilha, e Havler nunca foi capaz de entender porquê.
Havler sentia-se acuado, como se alguma coisa estivesse fechando o cerco sobre ele. Ele sentia vontade de esquecer tudo aquilo, pegar Jennifer, entrar no carro e fugir, ir para o mais longe possível do Pride Outstretched. Não seria mais responsabilidade sua. Era uma ilusão, sempre seria responsabilidade sua, o hotel sempre continuaria a cobrar seu preço, não importasse o que ele pudesse fazer.
Talvez fosse seu destino. Um destino que tinha começado a ser traçado em 1953 quando ele, com sete anos, presenciou a morte de seu pai. Uma cena que o enlouqueceu e o deixou trancafiado em um hospício por quase 4 anos.
Quando ele saiu de lá, com 11 anos, em 1957, Havler sentia que era outra pessoa. O João que sempre existira não existia mais, tinha sido engolido pela
(Monstro)
terra junto com seu pai em 1953.
"Aquilo não aconteceu."
Mas era apenas o que ele queria acreditar, que aquilo não tinha acontecido, que tinha sido apenas um sonho estranho e bizarro.
Mas a quem estava querendo enganar? Ele sabia muito bem o que seus olhos tinham visto.
A coisa aconteceu ali, no lugar onde hoje se encontrava o Pride Outstretched. E era como se o hotel fosse um estigma que o acompanhava sempre.
Ele sempre estivera ali e sempre tinha sido sua escolha, assim como tinha sido sua escolha fazer a cabana nas montanhas, o lugar onde ele morou com Carol, sua mulher por alguns anos, até começarem a trabalhar no Pride Outstretched, até todo aquele círculo de acontecimentos bizarros acontecerem, acontecimentos que culminaram com a internação de Carol em um hospício. Ele ficou sozinho então para criar sua filha e decidiu por fim aceitar sua herança maldita e se mudar para a casa de Thomas Reat.
Thomas Reat, o homem que fora consumido pelo hotel, da mesma maneira que ele estava sendo consumido agora. O misterioso Thomas Reat. Sua história estava coberta de mistérios mas Havler sabia algumas coisas sobre ele.
Sabia que Thomas Reat chegou na cidade em 1970. Era um empresário inglês com sede de investir em alguma coisa no Brasil.
No final de 1972 Thomas comprou as terras onde estava localizado o hotel, terras onde antes havia uma casa, e antes uma árvore,
(Ele ainda podia ouvir o som dos dentes da coisa. Como brocas perfurando a carne). O mesmo lugar onde ele sabia que até a década de 40 funcionava uma mina de extração de minério, que por motivos desconhecidos foi desativada depois. Ainda hoje se ouvia boatos de que se podia encontrar os túneis da velha mina pelas florestas e montanhas da região, e que esses túneis eram supostamente assombrados.
Havia quem dissesse que havia uma passagem para esses túneis no porão do Pride Outstretched. Havler era o dono do Pride Outstretched, e nunca conseguiu encontrar a tal passagem.
Havler também sabia que em 1975, Thomas Reat começou a namorar Miriam Ribeiro que era a filha do prefeito. Eles se casaram um ano depois, em dezembro de 1976. Uma festa glamourosa que contou com a participação da nata da sociedade.
Vitória Scalet apareceu em cena pela primeira vez exatamente na noite da festa. Dizia-se que se tratava de uma atriz proeminente de cinema (ninguém tinha visto falar em qualquer filme que ela tivesse feito). Ela simplesmente surgiu naquela noite, como uma aparição. Não se tinha conhecimento se o nome dela estava ou não na lista de convidados, mas o que Havler sabia é que o centro das atenções deixou de ser a noiva e passou a ser a jovem e bela atriz desconhecida, por quem Thomas Reat se apaixonou à primeira vista.
O casamento de Thomas e Miriam era um daqueles típicos casamentos de faxada. Thomas tinha negócios com o pai da moça. Ele estava para começar a construção do maior hotel do Brasil, e iria trazer centenas, talvez milhares de empregos para a cidade, de modo que a união serviu para selar o acordo, e apenas isso. Embora Miriam Ribeiro fosse perdidamente apaixonada pelo marido, Thomas Reat só tinha olhos para Vitória Scalet, com a qual começou a ter um caso.
