Capítulo 4
"Uma ótima culinária pode ser um peru cozido,
uma lagosta cozida no último minuto, uma salada
colhida no jardim e temperada no último minuto."
Paul Bocuse, chef de cuisine francês
O tempo passa rápido quando seus dias são repletos de afazeres prazerosos.
Completara um mês que Flora trabalhava na mansão sem nunca ter cruzado com a madame. Seguia estritamente as regras ditadas pela governanta e sua área de locomoção se reduzia à cozinha, à ala dos funcionários e ao caminho até o portão de entrada.
Nesse período, nenhum evento social aconteceu. O mar, entretanto, nem sempre é calmaria. Um grande desafio se apresenta naquela manhã fria de inverno, quando Stella entra na cozinha para dar um aviso importante.
— Bom dia, Flora! Vamos ter um grande evento em breve. A madame fará aniversário na próxima semana e vai recepcionar alguns amigos com um jantar temático. Um público seleto de "apenas" cem pessoas.
— Cem pessoas, Stella?!!! Como vamos atender a tanta gente com a equipe que temos?
— Você será a responsável pela preparação do jantar temático. A madame escolheu a cozinha italiana para essa data e quer pratos com os sabores requintados da Itália. Você terá várias auxiliares para lhe ajudar.
— E quando será a recepção, Stella?
— Na próxima semana, no sábado. Será uma grande prova para você, estou ciente, mas confio na sua capacidade.
— Agradeço sua confiança, Stella, mas não posso negar que estou apreensiva.
— Vai dar tudo certo, tenho certeza. Estou acostumada a organizar eventos, marcados em cima da hora, aqui na mansão.
— Vou começar a pensar no cardápio agora mesmo. O tempo urge.
— Ah, Flora! Preciso que saiba que o filho da madame, senhor Paulo Henrique, virá ao Brasil para a comemoração do aniversário da mãe. Vai chegar com antecedência, provavelmente na quarta e ainda não me informou por quantos dias será sua estadia. Há meses ele não vem ao Brasil.
— E o que você tem para me adiantar a respeito dessa visita?
— A madame sempre oferece um jantar de boas-vindas ao filho e convida alguns amigos do senhor Paulo Henrique para o evento. Cerca de dez pessoas, não mais do que isso. Ele não tem restrições alimentares, portanto vou deixar o menu por sua conta. Use a criatividade.
Isso demandaria ainda mais trabalho para ela e para Stella.
Flora, imediatamente, pega sua agenda e começa a fazer anotações importantes como a quantidade e a variedade de pratos a serem preparados, o menu escolhido para atender ao tema, os auxiliares que precisará e como fará a distribuição das tarefas.
Precisaria servir duas entradas, três pratos principais, várias guarnições com diferentes tipos de pães, molhos e queijos, três sobremesas, além de licores e petit four (1) para acompanhar o café.
Cora Mirtes não conhecia Flora nem pelo nome; pois Stella sempre mencionava para a madame apenas o seu cargo: a cozinheira.
* * * * *
No dia seguinte, Stella já está em contato com uma famosa empresa organizadora de festas que disponibilizará manobristas, garçons, maitres, bartenders, músicos, auxiliares de cozinha e de limpeza. Uma grande quantidade de pessoas que também terá que se alimentar na mansão durante dois dias e Flora será a responsável por todas as refeições.
Seria um tempo curto para tanto trabalho. Flora montou uma planilha com um cronograma para cinco dias antes do evento e sentia-se confiante com o teste desafiador. O mesmo não poderia ser dito de Stella que parecia estar com os nervos em frangalhos e uma aparência bem cansada.
Três dias antecedem o evento e, com o cardápio escolhido, Flora começa a adiantar o que é possível. Muita coisa terá que ser preparada no dia da festa. A equipe extra de auxiliares chegará na véspera para limpeza e higienização dos cristais, porcelanas e pratarias a serem utilizadas no jantar. Maura também se mostra preocupada com o aspecto de Stella que parece muito pálida e com enormes olheiras. Mesmo assim, não há queixumes ou procrastinação por parte da governanta, que age como um general em meio à guerra comandando seu exército. Seu foco principal está nos preparativos para a chegada do senhor Paulo Henrique no final do dia e no jantar de boas-vindas para um grupo pequeno de amigos.
No meio da tarde, a casa entra em polvorosa com o desmaio de Stella em frente à madame. Os seguranças prestam os primeiros socorros e uma ambulância é chamada. A governanta sofrera um ataque cardíaco e ao chegar no hospital, é internada na UTI. O médico da família Luterno de Moraes é chamado para atender a madame que está traumatizada com o ocorrido e que é medicada com um ansiolítico.
O doutor vai ao encontro de Flora e dos funcionários mais antigos da casa para explicar o que havia sucedido com a Stella.
