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Cameo

18 de maio de 2017

— Penas! — Iddie gritou durante mais um dia de treino.

— Flechas! — insisti, sentando-me em cima do palco da boate. — Isso não está funcionando.

  Fazia exatamente duas horas que Iddie e eu estávamos tentando projetar a energia de ataque dos meus poderes. Gabriel desistiu na primeira vez que começamos a gritar uma com a outra; Egor foi um pouco mais persistente e só desistiu de tentar ajudar quando gritamos com ele.

— Não faz sentido atacar alguém usando penas! Você já viu uma pena? São leves e moles! — balancei as mãos em um gesto exasperado, na tentativa de fazer Iddie entender que o que ela queria era absurdo.

— Magia não tem textura, uma pena tem o mesmo efeito de uma espada — defendeu-se, voando de um lado para o outro cheia de indignação.

— Mas visualmente não faz sentido nenhum! Quem vai ter medo de penas?

— Você está sendo bastante insensível com as pessoas que possuem ornitofobia.

— Escuta aqui sua...

— Já chega! — Gabriel interrompeu nossos gritos, saindo do canto onde me observava. — Preciso falar com você, Dal, agora — seu tom não estava brincalhão como o habitual e eu franzi o cenho, tentando adivinhar o que poderia ser.

— É sobre a capa que esqueci no Júnior? — disse em tom de brincadeira, andando na direção das mesas, onde Gabriel puxava duas cadeiras para nós.

— Que irresponsável — Iddie zombou.

— Você é uma irresponsável por não ter me lembrado.

— A capa ainda é sua, não minha!

— Meninas, por favor...

— Cala a boca, Egor — gritamos juntas, rindo baixinho quando Egor abriu e fechou a boca várias vezes.

  Iddie sorriu convencida, sentando-se no meu ombro. Eu tomei o cuidado de jogar meu cabelo para as costas para que não a incomodasse.

— Vamos falar sobre o Bowser! — Gabriel anunciou com um pouco mais de animação, passando os braços pelos meus ombros e acelerando minha caminhada até as mesas.

— Eu não entendo seus códigos esquisitos — choraminguei, escorando a cabeça em seu ombro.

— Entenderia se tivesse lido meu Guia de Introdução.

  Sentamos em uma das mesas com iluminação vermelha, uma pequena pilha de papéis repousando na frente de Gabriel. Amanda apareceu em seguida, trazendo uma garrafa de cerveja e um copo de refrigerante de limão, coberto por chantilly e decorado com um morango por cima.

— Não gosto de morangos — Gabriel resmungou indignado. — Acredite, morangos podem destruir famílias e relações.

— Não é para você — a empata bateu em sua nuca. — E toma logo sua cerveja, preciso de você nos fundos.

— Ela não manda em mim — Gabriel murmurou apenas para que eu pudesse ouvir, mas definitivamente começou a tomar a cerveja mais rápido. — Amanda pode ser um pouco assustadora, ela vai devorar sua alma se você deixar.

— Você queria falar alguma coisa comigo? — incentivei, ansiosa para ser liberada e continuar minha investigação sobre Rebeca ser ou não ser Primazia.

  Depois do show que Primazia deu na escola as aulas foram paradas por tempo indeterminado para reformas e investigações. Regina fez questão de preencher o tempo de Júnior com diversos cursos extracurriculares e Emilly estava ocupada tentando convencer pais desesperados de que a Futuros Caminhos ainda era uma boa instituição. Desde então eu passava os dias procurando por Primazia ou treinando na Catwalk. Gabriel vinha tentando fazer com que eu e Iddie nós entendêssemos o suficiente para usar sua projeção, mas é difícil ser um mediador quando você só pode ver metade das pessoas que está mediando.

  Pelo menos as coisas entre nós tinham melhorado depois da conversa que tive com Egor, então talvez logo mais conseguíssemos chegar a um consenso e finalmente destravássemos essa parte dos meus poderes.

