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O Boto

– Então você está me dizendo que esses seis irmãos que desapareceram são os seis monstros que você me disse antes? — Amélia perguntou pasma.

– Na verdade todo mundo acha que são eles, mas ninguém tem certeza absoluta.

– Bom... Essa história explica alguma coisa, mas também deixa muito mais em branco. Você sabe onde exatamente ficava a casa onde o bruxo morava?

– Já tentaram encontrá essa casa diversas veis. Tentaram até achá o poço, mas não deu em nadinha de nada.

– Então o que eu vi poderia ser uma alucinação do Saci ou da Coisa Sem Cabeça?

– Mula Sem Cabeça.

– É, isso aí.

– Poderia. Mas é mais fácil dizê que ou o Saci fez você aluciná ou a Mula levou ocê pa lá.

– Mas eles não têm o mesmo poder alucinógeno?

– Não. A Mula pode mexê com tua cabeça, o Saci faz ocê vê coisa.

– E o que seria "mexer com a cabeça"?

– Mexê com a memória ou raciocínio, essas coisa. Cunfundi ocê.

– Ah, entendi! É como a Iara e o Curupira. A Iara pode fazer as ondas surgirem, mas o Curupira pode tornar-se as ondas. A Mula sem Cabeça mexe com a memória, o Saci com a visão. Cara... Não acredito que estou mesmo falando nisso de uma forma séria.

– Vai demorá até se acostumá com isso. É cunfusão demais pros nervo da cabeça.

– Neurônios, vô.

– Essa coisa aí.

– Bom, se eu estive lá ou não, não importa. O que eu queria realmente saber é: por que eles queriam que eu visse o poço?

– Isso num sei dizê, mas algo eles querem do cê.

– Então... Voltando à história. O que aconteceu com o Monroe depois que a mulher morreu e os filhos, que eram teoricamente do bruxo, desapareceram?

– Ele se casô cua mulhé que ele amava de verdade. Ele não queria se casá com Giselle porque já tava apaixonado por outra.

– E quem era essa mulher?

– Num sei.

– Essa história tem muitos furos… Os filhos dela não tinham semelhança nenhuma uns com os outros. E mais: não se pareciam com o Monroe e nem com o Ellesh. Seria muito mais lógico deduzir que ela realmente tinha vários amantes e que essa história foi passada de boca em boca. Então, a Giselle acabou virando a coitada da história e o marido dela um cara malvado, sendo que na realidade ela traía o Monroe. Faz muito mais sentido.

– E como explicá o desaparecimento dos filho, hein?

– É... Então... Modificando a minha hipótese. O Monroe não era tão inocente assim e depois do falecimento da esposa em um incêndio aparentemente acidental, livrou-se dos filhos para se casar com outra mulher.

– Faz sentido..., mas como explicá a queimadura da Aline e a sua "visão"? Vai me dizê que acha que tá doida de pedra?

Amélia travou e não conseguiu encontrar mais nenhuma explicação sensata. Ou a história do avô era completamente verdadeira ou ela estava ficando louca. Só havia um jeito de descobrir se aquilo tudo era verdade: pesquisando.

– Vô, você sabe o nome completo do Monroe?

– Sei não.

– Maravilha... Vou ter que dar meu jeito então.

Amélia levantou-se e foi para dentro da casa. Jogou-se na cama de seu quarto e começou a refletir.

Em todos os cantos do mundo existem registros de todas as pessoas que vivem legalmente nas cidades. Monroe era um homem extremamente rico, então obviamente tinha registros legais. O único lugar que encontraria registros legais de cidadãos de uma cidade é em um cartório. Mas será mesmo que os registros de Monroe estariam preservados por todo esse tempo?

Primeiramente, a história ocorreu pouco depois de 1700, no começo do século XVIII. Considerando que nessa época a expectativa de vida era de uns 35 anos, poderia presumir que Monroe teria vivido mais ou menos nessa faixa. Supondo que a história acontecesse exatamente em 1700 e Monroe, na época, tinha exatamente 19 anos e tinha chegado apenas até aos 35, então teria de encontrar registros entre 1681 e 1716. Esse era um bom começo.

Pensou mais um pouco e concluiu que tinha meios mais viáveis de encontrar registros, pois realmente era pouco provável que conseguisse invadir um cartório e encontrar o que procurava em um piscar de olhos. Talvez na biblioteca da cidade houvesse algo que lhe ajudasse.

Logo depois do almoço, entrou decidida no estábulo, preparou um cavalo qualquer e partiu para a cidade rumo à biblioteca. Foi o mais rápido que pôde e estava nas portas do enorme e antigo edifício em vinte minutos. Entrou no estacionamento e ali encontrou um canto seguro e sombreado para deixar sua montaria por algum tempo.

Entrou animadamente no lugar e foi direto falar com a bibliotecária.

– Olá, bom dia!

– Bom dia, senhorita! Como posso ajudar?

