Capítulo 1
"Você nunca sabe a força que tem
até que a sua única alternativa é ser forte."
Johnny Depp, ator
Alguns anos depois...
São Paulo, Capital
Floralice aguarda, pacientemente, sua vez de ser chamada para a entrevista. Essa agência de empregos foi muito bem recomendada por sua amiga Joyce e há uma vaga de cozinheira para uma casa de família, cujo salário é muito bom. Mais que bom, é excelente. Se ela conseguir a vaga, ganhará mais que o dobro do que recebe no atual emprego. Ainda terá moradia gratuita, o que a fará economizar com aluguel, luz, água e alimentação. Assim, terá condições de realizar seu sonho de fazer um curso superior em nutrição.
Há mais sete candidatas na sala, mas Floralice não sabe se elas estão concorrendo para a mesma vaga. O local é pequeno e, apesar de todas estarem sentadas próximas umas das outras, não há conversas. Os rostos demonstram uma certa angústia devido à expectativa de ser a escolhida para a oportunidade que se apresenta. Floralice se mantém tranquila, sem se deixar afetar pela demora da espera. Sabe que tem condições de conseguir aquele cargo, mas se não for o seu destino, ela continuará a buscar algo melhor. Seu sonho de cursar o ensino superior irá se realizar, cedo ou tarde. Desistir não é uma alternativa.
Enquanto aguarda ser chamada, o silêncio a faz relembrar sua vida e tudo o que aconteceu com ela até a data atual.
Sua fuga da fazenda, separando-se de sua avó, que era toda a sua família, aventurando-se pelas estradas do país com um casal de caminhoneiros desconhecidos, que a deixaram em uma cidadezinha bucólica do interior do Estado de Minas Gerais chamada Ponte Nova.
Na casa onde foi hospedada, moravam um casal e seus dois filhos, Diego, com seis anos e Douglas, com quase a mesma idade que ela. O senhor Sebastião e sua esposa, dona Vera, a receberam com carinho e leram a carta que foi endereçada a eles por Dona Margarida. Ela passou a ser a filha que o casal sempre desejou.
Flora, como eles passaram a lhe chamar, viveu com eles durante quatro anos. Estudou em bons colégios, fez cursos de idiomas, aulas de computação e aprendeu muito sobre culinária, pois, naquela época, já sabia que queria ser nutricionista. Tinha planos até para uma especialização em gastronomia.
Tudo teria sido perfeito, se sua avó não tivesse falecido inesperadamente, de enfarte. Flora nunca havia ouvido Dona Senhorinha comentar que tinha problemas cardíacos. O fato dela ter partido sem que Flora pudesse se despedir de forma apropriada, mantinha um aperto constante no seu coração. Sua avó se foi sem que ela pudesse saber o motivo da sua fuga. Algumas vezes, nesses anos que esteve em Minas Gerais, conversou por telefone com Dona Margarida, mas, se ela sabia de algo, nunca mencionou. Flora pensava em retornar algum dia àquele local onde nasceu, para tentar descobrir o que tanto amedrontou sua avó a ponto de armar uma fuga para a neta.
Outra situação que deixava Flora incomodada era o insistente assédio de Douglas. Conforme o tempo foi passando e eles foram ficando mais velhos, mais audacioso o rapaz se tornou. Várias vezes a encurralou em corredores da casa, tentando beijá-la e esfregando sua virilidade em seu corpo. Flora não comentava os acontecimentos com o casal que a tratava com tanto amor, para não os aborrecer, visto que Douglas já era uma dor de cabeça constante para os pais.
Quando completou dezoito anos, o senhor Sebastião e dona Vera fizeram questão de comemorar o aniversário da menina, que eles adotaram como filha, com uma festa na residência deles. Foram convidados muitos amigos da família. A festa terminou de madrugada e Douglas estava visivelmente embriagado.
Quando Flora já estava em sua cama, quase pegando no sono, Douglas entrou sorrateiramente no seu quarto e deitou-se sobre ela, prendendo-a com seu corpo e tapando sua boca com uma das mãos para que não gritasse.
