Boas vindas
Enfim chegou a hora de apresentar Amélia e concluir a missão.
Notando o nervosismo da garota, Fernando tomou iniciativa e pegou na mão de Amélia para confortá-la. O sorriso que recebeu como resposta fê-lo não se importar com o olhar de reprovação de Diana.
Caminharam em total silêncio pela estrada mágica de hexágonos, que dessa vez os levaria até a estrada do poço, a passagem para o plano espiritual.
Pouco antes de irem, explicaram à Amélia sobre o plano existencial, um único e gigantesco plano que comportava todas as coisas existentes, sendo a existência, por sua vez, composta pela junção do espaço e do tempo. O plano existencial era dividido em outros dois planos: o plano físico e o plano espiritual.
O plano físico, também conhecido como mundo dos vivos, era composto por todas as dimensões onde habitam os seres vivos mortais. Já no plano espiritual, era onde ficavam os seres mortos ou sobrenaturais em geral.
O primeiro, como já dito, era composto por vários universos diferentes. Já o segundo, era muito mais vasto e complexo. Na regra geral, o plano espiritual era dividido em três: Céu, Submundo e Inferno. Existia apenas um Céu, onde estavam todos os seres divinos. Mas existiam vários Submundos e Infernos, sendo que cada um correspondia a uma dimensão do mundo dos vivos. Segundo o que sabiam, estando em um Inferno ou Submundo, você não poderia "acessar" outro. Ou seja, você não poderia pular de Submundo para Submundo ou de Inferno para Inferno.
Existiam algumas exceções à regra geral. Nem todas as dimensões possuíam um Inferno ou um Submundo correspondente.
No caso da Dimensão 82, por exemplo, não existia um Inferno, mas sim o Tártaro, onde ficavam aprisionados seres extremamente poderosos capazes de destruir o Universo caso fossem libertados. O Tártaro era uma prisão infinita localizada no Submundo, um lugar protegido e administrado por Hades. Na Dimensão 82, caso um ser poderoso tivesse sido cruel em vida, ele seria encaminhado para o Submundo e submetido às ordens de Hades, tornando-se um demônio e sendo condenado a ajudá-lo a cuidar do Tártaro pelo resto da eternidade. Mas caso fosse perigosamente poderoso, ele iria parar em uma das celas do Tártaro. Se ele tivesse sido bom, iria para o Céu e se tornaria um anjo. Caso tivesse levado uma vida neutra, poderia escolher seu destino.
Enquanto Amélia tentava se distrair com essas novas informações fazendo-se mais questionamentos, durante a caminhada até o poço, os demais também tinham seus próprios pensamentos e preocupações.
Leonard pensava no que faria se Ellesh não estivesse disposto a cumprir sua parte do acordo após receber a vida de volta. Estremecia só de pensar na resposta.
Luan estava imaginando o que aconteceria após tudo acabar. Quando Ellesh voltasse à vida e tirasse a maldição. Será que iria cada um para um lado ou ficariam todos juntos? Amélia com certeza não poderia ficar com eles. Ela tinha a vida dela fora dali. Tinha que terminar a escola, fazer faculdade e arrumar um emprego. Nisso, teria conhecido novas pessoas, arranjado um namorado, casado e tido filhos. O que com certeza deixaria Fernando um tanto quanto abalado. Porém, era nítido que isso não preocupava Nando, pois ele nem estava pensando nessa possibilidade. Estava pensando em como tudo seria melhor quando tivesse sua forma humana de volta. Com todo o dinheiro que a família tinha, seria fácil arrumar identidades falsas e poderia fazer uma faculdade, tornar-se alguém na vida e poderia apresentar-se aos pais de Amélia e os dois seriam um casal feliz.
Já Diana seguia as mesmas preocupações de Luan. Talvez não conviesse a Ellesh tirar a maldição e isso os levaria a se separarem por motivos óbvios. Quando ela se concretizasse, ninguém mais seria o mesmo. Tornar-se-iam criaturas solitárias e sombrias carregadas de ódio e pavor.
