Parte 2
"Você insiste em 5 e 7 e eu só me sinto confortável com 4 e 8. Nossos números não batem. Você põe meus joelhos em risco e... Eu não quero, Maia, sair por aí quebrando os joelhos das pessoas só para vender joelhos novos no lugar e fazer sabe-se lá o quê com os joelhos roubados, porque eu nunca sei o que você faz com eles."
Percebo que falo sussurrando, então engulo seco e continuo.
"Não suporto partes que faltam. Eu não suporto nem estar lá fora com meu pai e Seu Marcolino com aquela coisa. Aquela coisa que corta também."
"Nunca foi sobre Seu Marcolino, né? Você está aqui por mim. Eu não entendo você, Erick. Se seu medo é justamente perder partes suas ou ver os outros perdendo elas, e eu te ofereço um mundo de partes..." Ela já estava de pé invocando pedaços de gente por todo o galpão, tinha de tudo, mas o que mais se via por ali eram joelhos. Pedaços e pedaços de joelhos: em ganchos, prateleiras, baldes e mesas – um açougue humano.
"De todos os tamanho e jeitos que você quiser!"
Já estava ciente de que havia descambando no meu próprio episódio, sem controle algum.
"Por que você faz isso?" Eu fecho os olhos e tento encontrar o fio da respiração. Ela sempre adorara caçar joelhos por aí. Ninguém é perfeito, eu dizia a mim mesmo e sei que fui cúmplice de alguns roubos, de alguns desmembramentos. Logo eu que não concebia aquelas coisas... Era como desafiar o TOC no seu medo, rir da cara do perigo, deitar e rolar sobre a maldição como se fosse um cobertor do mal que não esquenta, mas abafa. No entanto, não sou forte o bastante pra manipular o medo e ser senhor dele.
A serra mármore ainda é dominante sobre mim. Ela impera. E sei porque ela é o estopim para a minha viagem até os submundos hoje. Ela, no seu cortar, partir, me força o sentimento de desmembrado como o que sinto com aquela relação, com aquele trabalho.
"Não quero mais ser seu cúmplice, quero as coisas do meu jeito, tô decidido a aprender a controlar a Voz sem precisar fazer essas coisas com você."
"Loucura não é antídoto para loucura, Erick." Ela disse, e ela realmente diria.
"Sanidade muito menos." Eu ponderei. Não que o que nós fazíamos juntos fosse lá muito razoável, mas ainda era um comportamento humano, uma das válvulas de escape do mundo. Levanto-me do banquinho de sentar e ando pelo galpão. O som agudo da máquina ainda me tira do sério, tenho que sair logo daqui pra raciocinar tudo o que vou dizer de verdade. Mas esse nervoso não me deixa, e eu quero muito tocar contando nas coisas, mas eu digo a mim mesmo que não, não cheguei a esse nível de novo.
Ainda.
"Você que pensa! Não seria mais fácil passar contando, olha aqui quantas quinas, quantas pontas de faca pra você tocar e tocar ad infinito partuplicado até se sentir relaxado."
"Relaxado é o cacete!"
"Não era você que dizia que loucura, com loucura se trata?" Dizia a Maia-Entidade, de modo que não sabia mais com quem falava.
"Há uma grande diferença entre transitar na loucura, flertar com ela e se deixar levar. Eu sou mais forte que a Voz, eu... me concentro na Outra Voz, na Outra Voz, Outra Voz, Outra Voz." Eu dizia isso sobre dentes trincados, repetições de mim para mim.
"1. 2. 3. 4. 5... 6. 7 e quem sabeee..."
O contar dela me irava, ela sabia. Agora provavelmente já perdi o controle, nem resetar a conversa não posso mais, porque ela me atiça na contagem. Para no número ímpar de propósito, justo naquele que eu não gosto. Quer me fazer chegar até o 8 e ela sabe que sou um viciado, que se começo não paro. Maldição!
"Continua Erick, ou vai deixar uma parte faltando?" E o ando-ando-ando ressoa num eco quantitativo.
Quando ela fica assim... Ela não é mais ela, a que se dispõe a ser no imaginar da minha cabeça. É só a Entidade desse Depósito de Partes, menos transmorfa e mais sólida no nada imaginado que é. Nesse estado ela é perigosa, fora de controle, canal direto da Voz, seu tom de fala já é rasteiro, frio e sussurrado.
"Vamos, Seu Menino, comece a contarrrr... Que alivia os pesares da mente."
