Capítulo 21 - Correndo no escuro
olá lindxs,
mais um capítulo fresquinho pra vcs. espero que gostem.
bjokas e até a próxima att.
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Capítulo 21 – Correndo no escuro
Isaac parecia alucinado, com sua montaria galopando pela escuridão. Os galhos lhe dilaceravam o rosto, ao forçar Trovão através dos arbustos, e o ferimento do ombro queimava de dor. No entanto a única coisa que importava agora era o medo terrível em seu íntimo.
O primeiro traje do chão, de sua gente, vestido em dez anos, pendia dele como um farrapo lamacento, constituindo apenas um estorvo. As luzes brilhantes da estalagem, a maravilhosa promessa de vinho e canção que o abalara apenas momentos antes, pareciam-lhe uma alucinação. Aquilo era real... a escuridão, a chuva, o terror de que, em algum ponto daquela floresta noturna, o lobo negro estivesse em perigo mortal.
Reduziu subitamente o galope de Trovão ao ver algo à frente: duas sombras mais negras contra a escuridão. Freou a montaria. Os dois cavalos do caçador estavam atados a uma árvore em uma clareira, de costas viradas para o vento. A chuva começava a diminuir, melhorando a visibilidade, mas não havia sinais do caçador. Isaac fez o cavalo avançar, cautelosamente, e então desmontou.
Um lobo uivou nas proximidades. Isaac virou a cabeça bruscamente e perscrutou em vão a escuridão. Não! Corra! Corra! Quis gritar, mesmo sabendo que seria pior. O lobo era seu guardião à noite, como o falcão o guardava de dia. Ele não iria embora. Entretanto o caçador de lobos reconhecera seu nome e então Isaac soube, com terrível certeza, o que ele fora incumbido de fazer ali. Como sabia que aquela noite terminaria apenas de uma forma.
Enfiando a mão nos alforjes de Elazar, ele pegou sua adaga. Com a arma apertada firmemente na mão, Isaac embrenhou-se na floresta. Tinha certeza de que o caçador não podia ter ido muito longe. Não houve tempo e, por outro lado, também tinha certeza de que ele o esperava. Um galho morto estalou sob seu peso.
Ele parou, gelado. Não houve nenhum som em resposta, apenas o suave ruído da água, gotejando das folhas. Amaldiçoou silenciosamente seus anos de boa vida, ele precisava da rapidez e perícia do soldado treinado que ele tinha sido, quando começou a avançar novamente. Aprendeu com seu pai a montar e caçar a lutar como qualquer um do clã, apesar de ser um ômega... porém ele nunca teve de caçar à noite.
Ficou imóvel outra vez, de repente vislumbrando o contorno espectral de outra figura, bem à frente. O caçador estava agachado em uma pequena clareira e erguia a cabeça, vigiando à sua volta, como um animal desconfiado. Isaac conteve a respiração. Contudo, ele apenas tornou a ficar imóvel, por outro interminável momento, antes de levantar-se e desaparecer na escuridão.
Isaac deslizou através da clareira e passou junto ao lugar onde o homem esteve agachado. Seu pé roçou a borda da pesada armadilha de aço que ele montou e escondeu... e ele seguiu em frente, sem suspeitar, embrenhando-se por entre as árvores.
O homem sempre caçava à noite e tinha os sentidos aguçados como os de um lobo. Ouviu Isaac passar por seu esconderijo e, saindo de trás de uma árvore, apanhou uma pedra silenciosamente.
O shifter tornou a parar, ouvindo, naquele silêncio gotejante e espectral. E, em algum ponto da floresta, o lobo negro parou também para ouvir e farejar o ar. O vapor esguichou de suas narinas, enovelando-se no ar frio e úmido.
O caçador atirou a pedra. Ela caiu na armadilha atrás de Isaac, fechando as mandíbulas com ruído metálico. O ômega girou, aterrorizado, erguendo a adaga. Perscrutou a escuridão. Silêncio.
Apenas silêncio.
O lobo negro empinou as orelhas. Virando-se, trotou na direção daquele som.
O caçador atirou outra pedra. Mais uma armadilha se fechou com estrondo. Isaac olhou para trás, ofegando. Silêncio. – Apareça! – gritou ele. Silêncio. – Covarde! – bradou.
Agachado entre os arbustos, o caçador esperava, com impiedosa paciência. Outra armadilha se fechou barulhentamente e um lobo uivou angustiado. O coração de Isaac comprimiu-se; ele permaneceu imóvel, paralisado pela agonia do próprio terror. Mesmo sabendo que aquele não era seu lobo. Ele saberia.
O caçador saltou de seu esconderijo e correu para a armadilha. Um enorme lobo jazia morto no artefato metálico, esmagado entre queixadas de aço que tinham sido montadas para capturar um urso. O homem sorriu, com feroz satisfação. Libertou o corpo do lobo e o puxou da boca da armadilha, que em seguida tornou a montar, com mãos experientes. Começou a levantar-se.