— Ele pensa que temos o dia todo? — Iddie revirou seus pequenos olhos e eu fui obrigada a concordar.

— Certo — Gabriel consertou a postura, pegando os papéis da mesa. — Talvez eu devesse ter contado isso alguns dias atrás, para que vocês se preparassem melhor, mas não quis deixar nenhum de vocês ansiosos.

  Pigarreou em seguida, falando em seu tom adulto e responsável. Gabriel tinha o talento impressionante de conseguir parecer sério e profissional vestindo uma regata de time e com uma cerveja na mão. Seus ternos estavam todos na lavanderia de acordo com ele.

— Se ele engordar mais um pouco vai parecer o tio de alguém — Iddie comentou e eu soltei uma risadinha.

  Gabriel tirou uma das folhas do meio da pilha, colocando no centro da mesa uma foto minha e de Primazia no dia da luta do Brás. A foto estava tremida, parecia ter sido tirada de algum telhado próximo, mostrando apenas o terraço em que estávamos, um borrão preto sendo eu e a forma de Primazia dourada no centro, o cenário todo muito embaçado devido a fumaça e a chuva. É claro que alguém havia tirado uma foto.

  Por dentro eu estava surtando. Gabriel havia descoberto. Isso era ruim. Muito ruim. Tentei imaginar quais seriam as implicações disso para o futuro, Gabriel ficaria furioso? Ele voltaria a confiar em mim? Estava decepcionado?

— Nossa — ri nervosa, sem conseguir disfarçar minha surpresa. — Como ela pode ser fotogênica em uma situação dessas? — tomei todo o meu refrigerante em um gole, olhando para todos os lugares que não fossem meu irmão. — Será que Amanda pode me trazer mais um desses?

— Quando ia me contar? — Gabriel cortou minha divagação, seu tom de voz saindo estranho.

  Olhei para Gabriel em busca de entender o que ele estava sentindo nesse momento. Ele não parecia realmente bravo ou decepcionado, apenas seu eu normal, talvez um pouco mais ansioso, pela forma que batia o pé repetidas vezes no chão e não conseguia me encarar por muito tempo antes de mexer na papelada da mesa, checar o celular ou parecer apenas muito distraído com seus próprios pensamentos.

— Como soube disso?

— Estou na cola de Primazia desde o primeiro ataque, estive pesquisando mais Alines e Alices do que achei que seria possível, eu investiguei até o material dos ternos dos caras que trabalham pra ela, a saída dos explosivos, eu fiz teorias sobre os lugares, eu namorei uma professora por respostas — fez uma pausa para respirar, apontando um dedo para mim sem acreditar que tinha que me explicar tudo isso. — Achou mesmo que eu não iria descobrir?

— Achei — sorri culpada, levantando as mãos em trégua.

— Se você não pudesse ter morrido eu estaria orgulhoso pela atitude, mas não nesse caso! Você roubou o meu carro — houve um certo tom de raiva nessa última frase, Gabriel até enxugou uma falsa lágrima. — Tenho um felizmente e um infelizmente para você, felizmente você ainda está viva e sua manobra idiota de ir lutar contra ela sozinha, fez Primazia presumir que não estamos trabalhando juntos, apesar do nosso show na escola a ter deixado desconfiada — tomou um gole da cerveja, limpando a garganta antes de continuar. — Mas eu fiz questão de negar e dizer que eu só fui até lá para encontrá-la, infelizmente ainda não sei como ela sabia que você se chamava Jovem-Alma.

— E isso é algo bom? Não a parte do nome, mas o resto — questionei com ceticismo, um pouco confusa se irmos a um encontro que Primazia marcou era mesmo a solução que precisávamos. — Pode ser uma armadilha.

— É ótimo! — tirou mais uma folha da pilha, virando-a para que eu olhasse. — Escute, Catwalk não é o único lugar lidando com o submundo das pessoas superpoderosas.

— Não é? — inclinei a cabeça em confusão.