– Eu estou procurando livros com um assunto específico. É sobre registros de pessoas do século XVIII nesta cidade. De preferência, pessoas ricas. Você teria algo parecido com isso?

– Vou ver no sistema.

– Obrigada.

Depois de cinco minutos, a moça voltou a falar.

– Olha, o mais próximo que encontrei foi: Os ricos do Brasil no século XVIII. Deseja que eu leia a sinopse ou quer que eu lhe diga outras opções?

– Leia a sinopse desse, por favor.

– "Conheça a história dos homens mais ricos e poderosos do século XVIII no Brasil, suas conquistas e realizações, além dos trágicos acontecimentos por trás da riqueza e títulos." Com essa sinopse e esse título, não me admira que ele não tenha saído da estante há mais de dez anos. — A bibliotecária olhou torto para a tela do computador.

– É, parece um tédio, mas é exatamente o que estou precisando. — Amélia de repente ficou com uma pulga atrás da orelha. Por que alguém precisaria de um livro com um assunto tão inútil? — Com licença, você poderia me dizer quem foi a última pessoa a pegar esse livro?

– Desculpe, mas é uma informação confidencial.

– Entendo, mas é que um amigo meu pegou um livro assim e disse que ele tinha o que eu precisava. Eu acabei esquecendo o título do livro e preciso saber quem foi a última pessoa que pegou para confirmar se é esse mesmo.

– Seu amigo pegou esse livro há mais de dez anos? — A recepcionista, desconfiada, ergueu uma sobrancelha.

– Sim... Na verdade ele é um amigo do meu irmão mais velho e também é amigo meu. Ele sempre foi muito legal comigo, é quase um segundo irmão para mim, sabe? Apesar de ele ser bem mais velho do que eu. — Abriu um sorriso amarelo. Seu nervosismo apenas aumentou a desconfiança da bibliotecária.

– Claro..., mas mesmo assim não posso dar essa informação. Sinto muito... — Subitamente a recepcionista fixou seus olhos em algo atrás de Amélia. Sua expressão ficara completamente sem qualquer emoção, como se fosse uma máquina que tivesse enguiçado. Amélia virou-se para trás bem lentamente, com medo do que poderia ter ali, mas não encontrou nada. Ao voltar-se novamente à bibliotecária, ela já havia voltado ao normal e estava mexendo em algo no computador. Depois de meio minuto a moça disse-lhe:

– Leonard Elliot Thomas Monroe.

– O... O que? — Amélia estremeceu ao ouvir esse nome.

– Foi o último a alugar o livro.

– Você não disse que era uma informação confidencial?

– Eu disse? — A bibliotecária olhou-a confusa. — Não, não disse não.

Amélia estremeceu mais uma vez.

– Tudo bem... Você poderia me dar esse livro?

– Agora mesmo.

Amélia recebeu um livreto com aproximadamente 250 páginas. Quando terminou a papelada de aluguel, sentou-se em uma das mesas da biblioteca e começou a folheá-lo. Estava tudo um tremendo silêncio. A cada página virada, mais informação inútil aparecia. Chegou ao ponto de aquilo ficar tão chato que estava quase dormindo...

– Olá.

Assustou-se com uma grossa voz masculina cumprimentando-a bem ao pé do ouvido. Quando se virou em um gesto automático para ver quem era, ficou estagnada. Debruçado no encosto de sua cadeira, estava o rapaz mais elegante, bonito e charmoso que já vira na vida. Tinha cabelo preto com cachos enormes que se misturavam com ondas enormes, sendo mais alto e cheio em cima e bem aparado em volta. Um sorriso extremamente encantador radiava em seu belíssimo rosto, cheio de dentes brancos perfeitos e covinhas que apenas aumentavam seu charme. Os lábios eram levemente carnudos e rosados. A pele bem clara. Tinha uma barba muito bem feita. Os olhos eram marrons e muito escuros, mas continham um brilho especial, quase hipnotizador. A camisa polo branca e as calças jeans justas davam-lhe um ar estranhamente sexy. Além de que a camisa realçava os músculos de seus braços... Deus, que músculos... E o cheiro então... Como era divino! Parecia até perfume importado.

Como que acordando de um transe, piscou várias vezes, enfim percebendo o que fazia. Estava quase literalmente babando por um cara que apenas disse "Olá" e que estava nitidamente flertando com ela. Um cara que flerta com uma desconhecida com certeza não poderia ser alguém confiável.

– Oi… — Disse apenas. Estava desconfiada, mas a beleza daquele rapaz intimidava-a. Ainda mais com aquele curto espaço entre eles.

– Desculpe, não queria assustar você.

– Então da próxima vez não apareça feito um fantasma e nem se aproxime como se quisesse me devorar. — Amélia perdeu a timidez e encarou-o irritada. — Aliás, o que é que você quer?

O moço pareceu confuso por uns instantes, mas logo voltou a sorrir como se estivesse achando aquilo divertido.

– Então você é das difíceis, não é mesmo?

– Do que está falando?

