Mula Sem Cabeça
Naquela manhã, Amélia havia acordado alegre. Os pássaros cantavam e pousavam em uma árvore perto da janela do quarto onde estava hospedada.
A fazenda de seus avôs era uma grande propriedade com vários animais, plantações, árvores... Tinha de tudo para parecer o paraíso. Adorava visitá-los, pois era onde podia ter paz e sossego. Ficava longe de qualquer barulho, como vizinhos que colocam música no último volume; de pessoas irritantes, como colegas de escola que mandam mensagem a cada cinco minutos querendo contar uma fofoca. Ali era apenas ela e a família. Estava isolada e podia descansar o quanto quisesse.
Algo que adorava fazer além de balançar em uma rede na varanda do casebre dos avôs era montar em Aline, sua querida égua, e cavalgar até a cidade. Era isso o que fazia naquela manhã após sua primeira refeição do dia e prometer voltar para o almoço.
Rumou pela estrada de terra, passando por entre uma mata fechada, onde imperava apenas o doce som dos animais diurnos. Alcançou a estrada asfaltada depois de uns quinze minutos, a única estrada que permitia acesso à cidade e ainda assim estava constantemente deserta. Ali, no máximo, via-se um ou dois veículos a cada meia hora ou mais. Dificilmente passavam três de uma vez. A maioria dos veículos que passavam eram caminhões. Vez ou outra aparecia um raro ônibus de viagem. Percebia que em muitas janelas havia câmeras apontadas para ela, pois muitos deles com certeza nunca tinham visto uma égua tão bonita quanto Aline, ainda mais galopando daquela forma. Quando tinha vontade de exibir sua montaria, a garota fazia alguns truques para os viajantes, como empinar. Eles adoravam e com certeza fazia a longa viagem valer a pena.
No momento não havia carros, ônibus ou caminhões. Estava tudo em uma completa calmaria, um delicioso silêncio, com exceção do barulho dos cascos de Aline contra o asfalto. Decidiu ir mais rápido. Deu a ordem à égua para que ela corresse. A fêmea relinchou e apertou o passo. Amélia sorriu, fechou os olhos e sentiu o vento batendo em seu rosto e fazendo seus longos cabelos ondulados e castanhos esvoaçarem. O vento da manhã era suavemente quente e, ao mesmo tempo, refrescante. Isso despertava uma grande sensação de liberdade e felicidade que não trocaria por nada no mundo.
Porém, mal sabia que sua felicidade duraria pouco. E, mais especificamente, acabaria naquele momento. Estava tão distraída com toda aquela paz que notou tardiamente o som de um segundo cavalo galopando logo atrás de si. Como todos os fazendeiros da região conheciam uns aos outros, decidiu virar-se e cumprimentar quem quer que fosse o cavaleiro. Contudo, ao olhar para trás, não viu ninguém.
Estava sozinha, mas ainda escutava o galope do cavalo. Tentou cogitar a possibilidade de ter alguém distante que não estivesse vendo, porém o barulho estava próximo demais e a estrada era muito plana para conseguir ocultar alguém.
O seu coração apertou. Sentiu um arrepio percorrer a espinha.
O ser aproximara-se e agora escutava os cascos do segundo cavalo exatamente ao seu lado. Decidiu parar Aline e tentar convencer-se de que era coisa de sua cabeça. Paralisou a égua, que estava um pouco inquieta demais. Quando estavam paradas, o barulho de cascos cessou completamente. Poderia pensar que eram meras alucinações, mas Aline estava cada vez mais agitada, como se visse algo que a garota não podia ver.
E então a égua enlouqueceu. Empinou, relinchou alto e saiu correndo como se sua vida dependesse disso. Talvez realmente dependesse.
Aline estava descontrolada e Amélia teve de se segurar em seu pescoço para não cair. Gritou o nome de Aline várias vezes, tentou ordenar para parar, mas não adiantava. Em pouco tempo chegaram a uma velocidade tão alta que Amélia teve medo de cair, acabar morrendo ou ficando em estado vegetativo quebrando a coluna e ficasse parada, estirada no chão, esperando a morte. Fechou os olhos, sem coragem para abri-los tão cedo. Afundou o rosto na crina, tentando sentir-se mais segura.
Optou por aguçar os ouvidos e escutou duas coisas que deixaram seu coração acelerado. Uma: ainda escutava os passos do segundo cavalo. Duas: os passos de ambos os animais pareciam estar pisando em folhas e galhos secos. Ouvia e sentia que estavam passando por entre várias plantas, galhos e arbustos.
Ambas as coisas significavam que tinham adentrado na mata. Ou seja, estava perdida e não saberia como voltar para a fazenda. Isso a desesperou ainda mais. A cada passo que Aline dava, mais longe estava do caminho de volta e mais difícil seria encontrá-lo. Mais desnorteada estaria. Mais perdida, mais apavorada e desesperada. Mas Aline não podia parar. Se parasse, o que as perseguia poderia machucá-las. A melhor alternativa era não fazer nada e torcer.
Depois de uma eternidade, Amélia finalmente escutou algo diferente. Os cascos de Aline não estavam mais cavalgando apenas sobre galhos e folhas secas. Agora seus passos faziam um som oco e alto, como se o atrito fosse contra algo parecido com pedra e não terra.