Com a outra mão, ele começou a despi-la, bolinando-a e dizendo obscenidades em seus ouvidos. Flora estava apavorada, quase sem ar e sua reação instintiva foi morder com toda força a mão de Douglas. Isso o fez gritar de dor, começar a xingá-la e a bater nela. Os sons chamaram a atenção de Diego, que entrou no quarto e começou a socar o irmão. Em questão de minutos, o senhor Sebastião e dona Vera também acordaram e foram averiguar o que acontecia, deparando-se com a cena grotesca de dois irmãos se agredindo e Flora, aos prantos, pedindo para que eles parassem.
Toda a felicidade do dia de comemoração foi jogada no lixo. Diego explicou para seus pais o motivo da briga e Douglas foi expulso de casa.
Depois desse dia, nada mais foi o mesmo. Douglas, sem a proteção e controle dos pais, além da bebida, enveredou pelos caminhos da droga. Flora confessara aos seus protetores que sofria assédio há tempos e, apesar de ter todo o apoio dessa família que a acolheu com tanto carinho, ela se sentia responsável por cada lágrima de tristeza derramada pelos pais adotivos.
Quase um ano após o ocorrido, Douglas foi parar em uma clínica de reabilitação e Flora percebeu que era hora de tomar outro rumo. Fez pesquisas e conseguiu um emprego como auxiliar de cozinha em um restaurante em São Paulo. O senhor Sebastião insistiu em pagar uma faculdade para ela e ajudá-la com a despesas até ela ter um emprego melhor, mas Flora não aceitou. Ela tinha consciência dos gastos que esse senhor teria com a internação do filho. Já haviam feito muito por ela e sua gratidão a eles seria eterna. Mesmo assim, na dolorosa despedida de sua família adotiva, Flora recebeu uma caixa embrulhada em papel de presente, com um laço de fita vermelho e um bilhete em forma de coração escrito: "Seja feliz, da mesma forma que nos trouxe tanta felicidade todos esses anos. Leve consigo todo o nosso amor. Seus pais, Sebastião e Vera". Ela prometeu que abriria o presente somente quando estivesse instalada no seu novo destino.
Foi assim que, no mês de completar seus dezenove anos, Flora desembarcou na rodoviária do Tietê, em uma manhã bem fria na capital do Estado de São Paulo.
Havia feito reserva em uma modesta, mas bem recomendada pensão para mulheres no centro da cidade, próxima a uma estação de metrô. O restaurante, onde iria trabalhar, ficava a poucas quadras distante dali. Ela poderia ir a pé e economizar com condução.
O quarto em que foi instalada era bem simples. Tinha uma cama de solteiro, um criado-mudo com uma gaveta e um pequeno armário de duas portas. Na janela, que dava para uma avenida movimentada e barulhenta, havia uma cortina estampada com flores e pássaros. O banheiro era comunitário e ficava no corredor, no mesmo andar do seu quarto. Flora arrumou seus pertences no armário e pegou a caixa de presente. Ao abri-la, encontrou uma corrente de ouro com um pingente com a imagem de Nossa Senhora Aparecida e um envelope contendo um valor equivalente a três meses de salário do emprego que conseguiu. Havia uma recomendação para abrir uma conta num banco para depositar o dinheiro e não correr risco de ser roubada.
Flora chorou. Suas lágrimas banhavam seu lindo rosto e seus soluços balançavam seu corpo. Havia um misto de sentimentos em seu coração: saudade, ansiedade, medo e, também, excitação pelo novo. Passou o olhar pelo quarto. Nada ali podia se comparar com o conforto que tinha seu cantinho em Minas Gerais e nem com toda precariedade da sua casa na fazenda no Centro-Oeste. Ela já havia experimentado os extremos e, agora, encontrava o equilíbrio. Pegou a corrente com o pingente e colocou no pescoço. Ela a usaria sempre para ter a proteção da santa e a lembrança dos pais junto consigo. Cessou seu choro e foi até a janela. A agitação e grandeza daquela cidade podia ser definida em uma só palavra: progresso.