Bianca estava dividida, assim como Gabriel. Os dois estavam confusos e sem saber o que esperar. Não sabiam se podiam confiar ou desconfiar de seu próprio pai ou se ao menos tinham alguma opção. Mas de uma coisa sabiam: não iriam desistir, o que quer que acontecesse. Estariam ao lado de Amélia qualquer que fosse o problema. Por algum motivo, ela lhes atiçava um ar de liderança. Um ar motivador. Com ela, sentiam que eram capazes de suportar qualquer problema.
Com esses pensamentos, passaram pelo amontoado de folhas e caíram na estrada de tijolos. Diminuíram o ritmo, como se não estivessem com a menor pressa de chegar até o poço e quanto mais demorasse melhor.
Amélia se lembrava muito bem da última vez que esteve ali e não conseguia esquecer das mesmas sensações que sentia agora. Nenhum animal, um mísero inseto, era visto ou escutado. Tudo era tão silencioso quanto um deserto, mas com a diferença de que o deserto tinha mais vida. Mesmo ali sendo cheio de plantas e árvores, formando uma mata fechada e escura nos limites da estrada, pareciam estar todas mortas. Suas colorações eram apagadas, tristes. As diversas tonalidades de verde eram revestidas por suaves camadas cinzentas. Para piorar, elas não se moviam um centímetro. O vento não soprava. Até o ar estava morto.
Em meio a esse silêncio profundo, um grito pavoroso acelerou o coração de todos. Primeiramente, tudo que viram foi um vulto saindo de entre as árvores e então indo para cima de Amélia, caindo em cima da garota. Ela e o vulto desabaram no chão.
O vulto era um garoto de pele clara, olhos azuis claros e cabelo de um castanho liso quase loiro. Ele colocou as mãos em seus ombros, sacudiu-a e disse o mais depressa que pôde:
— Não confie nas palavras, mas confie nele!
Infelizmente não conseguiu dizer mais nada. Muita coisa aconteceu em um curto espaço de tempo e ninguém pôde presenciar tudo aos detalhes. Diferentemente do restante dos irmãos, Diana e Leo não puderam ver o perfil do vulto que avançou em Amélia, pois suas atenções se voltaram para Fernando.
Assim que o rapazinho surgiu, seus olhos tomaram um brilho diferente do habitual. Um mais selvagem e louco, como uma fera atormentada pela fome. Seus dedos curvaram, seu rosto enfezou e sua boca escancarou. Sua imagem deixou Leonard e Diana paralisados, sem poderem fazer nada. Era tão assustadora... Nem pareciam estar olhando para a mesma pessoa quieta e protetora.
A fera pulou sobre o rapaz e abocanhou-o no pescoço, rugindo e grunhindo como um urso. Ou talvez como um leão ou um tigre. Ninguém sabia dizer exatamente que som grotesco era aquele.
Quem não presenciou a transformação bisonha de Nando, presenciou o seu ataque, que foi o caso de Amélia. Viu o garoto por quem se apaixonou abocanhar o rapaz pelo pescoço e lançá-lo longe. Depois, rápido e ágil feito um guepardo, Fernando correu até ele andando de quatro como um cachorro. Segurou-o com uma mão pelo pescoço e fugiu numa velocidade que, nem se quisessem, os outros poderiam alcançar.
— Aquele era... — Gabriel foi o primeiro a dizer alguma coisa quando Fernando desapareceu arrastando o rapazinho.
— Arthur... — Bianca completou.
— Quê?! Aquele era o Arthur?! — Leonard exclamou, parecendo levemente assustado.
— Quem é Arthur? — Amélia perguntou enquanto levantava do chão.
— O filho do Monroe. — Diana respondeu, simplesmente.
— Ele estava preso no Inferno... Como ele... — Luan tentou colocar toda a sua incredulidade em palavras.
— Ele tinha algo a dizer, então acho que precisamos nos apressar! — Amélia, sem mais avisos, disparou na estrada. Correu o mais rápido que suas pernas permitiam.