Quando o barulho mudou, a égua diminuiu cada vez mais a velocidade até parar completamente. Amélia esperou alguns segundos para abrir os olhos e soltar o pescoço de Aline.
Havia acertado. Estavam agora em uma estrada de ladrilhos retangulares de pedra cinzenta. Ela parecia muito antiga. Alguns ladrilhos estavam quebrados e outros cobertos pelo mato, mas a estrada ainda era bem visível. Perguntou-se como nunca a encontrara antes.
Quando conferiu que não estava machucada em nenhum canto, desceu de Aline e foi conferir se a égua estava bem. Sua resposta foi um tanto preocupante. Encontrou uma queimadura na coxa da pata traseira direita. Nunca tinha visto uma queimadura como aquela. Era uma mancha negra com alguns fios que eram parecidos com veias vermelhas e cintilantes. Tentou conferir se ela era capaz de andar. Puxou de leve a rédea para que Aline desse um passo à frente. A fêmea obedeceu e não reclamou. Se fossem bem devagar, talvez conseguissem caminhar. Como não tinham outra opção, decidiu que seguiriam aquela estrada torcendo para dar em algum lugar. Se encontrassem alguém, pediria por ajuda.
Caminhou devagar pela estrada e com um pavor terrível como companheiro. Sentia-se como se andasse pelo corredor da morte. O que teria no final? Onde aquilo as levaria? Será que não encontrariam outra coisa bizarra como um "cavalo invisível"? Aliás, o que exatamente tinha sido aquilo? Decidiu não pensar muito, afinal não tinha outra opção e não iria melhorar em nada se pensasse em coisas desse gênero. Precisava acalmar-se e continuar o caminho.
Teve de se segurar várias vezes para não cair. Manteve-se atenta ao chão por conta de alguns ladrilhos soltos ou raízes em que pudesse tropeçar. Aline não parecia ter nenhum problema em caminhar por ali. Ao menos ela estava bem, apesar da queimadura. Amélia começou a pensar se aquilo não podia infeccionar. Preocupada, sentiu uma necessidade de andar mais rápido. A garota tentou apertar o passo, mas no mesmo instante, Aline relinchou de dor. Não tinha outro jeito, teriam de ir devagar. Amélia suspirou de impaciência e continuou com o ritmo lento.
Em passos muito lerdos, conseguiram chegar a algum lugar em mais ou menos vinte minutos. Passaram por um amontoado de galhos e chegaram a um grande círculo feito por ladrilhos de pedra no chão. No centro do círculo, estava um velho poço caipira, aparentemente abandonado. Era construído com pedras escuras cobertas por musgo.
De súbito, Amélia paralisou e empalideceu. Aquele lugar era dominado por um ar pesado e sombrio, além de estar mergulhado em um silêncio macabro. Não havia um passarinho que passasse por ali, nem uma pequena cigarra ou um macaquinho. Nada. Era apenas silêncio. Parecia que os animais tinham medo de passar por ali ou de simplesmente chegar perto. Ou então como se a vida nem ao menos existisse naquele lugar. Nem o vento passava por ali, tanto que as árvores estavam estáticas e também aparentavam estarem mortas, apesar das folhas verde-escuras e os troncos grossos cobertos por musgo e trepadeiras.
Amélia, hipnotizada e atraída pela curiosidade, mesmo com o medo crescendo no peito de uma forma absurda, tentou aproximar-se do poço. Mas não conseguiu dar nem um passo. Ainda segurava as rédeas de Aline e a égua recusou-se a seguir em frente. Soltou a rédea e deixou-a para trás. Continuou aproximando-se bem lentamente. E sem nem ter dado conta, já estava com uma das mãos repousada na borda do poço. Esticou o pescoço para ver o que exatamente havia em seu fundo, mas tudo que conseguiu ver fora uma escuridão sem fim. Um cheiro insuportável, uma mistura de enxofre com carne podre, invadiu suas narinas.
Fez uma careta de nojo por conta do mau odor e afastou-se daquele abismo profundo. Tampou o nariz com uma das mãos e voltou para junto da égua. Pensou em seguir a estrada pelo sentido contrário. Talvez tivesse mais sorte.
Assim que puxou as rédeas de Aline, porém, escutou um sussurro de uma voz serena. Muito baixo. Com medo, virou-se devagar para a direção do poço.
Dentro da mata, além do poço, dois olhos encaravam-na. Eles brilhavam como duas estrelas, mesmo em plena luz do dia. Eram completamente amarelos, mas a luz que emitiam era quase branca de tão radiosos. Suas pernas vacilaram e Amélia tombou no chão, trêmula de pavor. Em contrapartida, Aline também encarava aqueles dois olhos, mas nem se importava.
Os olhos passaram dela para Aline. Em seguida desapareceram como a chama de uma vela sendo apagada por um sopro. Repentinamente uma leve ventania passou por entre Amélia e Aline. A égua relinchou e começou a cavalgar na direção do vento, que seguia a estrada de ladrilhos de pedra.
– Aline, espere! — Amélia levantou-se e tentou acompanhar a égua.
Terminando de seguir aquela estranha estrada, viu-se surpresa ao parar em frente aos portões da fazenda de seu avô. Ao olhar para trás, a estrada de ladrilhos de pedra já havia desaparecido.
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