Um Seu Marcolino estranhado como em posição de ataque, com dedos faltando e o usual uniforme de açougueiro de gente me atiçava, segui a direção ao fundo, porque dali só se sai pela saída e não há o que se possa fazer.
"Sem covardias, hein? Vai, conta comigo! Corta comigo! Caça joelhos comigo, Erick!" Na versão de Maia já tinha ódio urgente na voz. A minha frente, me fazia dar passos para trás, a visão horrenda duma dobra de articulação com pontas vermelhas exibindo músculos e um toquinho branco de osso. Em suas mãos ela aperta e o sangue espirra, escorre vermelhamente por seu avental.
"Eu... tenho é que sair daqui."
Me adiantei para o fim daquele lugar. No momento de nervoso é como sonho, quanto mais corre, mais distante fica. Eu corro com a respiração fechada, os braços colados ao corpo, nada importa a não ser, não me desintegrar, só não poss...
"Corre Erick, corre! Conta comigo! Corta comigo!" A habilidade dela em multiplicar-se em quantas vezes for possível em vozes e rostos dos mais diversos que um dia eu já permiti existirem nessa dimensão sufoca. Fecho os olhos e vou, a esmo, desoxigenado, me embalando com os braços. O fim chega e o oxigênio entra num desesperadamente de afogado sem ar. Da porta traseira ela rebate e esperneia gritando tal como monstro marinho em beira de oceano. Pouco me importo, ela é abafada pela linha direta do expresso fecal, ressoando o mais agudo som da máquina de cortar. Sobe o azulejo ela canta feito um grito agudo constante e cheira à resina queimada. Eu sei que é hora de voltar porque não há mais nada que eu possa resolver aqui. Todo futuro infinitamente projetado chega para qualquer ansioso. Isso é i-ne-vi-tá-vel.
Eu saio fugido pela estrada infinita e num átimo o Banheiro da Penitência está lá. Abro a porta com rudeza e sento no trono resoluto, não quero distrações que despertem compulsão, eu ainda não voltei a esse nível, repito. Eu fecho os olhos e respiro bem fundo, o que me dá a sensação de que meu ser sai em pedaços na exalação, floquinhos de mim para o além. Quando abro os olhos o banheiro expandiu, tem mais coisas do que só o vaso, é o banheiro de casa outra vez.
Pá. Pá. Pá. Três sons abafados de madeira oca.
"Erick, tá tudo bem?"
"Tá sim, mãe! Já tô saindo daqui."
"Não, é que tem visita pra você, ela tá aqui, já."
Mas já? Pego assim de supetão, sem direito ao meu micro tempo expandido de imaginação, tinha que ir lá falar com ela: a de verdade. Me olho no espelho e estou vermelho tomate, com olhos que me entregariam. Me recomponho e seguro firme na maçaneta, forço a respiração e saio.
"Tudo bem mesmo?"
"Sim." Ela me lê e diz o que acha que me conforta.
"Seu Marcolino já está acabando, são poucos pisos"
"Sim, eu sei, tudo bem".
Nós descemos a escada de madeira, aquela que range no degrau número cinco e me dá gastura, mas é hora de pensar em outro algo. Ela está lá, provavelmente vai ficar para almoçar porque tem uma travessa de torta de morango, daqueles bem vermelhinhos por cima e deixam a boca tingida feito sangue. Ela sempre traz comida quando vem comer, dando um jeito de enfiar vermelho nela. Seja lá o que eu tinha de dizer, preciso esperar até depois do almoço. agora minha mãe conta com a torta de morango.
"Você! Tá fazendo abstinência de mim, é? Te liguei horrores hoje e não me respondeu."
"Leituras da faculdade."
"Han, sei. Tá pronto pra hoje à tarde? Por favor me diz que já tem tudo arrumado, você sempre esquece de levar alguma coisa e nós quase entramos numa fria por causa disso."
"Já, já arrumei tudo" Eu não tinha. Enquanto elas estivessem desorganizadas ainda restaria tempo de abortar a missão.
De repente ela me envolve com os braços num abraço do nada. Me assustou. A serra mármore fez a trilha sonora do espanto e o arrepio subiu.
"Tá com frio?"
"Am, não, tô com fome só, é meu estômago."
"Já vem pra cozinha, é só os homens terminarem lá fora, a gente come. Vem, bem, vem!".
Nós seguimos a ordem da minha mãe. O cheiro bom de carne de panela, o frutado da torta e a resina queimada confundiam-se no meu nariz dentro da cozinha.
"Vocês voltam tarde hoje, querida?" Minha mãe quis saber.