Após algum tempo de correria, o cheiro inconfundível de carne apodrecida penetrou em suas narinas. Ao chegar próximo ao poço, Amélia parou e arriscou olhar em seu interior. Continuava tendo apenas o mesmo abismo escuro e infinito que avistara antes.
— Agora pulamos aí dentro. — Leonard explicou.
— O que...? — Amélia o encarou com um olhar hesitante, imaginando a profundidade daquele buraco.
— Não se preocupe, é seguro.
A garota deu de ombros, sentou-se na borda do poço, passou as duas pernas para dentro e lançou o corpo sem pensar. Esse último o fazendo de olhos fechados. Caía em uma velocidade absurda e ela aumentava a cada segundo. Sentia-se como se estivesse em uma montanha-russa. O vento esvoaçava os cabelos e o frio na barriga arrancava gritos incessantes. O medo dominou Amélia por um instante, mas logo recuperou parte da confiança ao sentir um braço envolvendo sua cintura protetoramente. O mesmo braço que lhe envolveu naquela manhã e lembrou-a de que não estava sozinha.
Amélia teve coragem de abrir os olhos, apesar de não fazer muita diferença. Tudo em volta não passava de um espaço escuro e infinito. Não podia avistar ninguém, mas sabia que todos estavam caindo juntos e quem a segurava era Leonard, que lhe disse:
— Está tudo bem, não tem perigo.
E ele tinha razão. Provavelmente por meio de alguma magia, aconteceu algo inesperado. Como se estivessem em um enorme elevador invisível e aterrorizante, aos poucos, foram diminuindo a velocidade da queda. Diminuía e diminuía cada vez mais até caírem lentamente, sentirem-se quase flutuando e finalmente pararem, firmando os pés em algo sólido.
À frente deles, apareceu uma passagem circular, muito parecida com o poço, mas como se ele estivesse tombado. Seguindo por ela, saíram em um grande salão lotado pela multidão mais horrenda que Amélia já vira em sua curta vida como garota humana. O cheiro daquele lugar era muito parecido com o que sentiu em seu sonho com Ellesh: de podridão, solidão e pavor.
Quando notaram suas presenças, a multidão de criaturas, espíritos e demônios separou-se em duas, abrindo caminho. No fim do enorme corredor formado, estava Ellesh. Logo ao seu lado, estava Fernando com Arthur jogado aos seus... Tornozelos. De frente para os três, havia mais um homem que a garota não conseguiu identificar de imediato por estar de costas. O estranho era alto, ultrapassando Leonard em alguns centímetros, e vestia uma roupa social muito elegante.
Leo fez sinal para Amélia seguir em frente.
Enquanto passavam, cada uma daquelas criaturas bizarras os encarava atentamente. Amélia não conseguia entender o que os fazia ficar tão atentos.
Enquanto caminhava, observou o ambiente. O lugar parecia muito o palácio de um castelo, porém bem mais sombrio, como um daqueles castelos abandonados constantemente usados como cenário de filmes de terror. Era inteiramente feito de blocos de pedra enormes, de um cinza escuro. Várias colunas sustentavam o teto, o qual, em seu centro, era formado por uma horripilante abóbada de pedra decorada por símbolos e desenhos deveras esquisitos.
Não havia nada naquele lugar além de uma espécie de palco onde estavam Ellesh, Fernando, Arthur e o homem misterioso no fim do estreito corredor formado pelas criaturas. Para ir até eles, após atravessarem todos os monstros, subiram uma pequena escadaria de seis degraus.
Finalmente estavam frente a frente com o bruxo. Naquele instante, tudo poderia acontecer.
— Amélia! Como é maravilhoso vê-la pessoalmente! — Ellesh, com um sorriso simpático, se aproximou da menina e segurou cuidadosamente seu rosto delicado com uma mão. Observou-a com atenção, olhando-a no fundo dos olhos.
— Queria poder dizer o mesmo. — Abriu um sorriso forçado e arrancou a mão que a tocava.