— A dona Stella teve um problema cardíaco e seu quadro é grave. Com certeza, não é algo acidental. As mulheres têm mais tolerância à dor, o que causa um mascaramento dos sinais do infarto. Em vez de dores, é mais comum que sintam tonturas, enjoos, fadiga e arritmia. Os sintomas duraram mais tempo também, ou seja, o infarto pode ocorrer um dia antes.
Flora se manifesta.
— Todos nós notamos que Stella não estava bem, mas ela não queria admitir e estava com excesso de trabalho. Estamos todos às voltas com um grande evento nesta semana e nem poderemos estar com ela. Isso é muito triste.
— Suas preces serão de muita serventia. Dona Stella foi para a Unidade de Tratamento Intensivo e não receberá visitas, avisa o médico.
A substituição de Stella é a maior preocupação de todos. Ela não se recuperaria a tempo de cuidar do evento agendado, além de ser a única a se relacionar pessoalmente com a madame. Ainda havia o jantar desta noite para comemorar a chegada do filho. Depois de meia hora de conversas, chegam à conclusão de que Flora é a melhor pessoa para atuar no cargo de governanta em caráter excepcional.
Flora acredita que nada acontece por acaso e acalma sua ansiedade para poder finalizar o preparo do jantar, enquanto a senhora Cora Mirtes está dopada pelo medicamento. Maura e outra auxiliar de limpeza são escaladas para dar apoio na cozinha.
Miranda, a assistente pessoal da madame, é incumbida de receber o senhor Paulo Henrique, colocá-lo a par do ocorrido e solicitar as orientações dele para tudo o que havia sido programado.
No início da noite, Hamilton estaciona o carro nos jardins em frente a mansão trazendo o único herdeiro dos Luterno de Moraes. Durante o transcurso do aeroporto até a mansão, o motorista havia informado ao patrão sobre os acontecimentos e Paulo Henrique entra na casa com o semblante de preocupação. Ele vai direto ao quarto da mãe para verificar seu estado. Cora Mirtes continua em sono profundo e o filho prefere não a incomodar. Conversa com a Miranda para saber os pormenores e solicita que o jantar daquela noite seja cancelado. Miranda prontamente contata os convidados para avisar do ocorrido. Apenas Beto, pai da Carola, insiste em comparecer para dar apoio ao amigo PH. A assistente também informa ao patrão sobre a pessoa que substituirá Stella interinamente e Flora é chamada ao escritório para conversar com ele.
Ao ser avisada do encontro, Flora vai ao banheiro para se refrescar e dar uma ajeitada no cabelo, que estava preso na touca, antes de se dirigir ao escritório. Não há tempo de trocar o uniforme que, surpreendentemente, está limpo depois de tanto tempo cozinhando. O espelho reflete o cansaço em seu rosto, consequência de todo o ocorrido naquela tarde. Ela aplica um brilho leve nos lábios e aperta suas bochechas para dar um ar mais saudável. Antes de entrar no escritório, respira profundamente três vezes para equilibrar suas emoções. Dá uma leve batida na porta e seu coração perde o ritmo quando esta é aberta. À sua frente está um homem extremamente bonito e nada simpático. Com cerca de um metro e noventa de altura distribuído por um corpo magro e musculoso, cabelos loiro-escuros e olhos cor de avelã, que a avaliam descaradamente da cabeça aos pés, o patrão a deixa sem fôlego e intimidada.
Ele nada diz; apenas estende os braços de forma a convidá-la a entrar. Flora adentra o local que ainda não conhecia e sente que o olhar do homem continua a avaliando pelas costas. O escritório é amplo e luxuosamente decorado como todo o restante da casa.
Flora ouve a porta se fechando e os passos que se encaminham para a enorme mesa de mogno. Antes de sentar-se, sinaliza para que ela o faça primeiro. Um sinal de cavalheirismo.
— Boa noite. Seu nome é Flora Campos, correto?
— Sim. Prazer em conhecê-lo senhor Luterno de Moraes.
— Pode me chamar de Paulo Henrique ou PH. Não gosto de formalidades.
Flora o observa, enquanto o patrão examina o papel em suas mãos que parece ser seu currículo. Ninguém havia comentado sobre as características pessoais do patrão e ela foi pega de surpresa com essa série de atributos físicos e comportamentais que mostram toda sua masculinidade. Sem dúvida, um macho alpha.
— Obviamente, você não está preparada para substituir a Stella. Seu histórico indica apenas conhecimentos de cozinheira. Vou acatar a decisão das pessoas que a conhecem melhor para ocupar a função esta noite. Miranda terá a missão de encontrar alguém mais capacitada para começar imediatamente. Stella pode demorar para retornar à ativa.
— Compreendo perfeitamente, senhor Paulo Henrique. Estarei à disposição para ajudar e atuar com eficiência, enquanto não chegar a nova governanta.
Flora sente o olhar daquele homem a escrutinar como se quisesse ler sua mente.
