Opal
22 de maio de 2017
Quando chegamos em casa eu tinha a barriga e os joelhos enfaixados, dor por todo o corpo e um cansaço que exigia horas de sono. Gabriel não estava muito melhor. O lado menos glamuroso de salvar o dia. Salvar. Gostaria de poder compartilhar isso com meu pai. Mas eu não poderia, não é?
- Nosso pai morreu - não foi uma pergunta.
Gabriel parou o que estava fazendo no mesmo momento, virado de costas para mim, tentando pegar um pouco de água na geladeira e lutando para ficar de pé com ajuda das muletas que Anna deu a ele. Iddie e Egor também pararam de voar ao redor da sala. Silêncio.
Eu sabia que algo estava errado. A louça na cozinha estava do mesmo jeito que deixei, assim como os sapatos do meu pai, encostados no canto da sala e as chaves de casa, com seu chaveiro antigo em formato de gravata, jogadas na fruteira.
Gabriel se virou devagar, saindo da cozinha sem dizer uma palavra, ele colocou as muletas no canto e sentou-se no sofá, dando tapinhas no assento ao lado. Suspirei.
Anna me emprestou algumas roupas confortáveis e os anestésicos me deixaram com ainda mais sono, sabia que se sentasse no sofá não conseguiria levantar. Gabriel ligou a tv, o volume baixinho, jogando a cabeça para trás na direção do teto. Iddie e Egor ficaram na mesa do café, conversando sobre algo aos cochichos.
Algo estava muito errado. Eu não sabia ao certo o que estava sentindo. Não era bom. Mas eu me sentia fraca demais para lutar contra, então me sentei no sofá e ouvi meu irmão.
- Eu não queria que a morte dele afetasse sua decisão sobre o que fazer com a maluca - confessou baixinho, dando um longo e pesado suspiro.
- O que de tão ruim eu poderia fazer? Matá-la? - tentei brincar, minha voz falhando no final.
Estava entorpecida. Alucinando.
- Você ficou tão orgulhosa de si mesma por ter decidido poupar a vida dela - começou baixinho, passando a mão pelos meus cabelos, me puxando para um abraço de lado. - Eu não queria que você fizesse o mesmo que fez na Tentação e se sentisse culpada depois.
Engoli em seco, tentando segurar as lágrimas que se acumulavam nos cantos dos meus olhos. Inútil.
- Você se arrepende por não ter matado a Emilly?
- Eu - pensei na resposta, mirando a televisão, que já exibia o rosto de Emilly Diniz e Primazia lado a lado. - Não me arrependo, mas acho que teria batido no rosto dela com um pouquinho mais de força se soubesse.
Gabriel depositou um beijo no topo da minha cabeça, os dedos batendo no meu ombro.
- Eu teria agido de forma diferente que você - segredou e eu me lembrei de todos os contatos que Gabriel tinha, dispostos a pagarem muito por Primazia. - Mas achei que seria justo você terminar isso, já que foi você que começou.
- Como aconteceu? - perguntei com um ímpeto de coragem e insensatez, minha fala já embolada, os olhos lacrimejando.
- Ele se certificou de que todos estivessem fora da boate quando Primazia atacou, havia fumaça e estava escuro - parou de falar quando sua voz também começou a falhar. - Ele morreu como um herói.
Tentei ser forte. Eu teria tempo para chorar depois.
- E o que acontece agora?
Gabriel mexeu os ombros, sem saber como responder.
- A gente... - hesitou, pensativo. - Vamos chorar um pouco, jogar as cinzas dele em um lugar bacana, essas coisas. - Ele sempre quis levar a gente pra morar na praia - sorri com a lembrança.
Gabriel pigarreou, parecendo tão arrasado quanto eu.
- Vai ser só nós dois agora, Dal.
- Eu sei.
Ficamos em silêncio, ouvindo o som baixo que vinha da televisão, uma chuva caindo de algum lugar ao fundo. Iddie e Egor se aconchegaram entre nós e aos poucos adormecemos.
5 de junho de 2017
Quando alguém morre as pessoas costumam se perguntar: Por quê?