— Continua a mesma garota de personalidade. Gostei. — Disse o homem elegante.
Amélia, até aquele instante, não tinha lhe dado atenção. Quando o olhou, teve duas primeiras impressões. Primeiramente, aquele era o homem mais belo que já vira na vida. Segundamente, comparado a todas as criaturas da enorme plateia, ele era infinitamente mais macabro e horrendo. Não sabia exatamente de onde surgiu a segunda, mas todo o seu ser exalava um ar sombrio e tenebroso. Talvez fossem seus olhos. O brilho que emitiam expressava puro orgulho e ódio, apesar da presença do sorriso dócil em seu rosto de feições amáveis. De algum jeito, já sabia quem ele era. Não acreditava ser por causa das impressões, apesar de serem muitas. Não fez uma dedução, ela simplesmente sabia.
— Não esperava encontrar você aqui. — O tom que Amélia usava era calmo, porém firme. A presença de Lúcifer não a alterou de forma alguma, apenas a incentivou a ficar alerta e manter-se impassível.
— Nem eu esperava ainda estar aqui quando chegassem, mas é bom revê-la, Guardiã.
Ele me chamou de Guardiã? Amélia pensou e dispersou-se por um instante, mas logo se recompôs e decidiu ignorá-lo. Voltou novamente sua atenção ao bruxo.
— Estou aqui. Por que não andamos logo com isso?
— Por que a pressa? Antes de tudo, gostaria de ter uma conversa com a senhorita, em particular. — Ellesh sorriu sem mostrar os dentes. Suas feições e gestos meigos estavam impregnados com cinismo.
— Sabia que a coisa que mais me irrita no mundo é falsidade? — Enfrentou-o, olhando no fundo dos grandes olhos avelã. Uma raiva esquisita subiu à cabeça. Alguma coisa neles estava causando um ódio profundo. Um ódio que vinha de algum lugar em si...
— Você realmente não mudou nada. — O sorriso do bruxo murchou e transformou-se na mais pura inexpressividade. Seus olhos tinham uma estranha falta de brilho... — Por favor, acompanhe-me. Quanto aos outros, esperem aqui. Não façam nada com Arthur até que eu volte.
— Amélia, ele vai mentir... — Arthur tentou avisar, mas foi interrompido por um chute de Lúcifer bem no estômago, dado com todo o prazer.
Frustrada, Amélia disse, fitando o bruxo com revolta e seriedade:
— Vou seguir você apenas se eu puder ouvir o que Arthur tem a dizer!
— Muito bem. — Ellesh suspirou profundamente e olhou para seu aliado, esperando uma confirmação. Lúcifer assentiu e indicou à garota para aproximar-se do rapaz estirado no chão.
Amélia agachou-se ao seu lado e escutou-o com atenção.
— Não confie nas palavras... Mas confie nele. Sempre tem um pouco de verdade por trás. A verdade e a mentira se misturam. Aprenda a separar as duas.
— Vou lembrar disso. — Amélia sorriu para... Para o garoto que tinha a impressão de... — Nós já nos conhecemos?
— Talvez em outra vida. — Arthur devolveu o sorriso.
Amélia, confusa, levantou-se. Para voltar à realidade, sua primeira ação foi olhar para Fernando. Ele ainda estava com um brilho selvagem nos olhos e encarava Ellesh como um animal esperando a ordem do dono. Perguntou-se onde estava a pérola que haviam lhe falado. Deu uma olhada discreta por todos os lados e não encontrou nada suspeito até ver o bruxo colocar uma mão sobre o peito e ordenar:
— Desperte, Fernando.
Nando se recuperou na mesma hora e começou a olhar para todos os lados, completamente perdido.
Amélia observou o pescoço de Ellesh com mais atenção. Estava adornado por uma corrente muito discreta, quase ocultada pela gola da camisa social que usava por baixo do casaco longo. O pingente estava escondido por dentro da camisa. Provavelmente era a pérola.
— Podemos ir agora, Amélia? — Ellesh perguntou educadamente.
— Claro.
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