Algo rosnou diretamente atrás dele. O caçador se virou, apertando os olhos. Um enorme lobo negro estava parado, vigiando-o, com os pelos do pescoço inteiramente arrepiados. O lobo tornou a rosnar, mostrando as presas.
O caçador deu meia-volta, pronto para fugir dali. De repente, Isaac estava à sua frente, com os olhos escuros de vingança, bloqueando seu caminho. Estirando o joelho, ele lhe deu uma rasteira e o homem caiu de costas nos dentes arreganhados da armadilha à espera. As duas queixadas de aço se uniram com forte estrondo metálico, sufocando seu grito de horror.
Isaac permaneceu onde estava, ofegante e exausto. O lobo o fitou por um longo momento, com insondáveis olhos ambarinos, antes de dar meia-volta e embrenhar-se na floresta. Atrás dele ouvia-se o ruído espalhafatoso de alguém que vinha desordenadamente por entre as árvores. Isaac se virou, sem se preocupar, e viu Filipe emergir da floresta às suas costas, com a espada de Elazar nas mãos. Ele estacou, fitando-o com aterrada incredulidade.
Isaac caminhou em direção ao lobo morto, silenciosamente. Passou ao lado do corpo do caçador, preso na armadilha, e então tropeçou de repente, quando algo segurou com força seu tornozelo. Olhou para baixo e gritou, porque a mão ensanguentada do homem a apertava em redor da perna, em um torno mortal. Ele ergueu a cabeça, os lábios arreganhados para trás, em um rosnado desafiante. Seu rosto tombou para diante outra vez e a mão deslizou do pé que segurava. Isaac ficou paralisado; por um longo momento era incapaz de mover-se e seu corpo trêmulo estava inteiramente sem forças.
Filipe também ficou parado, plantado no mesmo lugar, horrorizado ao ir compreendendo tudo o que tinha acontecido ali. – Não é ele – disse Isaac, apaticamente, quando Filipe olhou para o lobo.
Embora isso não importasse, ele percebeu que a chuva tinha cessado. Uma pequena meia lua piscava entre as nuvens. Isaac fitou o lobo morto sem dizer uma palavra. Não podia identificar sua cor, mas tinha sido um belo animal. A armadilha lhe destruíra a beleza, a inteligência, a vida... inexoravelmente.
Depois fitou o caçador morto, o mal abatido pela própria ferramenta, em justa retribuição. Tornou a contemplar o lobo; caminhou até ele e ergueu seu corpo desconjuntado o mais delicadamente que pôde, ignorando a própria dor. Seus olhos se encheram de lágrimas, que não caíram.
Filipe aproximou-se de Isaac, com ar inquisitivo e incerto, enquanto observava o lobo e depois ele.
– Eu desejaria que fosse ele – disse Isaac, em voz sem entonação. – Assim estaríamos livres. – Olhou para o rapaz, claramente o incluindo em sua suposta libertação.
– Não está falando sério, senhor – protestou Filipe, suavemente. – Ninguém pode desejar a morte do amor.
O shifter o encarou, observou suas feições de menino, seus olhos cheios de uma certa ingenuidade esperada em pessoas que não são muito certas da cabeça, encarando-o com tão absoluta certeza. Chegou a acreditar, uma vez... Sorriu com amargura, baixando o olhar. – É mesmo? – disse. – E o que você sabe do amor? – Virando-se, puxou o corpo do lobo para a base de uma árvore. Tinha sido cruel, mas realista.
– Acredito que eu não entenda nada de amor – murmurou Filipe, atrás dele. – Eu nunca... amei ninguém. Tenho...sonhos, é claro – disse, melancólico – mas nunca vivi esses sonhos.
Isaac ergueu os olhos para ele. – Então, você é um homem de sorte.
Ajoelhando-se, ele deixou o corpo do lobo debaixo da árvore. Procurou pedras entre as folhas, a fim de fazer uma espécie de sepultura; empilhou-as em movimentos bruscos e desesperados, sentindo a raiva impotente que se acumulava em seu íntimo como um trem descarrilhado.
– Pois eu vivi o sonho e desejei a morte de meu companheiro. Desejei que ambos morrêssemos. Diga-lhe isso – falou, em voz trêmula, recordando os dez últimos anos de morto-vivo, o pesar, a angústia e a raiva que guardou por tanto tempo, envolvendo-o subitamente. – Diga a ele que amaldiçoo o dia em que senti a conexão de companheiros entre nós. Diga a ele que, de fato, nunca o amei. Diga a ele... – Ergueu a cabeça e seus olhos encontraram os de Filipe.
De repente, sentiu-os inundados de lágrimas e, dando vazão à sua dor, exclamou – Oh, como ele pode continuar assim, dia após dia, sofrendo uma agonia tão grande como a minha... e ainda pensar que existe uma solução!