– Bom, é que fazia algum tempo que não encontrava alguém que resistisse a mim por mais de cinco segundos.

– Impressão minha ou você só está aqui para me encher?

– Quanto tempo você acha que aguenta? — Fitou-a com um ar desafiador, estreitando os olhos.

– Quê?

– Quanto tempo acha que pode aguentar até se entregar aos seus desejos?

– Escute, você é um cara realmente atraente, mas não acho que isso influencie em qualquer coisa que eu pense sobre você... E até agora a única que penso é que você é um babaca.

– Estou impressionado! Você quebrou o recorde de muitas mulheres! Só falta saber se você é realmente imune ou está apenas resistindo.

– Ok... Essa conversa está começando a tomar outro rumo...

Bruscamente as palavras de Seu Balmirio invadiram a mente de Amélia: “A Mula Sem Cabeça, que pode ficá invisívi e mexê com a cabeça das pessoa. [...] O Boto Cor de Rosa, que faz qualquer um se xoná por ele, sendo homi ou muié, e faz a pessoa fazê qualquer coisa apenas pedindo de tanta paixão que ela sente. [...]”

A confusão da secretária, aquela história de imunidade... Havia algo de muito errado. Sua cabeça enfim teve um estalo de realidade e o coração da garota disparou. Pegou o livro de cima da mesa e levantou-se da cadeira desesperada enquanto usava-o como porrete, metendo-o na cabeça do rapaz para afastá-lo. Recuou o máximo que pôde e disse em ameaça:

– Eu sei quem você é! Eu já saquei tudo isso e acho que você não está sozinho! Fique longe de mim ou eu juro que racho sua cabeça com esse livro!

– Se não já rachou, né? Credo, bagunçou meu cabelinho… — Disse, fazendo um bico chateado e arrumando suas madeixas. — Amélia, se acalme, eu não vou...  

O rapaz... Ou melhor... O Boto fez um gesto com as mãos tentando acalmá-la e aproximou-se bem devagar.

– Como você sabe meu nome?! Anda me espionando?!

– Amélia, eu juro que posso explicar tudo. É só você se acalmar.

– Quer que eu me acalme com um demônio na minha frente?!

– Eu não sou um demônio! — Cruzou os braços e fez uma cara de ofendido que pareceu muito real. — Nossa, que preconceito! Botofóbica! 

– Você é um servo de um bruxo que amaldiçoou uma cidade inteira e quer que eu não o chame de demônio?

– Eu não sou um servo dele! Se você se acalmasse e deixasse eu explicar você entenderia!

– O que vocês querem comigo, afinal?

– Baby, eu já disse, acalma o coração e eu explico tudinho.

– Não me chame assim, por favor.

– Por que não?

– É clichê.

– Você acha? Caramba, eu chamo todo mundo assim... Os conceitos da geração atual são muito difíceis de acompanhar.

– Olha, podemos ir direto para a parte que você me explica que loucura é essa?

– Vamos por partes, meu anjo! A história é complexa demais até para mim, então vamos fazer o seguinte: pega esse livrinho aí e procura por Elliot Jefferson Monroe. Isso vai responder sua pergunta-chave. Então, esta noite, minha irmã Diana vai atrás de você. Não se assuste com ela, está bem? Ela pode ser um pouco… Cabeça-quente. Ela é tão cabeça quente que acho que às vezes supera a temperatura de uma chapinha com dez minutos na tomada.

– Que bela comparação! — Riu.

— Eu sei, uma vez eu fiz isso com uma chapinha… Ela quase derreteu a pia do banheiro.

– Algo me diz que tinha alguma coisa errada com essa chapinha.

– Eu sei, eu demorei um pouco para perceber.

– Um pouco tipo quanto?

– Um pouco tipo o tempo para descobrir de onde vinha o cheiro de queimado depois que usei a chapinha. Esse dia foi louco. 

Amélia não se aguentou e gargalhou alto.

– Tudo bem... Acho que já vou indo agora. Minha mãe pode ficar preocupada.

– Tudo bem, até breve.

– Breve?

– Sim, meu bem! Você vai ter a sorte de ver esse rostinho angelical outra vez.

– Sorte grande essa... — Brincou. — Aliás, como posso chamar você?

– Meu nome é Leonard, mas pode me chamar apenas de Leo.

– Ok, Leo! Prazer em conhecer.

– O prazer é todo meu! Foi uma honra finalmente poder conhecê-la. Acredite em mim, você é mais especial do que pensa. — Deu-lhe uma piscadela.

– Vindo de um ser folclórico, essas palavras valem alguma coisa. – Amélia sorriu, deu as costas e foi embora. Durante o caminho de volta ficou pensando em como passara de uma situação amedrontadora para uma conversa agradável e engraçada. Leonard não parecia um monstro, muito menos um demônio. Pelo contrário, parecia extremamente simpático e divertido... Além de um galã muito gostosão, mas meio debilóide.

Aquilo estava ficando cada vez mais bizarro e inacreditável. O que será que a esperava a seguir? 

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