— É claro que não, bobinha — riu como se eu fosse ingênua. — E hoje a Catwalk e várias outras boates do ramo vão estar comemorando o Dia dos Super-Heróis — balançou as mãos em falsa alegria. — E das Super-Heroínas.

— Não existe um dia para super-heróis.

— Existe — Egor me corrigiu, voando até a nova folha que Gabriel colocou na mesa. — Catarina foi algumas vezes.

  Fiquei curiosa ao ouvir o nome de Catarina, pegando a folha para olhar de perto. Se tratava de uma fotografia da pista de dança da Catwalk, repleta de pessoas fantasiadas e rostos sorridentes, luzes piscantes e confetes voando. Não reconheci o rosto de ninguém no meio da bagunça, embora todas as pessoas parecessem felizes como sempre parecem em fotos tiradas em grupos, sorrisos largos e bebidas nas mãos.

— Por que só estou sabendo disso agora?

— Porque você não foi convidada — Iddie revirou os olhos como se a resposta fosse óbvia.

— Não quero minha irmãzinha nesse tipo de festa, só tem pervertido — Gabriel também rolou os olhos.

— Em uma festa de heróis?

— Você ficaria surpresa — fez uma careta com alguma lembrança que teve, antes de pegar da pilha uma nova fotografia da Primazia. — Acho que você deve estar se perguntando, por que não estou bravo em saber que você lutou com a Primazia no Brás...

— Não estou — estava sim.

— E eu te respondo — ignorou-me, batendo o dedo em cima da foto até que eu me inclinei para frente para olhar, se tratava de uma foto de quando Primazia apareceu no palco da escola, provavelmente tirada por um dos reféns. — Quando a maluca me levou para voar com os pássaros, ela me contou que estava começando a ficar preocupada com a demora para pegar você, ela acha que você é uma adversária à altura.

— Por quê? Eu levei uma surra — lamentei tristemente.

— Aí sim — Iddie deu sua resposta otimista, rodopiando pela mesa. — Ela está se sentindo ameaçada.

  Não conseguia entender por que Primazia, A Primazia, que explode coisas, me deu a maior surra da minha vida e matou a própria mãe, se sentiria ameaçada por mim.

— É um dos motivos para ela ter me contratado, Primazia quer negociar informações sobre a Jovem-Alma, mais especificamente sobre a garota por trás da capa — Gabriel concluiu, se distraindo com seu celular em seguida.

  Egor e eu trocamos olhares preocupados.

— Pelo lado bom, um de muitos, ela não sabe quem você é se está disposta a trocar informações, não tinha como ela saber que a Jovem-Alma estudava ali, foi tudo sobre coincidências infelizes — Gabriel guardou o celular e esfregou os olhos, ele parecia um lixo. — A questão é, eu aceitei a proposta dela e agora temos um encontro perto da Tentação.

  Me engasguei com isso, meus olhos se arregalaram e minha voz falhou, sem saber como deveria reagir a notícia.

— Você vai encontrar Primazia? — ergui uma sobrancelha, duvidosa de que fosse tão fácil assim.

— Nós vamos — trouxe para o centro da mesa a fotografia de uma boate, uma fila de pessoas na frente e o nome "Tentação" brilhando em cores neon.

— Ele sabe que fotos não têm o mesmo efeitos que slides, né? — Iddie murmurou, sua voz também estava afetada.

— Hoje? — repeti sem acreditar.

  Iddie começou a rir da situação, algo entre nervosismo e diversão genuína pela minha expressão assustada.

— Você resolveu me contar apenas hoje que vamos encontrar Primazia? — fingi o tom mais furioso que consegui, o que pareceu funcionar pelos olhos arregalados do meu irmão.

— Veja bem, eu estava disposto a fazer isso sozinho, mas achei que você ficaria brava, então... — Gabriel levantou as mãos e gaguejou uma resposta.

— É claro que eu ficaria brava — tentei continuar com minha falsa raiva, mas a frase só saiu baixa e quebrada.