Filipe começou a piscar repetidamente, os olhos também cheios de lágrimas. Suas mãos tremeram, como se lutasse para mantê-las caídas ao lado do corpo. Por fim, em uma voz tão débil que ela mal pôde ouvir, murmurou – Ele... te ama!
Isaac tomou uma funda e trêmula respiração. Ergueu-se lentamente, enxugando o rosto. Assentiu de leve, com um sorriso de embaraço e de profunda gratidão por aquelas palavras. Era como se Elazar em pessoa as houvesse pronunciado, e elas lhe tocaram a alma profundamente. . . Isaac vivera tanto tempo sem sua outra metade que a dúvida e o medo apertavam-lhe a garganta como serpentes, envenenado seu coração; ele nunca ousara libertá-las em voz alta, por assim dizer, porque nunca tinha havido ninguém para respondê-las, para negá-las, até agora. Em dez anos, não disse uma dúzia de palavras significativas a outro ser humano, até Filipe aparecer em suas vidas...
Em Valperga tentaram levar vidas "normais". Como se fosse normal um viver de dia e outro só à noite. Até adotou um rapaz para suprir sua necessidade de dar e receber amor. E de um certo modo, conseguiu. Não era a mesma coisa de ter seu companheiro com ele em carne e osso, mas impediu que enlouquecesse.
Sacudiu a cabeça quando o passado se levantou incontrolavelmente dentro dele. Aprendeu a suportar o silêncio, como aprendera a suportar o resto, todas as coisas que, a princípio, julgara insuportáveis. Em Valperga deixava mensagens para Elazar, e ele também, assim como fotos nos dispositivos de comunicação móveis. Contudo, aqui no chão à medida que o tempo passava, cada vez havia menos e menos a partilhar, mesmo dessa maneira, até que por fim restara apenas sofrimento e as notas cessaram. Mesmo o pouco tempo fora da cidade flutuante, após tanta dor...
– Sim, de fato é uma tolice – murmurou ele. – Mas... cada noite, quando acordo, espero vê-lo. Sei que ele não estará ali, mas de alguma forma... – Fechou os olhos, suspirando. – Posso sentir as pontas de seus dedos, aninhadas atrás de minha orelha... descendo, assim. – Ele ergueu a mão tocando o rosto de Filipe – Desenhando o contorno de meu queixo... tocando meus lábios...provocando um sorriso...depois cobrindo-me com um beijo...
Isaac parou de falar e tornou a abrir os olhos. Os de Filipe permaneciam fixos em seu rosto, brilhando com lágrimas. – O senhor viveu o sonho — disse ele. — E voltará a vivê-lo... se existe um Deus Único no céu! Ou uma Deusa na Lua. Eu só gostaria de saber onde eu me encaixo. – As últimas palavras foram murmuradas.
Filipe crispou os punhos como se pudesse concretizar aquelas palavras, apenas por acreditar nelas. Isaac estendeu a mão e tocou-lhe o rosto, verificando que era real.
– Você é o nosso companheiro e se encaixa perfeitamente em nossos braços – disse, em voz suave – prometa que não nos deixará! – "Nossa dádiva de esperança", pensou ele.
Filipe estremeceu ligeiramente àquele toque, como um animalzinho amedrontado. – Eu. . . pedi ao Alfa que não confiasse tanto em mim, compreenda – disse ele, cabisbaixo. Olhou de novo para Isaac, com seu falso pesar. – Há dez anos, prometi a minha mãe que voltaria em algum momento. – A mentira fluía sem arrependimento... ou simplesmente Filipe acreditasse em mais uma fantasia. – Está cada vez mais difícil ficar. Meu corpo quer o toque de seus companheiros. Está cada vez mais fácil quebrar. – Suspirou.
Isaac deixou a mão cair, e um sorriso tristonho mostrou que compreendeu. Tentou aceitar a ideia de que Filipe, talvez, não quisesse ficar, de que na noite seguinte talvez acordasse sozinho, de novo. O próprio fato de tê-lo a seu lado, aquela noite, já era um milagre.
– Por que a Deusa Lua nos traria um segundo companheiro se tivéssemos que continuar sofrendo? – Virou o rosto, sentindo baixar de novo todo o peso de sua carga sobre os ombros sofridos. – Dez anos sem nenhuma mudança e agora você está aqui. Deve ter sido esse fato que fez com que Elazar tivesse esperança de quebrar essa maldição.
– Não se preocupe, senhor — disse Filipe, em voz estremecida. — Afinal... de que outra maneira eu poderia viver o sonho?
Isaac ergueu os olhos para ele. Viu as lágrimas que, sem a menor vergonha, escorriam agora pelo rosto de Filipe, e então, de repente, suas próprias lágrimas começaram a cair novamente. Ele sorriu, Isaac sorriu também, estendendo os braços. Os dois ficaram apertadamente abraçados por longos momentos, porque haviam permanecido muito tempo sozinhos.
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