Em uma tarde na casa de Júnior, encontramos um filme para ver, seu nome era Café Com Amor. Nós nos deitamos em uma pilha de travesseiros, enquanto comíamos uma vasilha de pipoca doce e assistíamos o desenrolar da trama, que culminaria na morte de uma das personagens. Para mim esse filme responde o meu por quê.
- Por quê? - um personagem pergunta.
E Deus responde:
- Por que existe guerra? Por que pontes desabam? Por que aviões caem do céu? Por que estudantes massacram seus colegas? Por que bebês nascem viciados, sem nem ainda respirarem o ar e já são dependentes do crack? Por que existe pobreza? Doença? Indiferença?
- Eu não sei - interrompe exasperado o personagem. - Por quê?
O porquê.
12 de junho de 2017
- Dal!? - Iddie cantarolou no meu ouvido pela manhã, sua voz agradável e bem-humorada. - Como se sente?
- Meu pai morreu - repeti a mesma frase que dizia toda vez que acordava, como se precisasse dessas palavras para acreditar que tudo era real. - Mas está tudo bem, eu vou ficar bem... Com o tempo - sorri torto, mas sorri.
- Sabemos como é isso - Egor se simpatizou, gentil e santo, simplesmente Egor.
Sentei-me na ponta da cama, observando as paredes vermelhas e móveis pretos do meu novo quarto, decorado com fotos, desenhos e um aumento considerável de quadrinhos na estante. Calcei minhas pantufas e me dirigi para a cozinha, colocando a água do café para ferver.
- Bom dia, Dal - Gabriel gritou assim que chegou do seu trabalho na Catwalk, dessa vez entrando pela porta. - Você acredita que o novo porteiro ficou me encarando de novo?
- Deve estar encarando sua barba ridícula.
- Ou o chapéu - Iddie zombou, vindo sentar-se no meu ombro. - Coloca mais açúcar, vai ficar forte assim.
- Você nem sabe que gosto o café tem - resmunguei, colocando mais açúcar.
- Eu jamais beberia essa coisa! - Iddie argumentou.
- Você deveria começar a usar adoçante - Egor torceu a boca para a quantidade de açúcar que usei.
Coloquei na mesa as xícaras e o bule, sentando-me em uma das cadeiras. Sorri levemente, a vida tinha mudado, as cadeiras confortáveis, tão diferentes do banquinho, da cadeira de praia e da cadeira de uma antiga mesa, onde por tanto tempo nos sentamos. Eu gostava do apartamento que Gabriel tinha escolhido, soava como um novo começo.
- Aqui - Gabriel depositou uma caixinha no meio da mesa, sentando-se na cadeira em frente à minha, sua expressão relaxada, embora seu olho esquerdo estivesse um pouco roxo, provavelmente obtido em uma briga.
- Isso foi rápido - deixei a xícara de lado, abrindo a caixa e vendo meus brincos de maçã transformados em abotoaduras para as mangas do meu uniforme.
- Acho que agora ninguém mais vai ligar você a Jovem-Alma - Gabriel comentou distraído, colocando em cima da mesa uma seringa vazia.
- Uma seringa? - indaguei com ceticismo.
- Achei na Catwalk - Gabriel sorriu alegremente.
Iddie, Egor e eu ficamos em silêncio, observando temerosos Gabriel manusear a seringa, imitando os médicos da TV.
- Ele vai se matar - Iddie concluiu.
- É melhor irmos nos arrumar - me afastei de Gabriel e sua seringa suspeita. - As aulas voltam hoje.
- Alguém vai ver o namorado - Gabriel deu risadinhas como uma colegial bêbada. - Aproveite enquanto Júnior não saiu da escola! - gritou quando eu entrei no banheiro. - Dal! Ow, Dal, faça como eu e compre um diploma!
- Desculpa, eu estou tentando ser a pessoa responsável dessa casa - resmunguei indignada, resistindo a tentação.
- Está tomando a decisão certa - Egor me motivou.
A escola continuava tão chata quanto me lembrava, mas pelo menos Júnior e eu estávamos bem, mais do que bem, ele é minha alma gêmea. E houve essa surpresa, onde Rebeca, contra todas as possibilidades, realmente se tornou uma amiga. Uma que não era uma supervilã.