  Não tinha certeza do que estava sentindo. Uma mistura de ansiedade e medo, foi algo estranho, nem bom e nem ruim, como tirar 6 em uma prova valendo 10 ou saber que tem a chance de derrotar sua arqui-inimiga mesmo que ela tenha chances ainda maiores de te matar.

— Diga que não estamos prontas, não podemos — Iddie murmurou de forma insegura, mas ainda mandona.

— Iddie, relaxa — toquei seu ombro levemente com o dedo indicador, sabendo que tanto quanto estava com medo, não poderia recusar essa oportunidade.

— Isso é uma boa ideia? — Egor indagou.

— Provavelmente não — respondi, sorrindo quando vi Amanda se aproximar com um novo copo de refrigerante de guaraná coberto por chantilly e decorado com uma cereja por cima. — Amanda, você está me acostumando mal — agradeci com um sorriso, aceitando à bebida.

— Eu não ganho um também? — Gabriel fez drama, se esticando para pegar a cereja do meu copo, Amanda deu um tapinha em sua mão antes que ele chegasse a tocar a fruta, seu sorriso oscilando entre diversão, raiva e preocupação.

— As emoções de vocês e dessas entidades estão me deixando confusa — suspirou, passando as mãos pelo cabelo solto, ondulando-se em suas costas como lindas cascatas de chocolate. — Pegue leve com ela — ela alertou Gabriel.

— Você pode sentir Iddie e Egor? — falei atrás do meu copo, surpresa por não ter pensado em perguntar isso antes.

— Posso sentir qualquer coisa, querida.

— Poderia sentir empatia e deixar a gente armar a emboscada para Primazia aqui — Gabriel resmungou, recebendo um novo tapa na nuca. — Ai! Isso dói!

— Não quero mais confusão na minha boate, Bola Branca — Amanda resmungou antes de sair.

— Tão encantadora — Gabriel sorriu carinhoso, esticando o braço e roubando a cereja da minha bebida. — Agora, Dal, esteja arrumada às nove, vamos para a Tentação encontrar a maluca e dar um fim nessa história.

  Mordi o lábio, insegura. Tudo tinha escalado tão rápido, o simples ato de imaginar Primazia derrotada naquela noite parecia surreal. Derrotada...

— Não vamos matá-la, vamos? — tomei coragem de perguntar, esse era um pensamento que vinha evitando, embora fosse constante e o desejo estivesse lá, eu sabia que fazer era diferente de falar. — Não quero matar ninguém.

— Eu sabia que você faria a escolha certa — Egor disse orgulhoso, deixando um beijinho na minha bochecha e tapinhas no meu ombro.

— Tão decepcionante — Iddie se fez de indiferente.

— Dal… — Gabriel soou ofendidíssimo. — Claro que não, vamos encontrar outras pessoas para fazerem isso.

— Gabriel! — repreendi. 

— A gente fala sobre isso depois — gaguejou uma desculpa, levantando-se da mesa e recolhendo suas coisas com pressa. — Tudo o que a Primazia me deu foi uma localização, um dia e um horário, e eu não faço ideia de como esse encontro vai funcionar — informou o motivo de seu estado lamentável. — Vou te buscar em casa, esteja preparada.

  Em seguida, sem me deixar fazer mais perguntas ou pensar sobre suas respostas, Gabriel saiu andando a passos rápidos, enfiando-se em sua cabine particular.

  "Idiota!"

  Não deixei de enviar o pensamento quando ele já estava muito longe para me ouvir falar.

— Por que não contou sobre suas suspeitas? — Egor questionou, referindo-se a Rebeca e eu suspirei, porque esse era mais um problema que tínhamos para resolver.

— Porque quero confirmar isso eu mesma — foi minha vez de levantar e ir trabalhar, estava na hora de fazermos algum trabalho de espionagem.