"Ah, a senhora sabe, depende muito da clientela do dia, às vezes as vendas vão em ritmo bom, às vezes não. Depende." Nós havíamos combinado que para os meus pais, a gente saía para as vendas, o que não deixava de ser verdade. O que era vendido é que se mantinha em segredo.
"A verdade não é uma boa opção, Erick" Ela dissera bem lá no início, antes.
Toda aquela situação de ansiedade com ela e o que faríamos mais tarde, o cheiro frutado da torta embalado ao som exasperador daquele instrumento cortante do lado de fora me davam um embrulho no estômago, já preenchido com o peso do caos interno.
"Essa sua torta, de quê que é?"
"Ah é de frutas vermelhas, com mais morango, é claro. A senhora sabe, sai bem mais em conta."
O som parou, felizmente. Seu Marcolino deu tchau para nós e se foi com aquela coisa para bem longe. Meu pai entrou na cozinha com todos os dedos em mão, ao menos agora eu podia respirar de maneira um pouco mais próxima do normal.
Sentados os quatro para comer, eu empurrava com esforço a comida para dentro, o estômago já cheio de nervosias.
"E como andam as vendas? Hmmm isso tá bom, muito bom, muito bom..." Meu pai falava mastigando de lábios vermelhos. Ele morria de amores por ela, eles morriam de amores por ela. Como rejeitá-la assim? Provavelmente não gostariam tanto se soubessem o que fazíamos, não comeriam nem a torta de frutas vermelhas.
"Ah, cê sabe, tem épocas e épocas. Aumenta quando tem alguma data comemorativa."
"Ah logo, logo é Natal, querida."
"Sim, aí é que as coisas ficam pesadas." Ela riu com o duplo sentido da sua própria afirmação.
"Hoje é só vendas?" Meu pai quis saber.
"Ah não, depois das cinco vamos sair pra comprar ingredientes." Disse ela repetindo mais um pedaço de torta.
"Nossa, cinco não é meio tarde, bem?"
"Não. Cinco é perfeito." Seu tom era absoluto.
"Bem, tomem cuidado e não voltem muito tarde vocês dois. À noite é perigoso andar por aí, meninos."
Nós somos o perigo, pensei.
Já não havia mais tempo para adiar o inadiável, subi, peguei as coisas de qualquer jeito, possivelmente esquecia algo mesmo e ela ficaria brava mais tarde: facas, tabuinhas, papeis e aquela nojenta coisa de morder na hora do ápice. Já do lado de fora de casa, nós esperávamos o motorista que ela havia chamado.
"Trouxe um pedaço pra viagem, porque você não comeu, eu percebi." Ela tinha um potinho em mãos com um pedaço da torta vermelha.
"Ah é, tô meio cheio, comi carne pra caramba."
"Sei." Disse ela indiferente. Eu tomei o potinho das mãos dela fazendo uma nota mental de como jogaria fora sem ela ver depois.
"Então, aonde vai ser dessa vez?" Eu quis puxar conversa, não sabia bem como começar a dizer tudo que precisava.
"No posto, aquele perto do hotel." Ela senta no meio fio da calçada e eu tomo coragem.
"Não sei se isso adianta de alguma coisa pra você, talvez fosse melhor..."
"Não! Amanhã a gente cozinha de verdade."
"Por que não ir depois..." Eu fui desconversando.
"Porque hoje é quinta e você prometeu! Disse que não me deixaria ir sozinha, que alguém podia se aproveitar de mim, que é? Agora já não se importa mais?"
"Como poderia não me importar, olha quantas mentiras contei pros meus pais, pros meus pais! Até namorados eles pensam que somos. Agora escuta bem, vamos pra sua casa e a gente pode ficar de boa, não precisamos nem trabalhar de verdade, vai por mim, é melhor. Essas coisas que você cheira, põe pra dentro, não tão te ajudando."
Ela já estava chorando, em parte emburrada, em parte triste, desoladamente triste. Só o que diz são soluços, seu único gesto é tomar o potinho em minhas mãos. Tirou a torta e a mordeu triste e lentamente, sua droga açucarada, seu pedaço número três.
Com a outra mão ela segura na minha e me puxa para baixo, eu me ajoelho rendido a ela. Sei que somos diferentes, mas um diferente semelhante. Eu vou acompanhá-la esta noite e ver seus delírios no mundo exterior, iguais aos meus na minha cabeça, e me perguntar como sempre me pergunto qual é a linha tênue entre nós dois, entre estar são ou não. Pensar assim me traz arrepios. Não! Prefiro pensar:
Sou preto no branco
Ela, vermelho em absoluto.
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