As obras do empreendimento mais ousado da região começaram em meados de 1977, e o Pride Outstretched ficou pronto em 1980, quando foi inaugurado em um inesquecível baile de primavera.
Havler começou a trabalhar no hotel em outubro de 1980, 15 dias antes do Baile de inauguração. Foi contratado para suprir o quadro de garçons do baile e se efetivou depois. Foi Carol, sua mulher quem lhe arranjou o emprego. Carol trabalhava na cozinha do hotel desde dezembro de 1979, e cozinhava para a última equipe de pedreiros que davam os retoques finais ao hotel antes da inauguração.
O emprego veio na hora certa. As coisa estavam meio difíceis naquele ano. Havler fazia alguns bicos mas o dinheiro era curto. Parecia praga do pai de Carol, que era seu tio e era totalmente contra a união dos dois.
Carol e Havler começaram a namorar no verão de 1970, Havler tinha 24 anos, Carol 19 e trabalhava como garçonete na lanchonete da família. Havler passava lá todos os dias com sua bicicleta para deixar o jornal e aproveitava para tomar um café que sempre era oferecido pela prima.
Ele havia se apaixonado pela prima quando ela tinha 17 anos. Ela era adorável, a garota mais linda que ele já tinha conhecido na vida. Quando ficou insuportável esconder a paixão ele tomou coragem e a convidou para sair.
Carol aceitou, o tio deixou, pois pensava que eram apenas primos saindo para tomar um sorvete. Ele não sabia que a filha também vinha nutrindo sentimentos pelo primo, sentimentos que eram contra os costumes da família.
O primeiro beijo aconteceu, Havler disse que ela estava linda e ganhou um lindo sorriso em troca. Então ele a beijou e Carol retribuiu o beijo, e Havler soube que a amava.
Mas ele teria que enfrentar o irmão de seu pai, que lhe deu um soco no rosto e outro no estômago quando ele tentou pedir a mão de Carol em namoro.
Carol tentou intervir, dissera que amava Havler e odiava o pai pelo que ele estava fazendo. A coisa lhe custou uma surra.
Mas aquilo não os afastou, pelo contrário, a recusa do pai de Carol em consentir no namoro dos dois apenas os aproximou ainda mais. Eles se encontravam escondidos e namoravam, passavam tardes maravilhosas juntos.
Em 1954, algum tempo depois de Havler ter sido internado em um hospital psiquiátrico para tratar o trauma de ter presenciado a estranha morte do pai, sua mãe, resolveu fechar a cabana onde eles moravam nas montanhas e ir para a cidade.
Quando completou 17 anos, Havler passou a ir até a cabana sozinho em sua velha bicicleta. Mais tarde a cabana passou a ser um ponto de encontro entre os primos que se amavam. Foi na cabana onde eles fizeram amor pela primeira vez, e foi para a cabana onde eles foram morar após o pai de Carol descobrir que ela ainda se encontrava com o primo.
Carol resolveu enfrentar o pai disse que eles estavam transando.
Seu pai lhe deu uma surra daquelas e a expulsou de casa, pois ele não tinha filha para ser prostituta.
Carol nunca mais voltou para a casa, nem mesmo quando seu pai morreu vítima de um infarto um ano depois.
Havler então resolveu ir morar na cabana com Carol, mesmo sob os protestos de sua mãe.
Ele fazia bicos como jardineiro. Tinha juntado algum dinheiro e conseguido comprar uma Brasília ano 69 meio velha, mas com o motor em dia. A Brasília era a única forma de locomoção.
Eles se mudaram para a cabana em abril de 1973.
Naquela época não existia o hotel Pride Outstretched, mas a casa de Douglas Gouvêa Nunes, um bancário argentino, que pelo pouco que Havler sabia tinha se mudado para as montanhas por conta da grave e desconhecida doença da filha, sim. Essa já existia, tinha sido construída em 1968, e em 73, quando Havler se mudou com sua mulher para a velha cabana onde ele tinha vivido sua infância, a casa dos Gouvêia Nunes não passava de ruínas.
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