Em seu primeiro dia no emprego, Flora fez amizade com Joyce, a cozinheira chef, uma mulher de cerca de quarenta anos, baixinha, gordinha e com um bom humor de fazer inveja. Até hoje essa amizade se mantém. Joyce foi quem apresentou a cidade para Flora, quem a inspirou a aperfeiçoar seus dotes culinários, quem a incentivou a voar mais alto. Nesses cinco anos vivendo em São Paulo, Flora conseguiu progredir bastante e, atualmente, já era a cozinheira principal de um famoso bistrô. Contudo, o salário ainda era muito baixo. Ela não podia almejar uma posição melhor, porque não tinha curso superior. O ótimo salário mais os benefícios foram os únicos motivos que a levaram a enviar um currículo para essa vaga de cozinheira doméstica.
Flora Interrompe o fluxo de suas lembranças quando ouve um barulho. Uma porta se abre e a atendente chama por Floralice dos Campos. Chegara a sua vez.
Flora é encaminhada para outra sala, onde uma mulher, muito bem-vestida e com os cabelos loiros presos em um coque artisticamente arrumado, está sentada a uma mesa, digitando no teclado do computador. Sem ao menos olhar para a candidata, pede que ela se sente na cadeira à sua frente. A entrevistadora pega uma pasta e abre, retirando um papel com anotações. Depois se vira para Floralice, analisando-a por alguns segundos.
— Bom dia. Meu nome é Lúcia. Floralice dos Campos, é seu nome, correto?
— Bom dia. Sim, sou Floralice, mas pode me chamar de Flora.
— Ótimo. Recebi e analisei seu currículo e vejo que você está capacitada para ocupar a vaga de cozinheira, pois tem bastante experiência. Entretanto, estou em dúvida se você poderá se encaixar no cargo, devido algumas características do seu perfil que não se enquadram na descrição do cargo.
— Dona Lúcia, asseguro que sei cozinhar muito bem e já trabalhei como cozinheira em vários restaurantes, alguns bem renomados. Quais são essas características que impedem a minha contratação?
— Tenho certeza, Flora, que você está qualificada para qualquer outro posto na cozinha. Entretanto, essa oportunidade que tenho é bem diferenciada. A dona Stella, que é a pessoa que está cuidando da contratação, faz uma série de exigências, pois, segundo ela, sua patroa é uma socialite com gostos sofisticados, acostumada a tudo que o dinheiro pode comprar de melhor. Ela é exigente e uma crítica severa. Não perdoa falhas. Além disso, pelo que pude averiguar, a senhora em questão é xenofóbica e racista. Ela exige que a contratada tenha nascido nas regiões Sudeste ou Sul, que seja clara e que tenha no mínimo o ensino fundamental completo. Ela tem um paladar requintado e está acostumada a oferecer jantares em sua residência para pessoas muito importantes e, portanto, não quer uma cozinheira que tenha hábitos alimentares muito diferentes, como os que encontramos em outras regiões do país.
— Dona Lúcia, não posso alterar meu lugar de nascimento e nem minhas características físicas, mas quanto aos meus dotes culinários, posso garantir que venho agradando a todos os paladares e que sei preparar todo tipo de refeição, das mais simples à mais sofisticada.
Flora tem ascendência indígena miscigenada com europeia. Da mãe vem asua pele, que tem uma cor morena-jambo(1) e seus cabelos meio cacheados. Do pai, que era filho de alemãs que vieram para o Brasil na época da Segunda Guerra Mundial, ela herdou a estatura alta e os olhos esverdeados.
— Estou muito inclinada a lhe oferecer a vaga.Como você já reside em São Paulo há alguns anos, podemos omitir seu local denascimento. Já enviamos cinco candidatas até o momento e nenhuma delas conseguiupermanecer mais de quinze dias nesse emprego. Você está disposta a tentar?
Referência do capítulo:
(1) Morena-jambo - tom de pele moreno meio avermelhado, semelhante à cor dos índios.
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