Despedida
O dia não passou de conversas animadas por parte de Edmur e de Ellesh. Paolo se manteve calado a conversa inteira. Amélia ficou encostada na mãe, que a abraçava e acarinhava protetoramente. Querendo ou não, ela estava abalada pelo fato de nunca ter descoberto antes que seu avô não era quem dizia ser. E nem sua mãe... Entre todas as pessoas, justo ela...
Tudo fora perfeitamente articulado pelas suas costas.
Após Ellesh a matar no Submundo, seu espírito vagou pela terra em busca de corpos físicos para se apropriar. E foi assim, passando de vida em vida, até Elle estar pronto para recebê-la. Anteriormente, a ideia inicial poderia ter sido encontrá-la e falar-lhe todas as informações necessárias sobre si mesma, sobre sua origem, toda a história. Mas quando descobriram que a reencarnação caiu justo na neta de Edmur, ele deve ter pedido ao melhor amigo para privarem-na do máximo de sofrimento possível, contando apenas o que ela precisava realmente saber e deixasse-na fora do plano. Mas Ellesh não só não se importou com o pedido de Edmur como queria que ela se envolvesse além do pensado.
As palavras ditas por Elle no sonho ainda rodeavam sua cabeça. Elas tinham um significado, mas não sabia qual. Se ele codificou essa mensagem, devia ter alguma forma de saber qual era a chave para decifrá-la. Alguma hora iria achá-la.
Depois de um dia que se passou arrastando para Amélia, a noite caiu e a garota finalmente pôde ir para a cama. Apesar de estar aliviada por estar sozinha em um quarto, os pensamentos em sua mente estavam perturbados demais para acreditar no que tinha acontecido naquele dia... Ou no anterior... No anterior do anterior... Ou em qualquer outro dia de sua vida. Estava perturbada demais para dormir.
Por isso, quando Ellesh entrou no quarto sem bater à porta ou pedir licença, ainda estava acordada. Eles eram os únicos acordados. Os demais roncavam nos outros quartos.
— Você está bem?
— Você não era "do mal" até algum tempo atrás? — Amélia perguntou estranhando a preocupação do bruxo.
— Eu não sou do mal. — Ellesh riu. — Apenas tenho alguns conceitos diferentes de outras pessoas.
— Você tortura demônios e pessoas inocentes. — Amélia o encarou seriamente.
— Como ficou sabendo disso? — Ellesh se sentou ao lado da garota, que ainda estava deitada.
— Eu vi sua sala de tortura enquanto você me levava para a saída do submundo.
— Demônios merecem ser torturados e as pessoas que torturo também. — Ellesh justificou como se fosse uma causa óbvia.
— Fazer isso não torna você melhor do que eles.
— E quem disse que quero ser melhor? Faço isso porque gosto.
— Isso é ser mau.
— Mas eles não podem se machucar de verdade.
— Isso ainda é ser mau. Isso é cruel. Faz eles sofrerem.
— Se me desse a chance de mostrar a experiência, talvez também achasse divertido. –— Ellesh sorriu.
— Não, obrigada! — Riu. — Nada no mundo me convenceria disso. Por que não gosta de que eu chame você de mau?
— Porque não existe como dizer se alguém é mau ou bom. É isso o que você não queria entender e ainda parece não querer. Não somos capazes de delimitar com firmeza o certo e o errado. Tudo isso são eles que escolhem por nós, o que devemos fazer ou não. Mas não vou agora e nem nunca fazer a vontade deles.
— Quem são "eles"? — Amélia enfim sentou, cada vez mais inerte na conversa.
— O mundo. Todos adoram apontar o dedo para você e dizer o que você é, o que deve fazer... Sendo que não enxergam a si mes mos. Todos nós somos propícios à maldade. Alguns apenas são mais resistentes a ela que outros.
— Mas dizendo isso você ainda está julgando as pessoas.
— Não estou. Eu não disse quem é o que. Cada um sabe o que é. E eu sei que não sou mau, porque meu objetivo não é ir contra ninguém. Não é ferir ninguém. Mas também sei que não sou bom, porque já feri e já fui contra.
— Então o que você é?
— Eu sou eu e apenas eu. Você mesmo disse que não acredita em vilões e mocinhos, mas sim em escolhas. Eu sou as minhas escolhas. Elas dizem o que penso, e se sou mau ou bom, nem eu e nenhum outro ser pode dizer. Então pare de enxergar por um ângulo só, como se o certo e o errado fossem coisas totalmente certas e definidas, porque elas realmente não são. A escolha que lhe parece mais certa pode ser a mais errada e vice-versa.
— O que isso tem a ver com o fato de torturar demônios? — Amélia insistiu.
— Eu machuco demônios, mas é só isso que faço ou já fiz? Não. Eu também matei. Eu matei você. Eu também tenho um melhor amigo por quem eu morreria de novo se fosse preciso. E também estou aqui, desarmado, conversando com você pacificamente, correndo o risco de que você queira vingança. Mas... Você é a Julgadora Suprema, então me diga: por que eu deveria acreditar que torturar os meus demônios e servos é errado?