🍎🍎🍎

  Achar Rebeca não foi tão difícil graças aos meus poderes de comunicação. A internet faz de qualquer idiota um herói ou um vilão, de acordo com Iddie.

— Rebeca Teruel, bolsista da Futuros Caminhos, voluntária em abrigos para cães e admiradora de coisas brilhantes. A garota é uma peça rara, cheia de peculiaridades e...

— Somos todos cheios de peculiaridades — Egor interrompeu minha narrativa.

— ...E melhor amiga da Emy — continuei seguindo a garota pelas ruas, me sentindo uma autêntica detetive com isso.

— Achei que você fosse a melhor amiga da Emilly — Iddie provocou, não em tom maldoso.

— Todo mundo pode ser o melhor amigo da Emy — me virei para apontar um dedo acusador na direção da pequena peste. — Ela é legal o suficiente para ter vários melhores amigos.

— Ou talvez você não seja legal o suficiente para ser a única — rebateu, soltando uma risadinha quando sacudi as mãos para espantá-la, dispensando a opinião de Iddie e voltando a seguir os passos de Rebeca.

— Emy me contou que Rebeca vai passar o dia no shopping, procurando um presente para a mãe dela ou algo assim.

— Acha mesmo que ela é a vilã? — Egor postulou, analisando a garota andando do outro lado da rua, parecendo tão inocente quanto uma suspeita de terrorismo pode parecer. — Pra mim ela não se parece com a Aline.

— Primazia não se parece com a Aline, o tempo passa, as pessoas mudam, é normal.

  Egor apenas deu de ombros, satisfeito por eu ter decidido investigar e não partido direto para uma ofensiva.

  Não tinha certeza do que pretendia descobrir seguindo Rebeca, mas acreditava que se ela fosse mesmo a Primazia eu acabaria a reconhecendo em algum momento. Quer dizer, Primazia e eu passamos por momentos únicos e especiais, eu reconheceria a mulher que assassinou a mãe e explodiu várias outras pessoas inocentes em um piscar de olhos, certo?

  Se Primazia fosse mesmo Rebeca poderia ser mais fácil capturá-la. Eu sabia onde Rebeca morava, quem era sua família e o que era importante para ela, se isso não é material para chantagem eu não sei o que é. Sem contar que poderíamos apenas ligar para a polícia e fazer uma denúncia, sem precisar de mais brigas e tentativas de homicídio, sem mais ataques de pânico e encontros em boates.

  Já dentro do shopping, segui Rebeca para dentro de uma pequena loja de bijuterias e maquiagens, dessas cheias de bugigangas inúteis que ninguém nunca vai usar. Fiquei do lado oposto da loja, observando Rebeca observar brincos e sim, isso estava sendo tão chato quanto parece.

  Rebeca não parecia nem remotamente com a supervilã caótica que atacou adolescentes em uma escola, olhando joias baratas como qualquer pessoa normal, conferindo os preços, vestindo uma longa saia laranja e regata azul, os cabelos loiros soltos, nem mesmo conseguindo parecer que tinha alguma intenção maligna, que suas mãos já dispararam explosivos e feriram inocentes.

— Tem certeza de que não deveria ter contado ao Bola Branca? — Egor interceptou meus pensamentos, fazendo sua tarefa de ser a voz da razão, embora estivesse distraído com a variedade de tiaras da loja.

— Eu sei o que eu estou fazendo — foi minha resposta confiante, embora eu não me sentisse assim com a crescente ansiedade no meu peito de que eu estava fazendo algo estúpido e arriscado, de novo.

  Virei de forma brusca ao redor de uma prateleira quando Rebeca chegou muito perto de mim, acabei esbarrando nas mercadorias com o movimento e derrubei uma vasilha com piranhas de cabelos, atraindo toda atenção da loja para mim.

— Sabe o que está fazendo? — Iddie repetiu sarcástica.

— Eu te ajudo — alguém falou, pegando algumas das piranhas para colocar na vasilha.