🍎🍎🍎
- Escutem, estou falando sério - disse entre risadas, quase me curvando sobre a mesa. - Eu me levantei de novo e disse - fiz uma pose dramática e abaixei a voz, tentando soar perigosa. - Catarina não precisava da melhor, só de alguém melhor que você - virei o copo de refrigerante de limão que Amanda havia deixado, batendo-o na mesa quando a mesa explodiu em exclamações impressionadas. - Primazia ficou sem palavras e eu aproveitei para atacar.
- Não me lembro disso acontecer assim - Iddie sorriu maldosa, circulando entre as pessoas sentadas conosco a procura de algo para fazer.
- Eu também não - Egor raciocinou. - Dal! Você está mentindo.
Balancei as mãos, espantando os dois para longe. Sorri ao ver minhas novas abotoaduras nos pulsos, pequenas maçãs douradas, presas na roupa da Jovem-Alma, não da Dalila.
- Minha irmãzinha derrotou sozinha a Maluca da Emilly - Bola Branca se gabou, jogando um braço em cima dos meus ombros, balançando ao acaso sua caneca de cerveja, em meio a ovação do seleto público da Catwalk. - Por isso estou oficialmente abrindo meu Treinamento de Heróis!
- E heroínas - acrescentei.
- E Heroínas! - Bola Branca brandiu, levantando sua cerveja para um brinde, sendo acompanhado por todos ao nosso redor, elogios e assobios junto da música ao fundo.
- Mantenha seus esquemas longe da minha boate, Bola Branca - Amanda desaprovou, trazendo uma nova rodada de bebidas para a mesa. - Jovem-Alma, parabéns pela vitória - sua voz saiu alegre, apesar de seu rosto permanecer sem expressões legíveis.
- Eu também ajudei! - Gabriel gritou para Amanda, que se distanciava. - Não ganho parabéns?
Amanda apenas saiu da mesa sem dizer uma palavra. É assim que eu quero ser quando crescer.
- Grosseiro - meu irmão murmurou. - Vamos embora? Está ficando tarde.
- Deixa ela mais um pouco - Sortido, um dos super-heróis que estavam com a gente, pediu.
- Eu sou o responsável legal agora - lembrou, a bebida afetando sua fala e inteligência, porque ninguém deveria saber disso. - Me espeta lá fora, vou pegar as chales.
Assenti antes que ele saísse, me despedindo das pessoas da mesa. Saí pela porta da frente, vendo Roni, novo segurança da Catwalk, me cumprimentar com um aceno. Era estranho não sair mais pela porta dos fundos da Catwalk, temendo que meu pai me reconhecesse.
Andei até o carro de Gabriel calmamente, tirando o capuz quando concluí que não havia ninguém me observando.
- Dal, é perigoso tirar a capa assim - Egor alertou. - Alguém pode estar te observando.
- E o que vão fazer? Derrotamos a Primazia, ninguém tem coragem de nos enfrentar agora - Iddie rebateu, dançando pelo ar cheia de animação.
- Ela acaba de te defender? - Egor indagou desacreditado.
- Ela tem feito isso ultimamente - encolhi os ombros, ainda que tivesse um sorriso nos lábios.
Inclinei a cabeça para o alto, observando as poucas estrelas presentes no céu. Sorri afetuosa, vendo Iddie e Egor voarem entre os postes de luz. Tudo estava se encaixando. Primazia foi presa, meu treinamento com Bola Branca iria continuar, Iddie não parecia mais me odiar, eu tinha uma nova possível amiga e reatei meu relacionamento.
O que poderia dar errado?
- Jovem-Alma? - uma voz feminina chamou.
Virei o rosto temerosa, sabendo que estava sem meu capuz. Encontrei a mesma agente que me abordou na Paulista. Ela tinha os braços cruzados e as pernas abertas como se estivesse se preparando para uma luta. Era mais baixa que eu, seus cabelos estavam presos em um coque baixo e ela tinha olhos escuros que me analisavam cuidadosamente.
- Sou Dina, agente da Divisão Quimera, estou aqui para recrutá-la.
Eu apenas me esqueci que Primazia ainda sabia minha identidade secreta.
Tudo.
FIM DO LIVRO I.
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