— Sofrimento não é legal de nenhum jeito. Feito com o ser de outra raça ou não. Sentimentos são sentimentos, eles se apavoram com você. Eles sofrem por sua causa e isso é errado.
— Você não fez quase a mesma coisa com o Fernando? — Ellesh a encarou no fundo da alma e sorriu satisfeito por ter chegado ao ponto almejado.
— Não! Isso... Isso foi diferente! — Amélia tentou inutilmente argumentar.
— Mas por quê? Você apenas fez isso porque queria descontar sua raiva, tristeza e mágoa em alguém para poder se sentir melhor. E isso funcionou, porque você está realmente melhor agora. E permita-me dizer que você foi cruel, não porque Fernando é o meu filho, mas porque isso é um fato, segundo as coisas apontam. Agora me diga, Guardiã, o que é mais certo: magoar de forma "cruel" uma pessoa que estava tentando ajudar e que se importa muito com você ou torturar outras criaturas por puro prazer?
— Eu... Eu...
— Como eu disse, não existe o mais certo ou o mais errado. Foi por isso que tive que seguir o plano de Lúcifer e matá-la. Você não conseguia me entender e era justo quem eu mais precisava que entendesse. Você era tão teimosa e egocêntrica quanto Lúcifer, sempre achando que tinha o direito de dar a última palavra. Achei que reencarnando, teria a chance de mudá-la, mas quando chegou a hora certa para isso... Você nasceu do sangue de Edmur e ele não permitiu que o fizesse. Mas eu fiz mesmo assim, porque preciso de você ao meu lado. E parece que... Você mudou um pouco... Ou então que nem é mais a mesma pessoa. — Estreitou os olhos de forma curiosa.
— Como ficou sabendo do que fiz a Fernando? — Amélia tentou desviar do assunto, sentindo-se completamente desconfortável.
— Eu tenho a capacidade de ler mentes. Eu realmente não sei o porquê. Geralmente a resposta que ouço é: "seus poderes são muito acima do normal!". Mas eu nunca consegui saber se é realmente por isso ou porque sou um Raça Mista apto à magia mística e acabei desenvolvendo outros tipos de poderes também.
— Você é o que? — Amélia tentou lembrar o que aquilo significava. Ela sabia o que era...
— Raça Mista, na Dimensão 82, é alguém que tem no sangue antepassados de mais de uma espécie. No caso, eu nasci da mistura de uma ninfa com um bruxo. Ser apto à magia mística significa que sou um bruxo, apesar de não ter a miscigenação comum que origina um. Existe uma teoria que diz que os bruxos são todos Raças Mistas e "bruxo" não é uma espécie, e sim uma "definição social", já que eles se põem acima das outras espécies e não se definem na base genética, mas na aptidão mágica.
— Nossa! — Amélia ficou encantada ao ouvir um pouco sobre aquele mundo mágico. Ela tinha lembranças de já ter ouvido falar de algumas coisas, mas mesmo assim, ouvir sobre não deixava de ser incrível. — Eu queria ter telepatia...
— Você provavelmente também tem, só precisa praticar. Mas, vai por mim, não é tão bom assim.
— Eu não faço ideia de como praticar. Nem telecinese ou qualquer outro poder que eu possa ter.
— Bom... Não vá pensando que é simples. Leva anos para conseguir experiência e habilidade minimamente considerável. Nesse caso, você vai precisar de um mentor.
— E onde eu arranjaria um "mentor"?
Ellesh a encarou sem dizer nada como se a resposta fosse absurdamente óbvia.
— Ah, não, Ellesh! Você?! — Exclamou quando a ficha caiu.
— Por que não?
— Você não parece ser nenhum pouco paciente para ser "mentor". Além do mais, eu quase nunca entendo nada do que você diz.
— Por quê?
— Tipo... O que você me disse no sonho, para mim tem um significado. Mas eu não sei qual.
— Você é esperta. Vai entender.
— Por que não me diz o que queria dizer?
— Por mais que eu tenha ganhado parte da minha autonomia de volta, não é seguro eu falar demais.
— Mas...
— Quando entender você entenderá.
— Melhor frase que já escutei na vida! — Amélia começou a rir.
— Em qual delas? — Brincou.
— Talvez em todas elas. — A garota refletiu por um instante. Não conseguia acreditar que a pessoa com quem conversava animadamente naquele instante poderia ser, algum dia, seu inimigo mortal. Ele não se parecia nada com qualquer tipo de vilão que conhecesse. Por mais psicopata, estranho e debochado que ele parecesse. — Escute, quero que me responda uma coisa, Ellesh: eu posso confiar em você?
O bruxo abaixou a cabeça. Juntou as mãos, entrelaçando os dedos, encarando-as por alguns segundos com uma expressão de reflexão e finalmente respondeu:
— Não e você sabe disso. E também sabe que é inevitável que um dia iremos nos enfrentar. Você vai tentar impedir a mim e a Lúcifer de conquistar a vitória do plano.
— Mas você disse que seria meu mentor...
— Sim. E irei ser o melhor mentor que qualquer aluno já teve, porque quero que você vença quando esse dia chegar.