  Levantei a cabeça para olhar a pessoa que havia me ajudado, vendo que se tratava de Rebeca, que tinha um sorrisinho gentil no rosto, muito perto de mim para meu conforto.

— Obrigada — disse a contragosto, levantando-me para colocar a vasilha de volta na prateleira e dando um passo apressado para trás. — O que você está fazendo aqui? — interroguei sem esconder a desconfiança na minha voz.

  Iddie riu ainda mais. Essa foi uma pergunta estúpida, notei.

— Para parecer mais acusador só falta você perguntar onde ela estava quando Primazia invadiu a escola — Iddie gargalhou do meu embaraço, rodopiando pela loja. — Na verdade, seria uma ótima pergunta, pergunte isso a ela.

  Ignorei a entidade e foquei minha atenção em Rebeca, que voltou a olhar os brincos, agindo como se fosse inocente. “Ai, ai, eu quero brincos para o Dia das Mães mimimi eu sou uma supervilã, mas você nunca vai descobrir isso porque é uma idiota Dalila, lalalala” eu praticamente conseguia ouvir a vaca pensando e rindo de mim dentro de sua cabeça.

— Estou procurando um presente para minha mãe — ela respondeu “inocentemente”, como se isso fosse me enganar.

— E você tem mãe? — intimei com desconfiança, cruzando os braços para parecer mais intimidadora e mostrar que não estava acreditando em suas mentiras.

  Iddie riu ainda mais e Egor suspirou de exaustão.

— Sim, eu tenho mãe — Rebeca me olhou de lado, segurando uma risada, como se me achasse uma piada. Sabe quem também me acha uma piada? Isso mesmo, Primazia! Não parece uma coincidência. — Como perdi meu presente de Dia das Mães na escola, pensei em comprar algo novo — ficou na ponta dos pés para verificar algumas argolas.

— Só agora? — pressionei por resposta, fingindo também olhar os brincos para parecer natural e ignorando as risadinhas de Iddie e Egor.

— Estava muito assustada para sair — respondeu Rebeca, que por algum motivo não saiu de casa desde o ataque, assim como Primazia... — Você não ficou? Todos aqueles gritos ainda me causam pesadelos.

— Imagino que sim — não disfarcei meu tom de desgosto, cerrando os olhos em sua direção.

  Não conseguia ser a mesma com Rebeca depois de começar a suspeitar dela. O corte ainda estava em seu lábio, meio escondido pelo tempo. Essa garota podia ser a culpada por todas aquelas mortes. Ao mesmo tempo, Rebeca parecia tão jovial, tão inocente e afetada quanto qualquer pessoa que participou de dois dos três ataques, respondendo minhas perguntas estranhas, escolhendo um presente de Dia das Mães para sua mãe apenas potencialmente morta.

— Por que você acha que a Primazia escolheu a Futuros Caminhos? — mudei de assunto, pegando um dos brincos.

  Ainda estava usando os que Gabriel me deu, mas creio que ele não ficaria bravo se os guardasse em um lugar seguro e usasse algo diferente. Seria estranho entrar na loja e não comprar nada, os olhares das vendedoras que circulavam a gente como abutres não eram dos mais agradáveis.

— Acho que só a polícia sabe — Rebeca encolheu os ombros, dessa vez sua voz estava mais baixa, conspiratória. — Eles estão escondendo muita coisa da gente.

— Por que você acha... — não terminei a frase, estendendo os braços para impedir Iddie de continuar voando e derrubando mercadorias pela loja.

— Você viu como aquele moço de terno branco e a garota vestida de maçã apareceram e salvaram a todos? — balancei a cabeça em resposta, sem conseguir entender aonde Rebeca queria chegar. — Ninguém deu uma justificativa oficial sobre isso, o governo não se pronunciou, mas eles continuam dizendo que estamos seguros, mesmo sem fazerem ideia de quem é Primazia ou as pessoas que nos “salvaram” — colocou um par das argolas douradas na sua cestinha.