— Estou realmente intrigado com a sua contratação. Você não tem o perfil esperado para ocupar uma posição no quadro de serviçais da mansão. Conte-me um pouco sobre sua entrevista com Stella.
Flora estava com a testa franzida em virtude da forma utilizada pelo homem ao se referir os funcionários. Serviçais? Em que século ele vive? Aquelas elocubrações mentais a fizeram atrasar a sua resposta.
— A senhorita entendeu a minha pergunta?
— Sim, desculpe minha demora em responder. Apenas refletia sobre suas palavras. Eu fui indicada pela agência de empregos contratada por Stella que, segundo me informaram, já havia enviado cinco pessoas para a vaga e nenhuma ficou mais de uma semana. Tenho certeza de que o meu desempenho agrada à senhora Cora Mirtes ou eu não estaria mais aqui.
— Percebo que a senhorita tem a língua afiada.
— Minha intenção é esclarecer os fatos, senhor Paulo Henrique. Já ouvi insinuações sobre as minhas características físicas não estarem no padrão exigido pela proprietária da mansão, porém o senhor fez questão de deixar isso muito claro. Ainda não tive a oportunidade de me encontrar pessoalmente com a senhora sua mãe e creio que essa estratégia de me manter afastada dela foi pensada por Stella. Parece que deu certo até o momento, pois meus dotes culinários foram aprovados, independente da minha etnia e das minhas raízes.
— Está nos acusando de sermos preconceituosos?
— Algumas pessoas de posse, com sobrenomes famosos, que ocupam posições de poder ou têm títulos de nobreza, tendem a enxergar os migrantes de regiões mais pobres do país como inferiores e desqualificados. Uma crença totalmente infundada, a qual remete às perseguições amplamente registradas pela história, supondo erroneamente que a biologia selecione os melhores membros da raça humana. Sou mestiça, mas tenho estudo, profissão e orgulho-me de minhas origens e de tudo o que consegui até hoje, com esforço próprio, muita luta e sacrifícios. Fiquei órfã muito cedo e fui criada por minha avó materna que era de ascendência indígena, dotada de uma sabedoria milenar sobre a natureza, as ervas e os temperos. Não tinha formação escolar alguma, era analfabeta, mas inteligente e astuta para lutar por sua sobrevivência e a minha, desde que meus pais faleceram. Meu pai era descendente de alemães que vieram para o Brasil na época da segunda guerra. Dele herdei minha altura, meus olhos esverdeados e alguns traços do meu rosto. Fiquei muito feliz com a oportunidade de trabalhar nesta casa e tenho feito meu serviço com esmero e profissionalismo. O resumo que está em suas mãos indica a minha formação escolar, os cursos que fiz, os idiomas que aprendi e os lugares que trabalhei. Tenho certeza de que o senhor conhece ou até já frequentou alguns desses estabelecimentos. No entanto, como mencionei há um mês para a entrevistadora da agência de empregos, não posso mudar meus atributos físicos e nem minha história de vida.
Ao terminar seu breve discurso, Flora percebe um brilho diferente no olhar daquele homem, embora seu rosto permanecesse carrancudo e sua resposta foi reduzida a uma única palavra.
— Interessante!
O silêncio entre ambos segue por alguns minutos. Flora pensa em levantar e deixar a sala, mas ele se manifesta após fazer um ruído, limpando algo em sua garganta.
— A situação do momento é grave e não tenho muitas alternativas. Como lhe disse, acatarei a sugestão de Miranda, Mister Thomas e Hamilton, que são pessoas de minha confiança, dando-lhe a responsabilidade de gerenciar a mansão temporariamente. Como estenderei minha estada no Brasil para além do que planejava, terei a oportunidade de avaliar sua competência. Apesar de pedir o cancelamento do jantar desta noite, meu amigo Beto decidiu vir me visitar. Serão só nós dois à mesa. Se a senhora Cora Mirtes acordar, algo adequado deverá ser servido para ela no quarto. No momento de ir servi-la, acompanharei a senhorita para poder controlar o temperamento de minha mãe e evitar outro baque. Espero que tenha tudo pronto para nos atender.
— Já tenho tudo sob controle e vou me empenhar em ajudá-lo durante o tempo que necessitar de meus serviços. Depois que as coisas se acalmarem, poderemos rever minha contratação. Se o senhor me permitir, vou sair para providenciar o que ainda tenho a fazer.
— Está dispensada.
Flora se levanta para deixar o local. Ao abrir a porta, a voz às suas costas a surpreende.
— Agradeço sua colaboração, senhorita. Espero não ter lhe causado uma má impressão.
Flora sai sem responder. Ela nem mesmo se virou para olhá-lo mais uma vez. Sua mente fervilhava com as palavras ditas pelo patrão e seu coração oscilava entre o sentimento de indignação e de empatia.
Referências do capítulo:
(1) Petit four é uma massa pequena e doce ou salgados da pastelaria clássica na culinária francesa. O nome é francês e petit four significa forno pequeno
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