— Isso está no seu plano, por um acaso? – Sem resposta. Observou-o levantar a cabeça novamente e encará-la com seu semblante ilegível. Lembrou-se do que Ellesh dissera. Havia o plano dele e de Lúcifer... E havia o plano apenas dele. — Mais um exemplo de como você não faz sentido algum.
— Tudo tem sua hora.
— Cansei de esperar as horas.
— Haverá o dia que elas esperarão por você.
— O quê? — Mais uma pergunta não respondida. — Ok, você deu dois exemplos em tempo recorde.
Ellesh riu.
— Encontrar as respostas é uma questão de tempo. Agora difícil é saber o que fará depois de tê-las.
— Você deveria ser filósofo. — Amélia debochou, mas com respeito.
— Obrigado.
— Mas só que todos os filósofos que conheci eram barbudos e tinham cabelo enrolado. Você tem cara de bebê e cabelo tão liso que parece que usou um ferro de passar roupa na cabeça.
— Cara de bebê?! Como você ousa?! — Os olhos cor de avelã arregalaram e a boca escancarou. Ele estava verdadeiramente ofendido.
— Sim, você se parece com os caras da minha sala no Ensino Médio. Só que sem as espinhas e um porte físico melhor. E... Não é tão irritante.
— Apesar de eu achar isso muito ofensivo, acabou me dando uma ideia. — Abriu um sorriso cheio de orgulho próprio.
— Por que eu sinto que isso deveria me preocupar? — Amélia se arrependeu de suas palavras.
— Não se preocupe, vai dar tudo certo! Minhas ideias sempre são ótimas.
— Tão ótimas quanto o dia em que você transformou o ovo de galinha da professora em um ovo de dragão? — A silhueta de um homem esguio e de grande estatura apareceu na porta. A voz para a garota era irreconhecível, enquanto que para o bruxo era inconfundível. Apesar da escuridão, Amélia conseguiu ver o homem nitidamente. Ele tinha um corpo bem magro e uma cabeça um pouco... Avantajada. Ainda mais pela cabeleira de cachos negros que tinha. Seus olhos alegres eram verde esmeralda, uma cor intensa e chamativa, mas sua pele clara abafava um pouco o destaque. Em seu rosto não havia resquícios de barba, apesar de suas feições serem de um adulto. Podia parecer um pouco mais velho do que era quando comparado a Ellesh, que tinha feições um pouco mais infantis.
— Edmur! Há quanto tempo está ouvindo? — Ellesh se levantou da cama e foi até o amigo
— Tempo o suficiente para me lembrar que você é um completo maluco. — Revirou os olhos. — Podemos conversar um pouco lá fora?
— Claro.
Essa foi a penúltima vez que Amélia conversou com Ellesh antes de sua partida. Depois disso, durante a manhã, ficou um bom tempo conversando com seus avôs. Perguntou ao avô como ele se transformara em outra pessoa. Edmur explicou que sempre utilizava um feitiço de disfarce que o deixava com a aparência e a voz de um idoso. Era um feitiço bem simples, mas existiam outros feitiços de aparência mais complexos usados apenas para operações policiais e das Guardas Reais e a Imperial. Apesar de simples, era bem perigoso, pois precisava ser lançado em si mesmo. Só tinha conseguido fazer aquilo porque já praticava desde criança. Amélia insistiu para ver a aparência real do avô mais uma vez, mas este o negou dizendo que era perigoso fazer tal coisa durante o dia.
Depois do café da manhã, começaram a arrumar as malas, conferir se não haviam deixado algo largado e outras coisas que todos fazem antes de partir de algum lugar do qual viaja. Quando concluíram que recolheram tudo, colocaram as coisas no carro. Nisso, felizmente estava perto do horário de almoço e com um pouco de insistência da avó, ficaram para a última refeição.
Depois do almoço, os pais de Amélia ajudaram a retirar a mesa e lavar a louça enquanto a garota ficava sentada na sala junto com Ellesh. Aproveitou para conversar com ele uma última vez.
— Vai ser estranho demais se eu começar a chamar você de tio? — Perguntou sem saber que tipo de resposta esperar.
— Se você não quiser praticar alguma espécie de incesto com o Fernando, não recomendo. — Ellesh riu e Amélia gargalhou.
— Você acha que ele vai me perdoar algum dia?
— O Nando ama você. Quando ele começar a sentir sua falta, vai voltar atrás e acabar perdoando.
— Espero que sim.
— Aliás, por que tio?
— Sei lá, você é o melhor amigo do meu avô. Faz sentido.
— Não faz não.
— Agora você sabe como me sinto.
— Hahaha, que engraçado.
— Ei, você pode me mandar um beijo para os irmãos por mim?
— Posso.
— Vai mandar mesmo? — Estreitou os olhos.
— Mas é claro. — Outra vez não conseguiu identificar se ele falava sério, mas duvidava.
— Obrigada.
Depois disso, estenderam a conversa para mais algumas frases.
Minutos mais tarde, Amélia já estava dentro do carro botando a cabeça para fora da janela e acenando um "tchau" com a mão para os avôs e para Ellesh, que estavam na varanda da casa observando o carro se afastar cada vez mais.
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