  Considerei suas respostas, Rebeca não parecia suspeita.

— Quer dizer, ela tem uma mãe — sussurrei para Iddie e Egor quando fomos para os fundos da loja fofocar.

  Ainda não cheguei a uma conclusão se Rebeca falar sobre a falta de regularização governamental com relação a Primazia, Jovem-Alma e o Quadrado Branco eram um ponto a favor ou contra minha teoria dela ser a Primazia.

  É de conhecimento geral que ser herói é uma profissão. Eles têm sindicato, seguro de vida e um plano de aposentadoria. Legalizados e controlados pelo governo, mais especificamente, pela D.Q., embora o público geral não saiba muito sobre o que é a Divisão Quimera e o que ela faz.

  Ninguém gosta quando um idiota fantasiado superpoderoso aparece e salva o dia. Porque tanto quanto heróis querem fazer o bem, eles ainda são seres humanos, e todo ser humano tem suas próprias ideologias, sua própria noção de bem e mal. Para evitar que seres humanos com poderes e ideologias malucas se tornem ditadores ou terroristas, existe a Divisão Quimera. De vez em quando alguém escapa. De vez em quando aparece uma Primazia explodindo coisas ou uma Jovem-Alma salvando o dia. Ninguém gosta disso. Principalmente o governo.

  Rebeca falar que o governo está perdendo o controle da situação e parecer tão confiante do fato de que ninguém está realmente seguro, faz parecer que ela é uma superterrorista em potencial. Rebeca dizer que não confia no governo e que Jovem-Alma e Quadrado Branco precisam ser regulamentados, faz parecer que ela é uma civil coerente.

— Estamos em um impasse — Iddie concluiu quando coloquei as provas na mesa, um sorriso de escárnio em seu rosto. — Tenho certeza de que ela é a vilã, pergunte se pode ler a mente dela e verá.

— Egor? — quis saber a opinião do anjo.

  Egor olhou na direção de Rebeca, seu cenho se franzindo para a garota e rastreando seus movimentos.

— Já vamos lidar com Primazia hoje à noite, não tem motivo para fazer isso aqui, estamos em um ambiente público e você não tem como esconder sua identidade no momento — Egor voltou sua atenção para mim. — É melhor não fazer nada.

  Balancei a cabeça em concordância, sabendo que não tinha como confirmar ou negar minhas suspeitas. Eu voltaria para casa e tentaria lidar com a minha ansiedade até a hora do encontro com Primazia. Me preparei para sair, deixando no balcão os brincos de florezinhas azuis que havia escolhido.

— Tem certeza de que não quer levá-los? — Egor insistiu antes que eu me afastasse. — São bonitos.

— Talvez quando tudo isso acabar, vai ser minha recompensa — murmurei, indo em direção a saída, mas não sem antes me despedir de Rebeca. — Nos vemos em breve — estava aliviada pela forma calma com que tudo correu.

— Adeusinho, Garota da Maçã — Rebeca despediu-se alegremente, um sorriso gigante em seu rosto.

  Arregalei os olhos, antes de correr em direção ao banheiro mais próximo. Porque era ela. Tinha que ser ela. Minha respiração falhou, minhas pernas falharam, eu falhei.

— Não pode ser uma coincidência — engasguei-me com o ar, sem saber como verbalizar o que estava sentindo. — Primazia é a única que me chama assim.

— Dal, acalme-se — Egor gritou do lado de fora, mas eu já não estava mais registrando o que ele quis dizer.

— Me acalmar? Acalmar? — ri nervosamente, começando a girar no mesmo lugar na pequena cabine em que me tranquei. Ou talvez eu estivesse parada e fosse a cabine quem girasse.

  Meus sentidos pareciam entorpecidos e, depois de umas duzentas voltas ao redor de mim mesma, eu me sentei e chorei. Incapaz de saber o que fazer em uma situação como essa. Eu estive a menos de um passo da mulher que assassinou tanta gente inocente. Que assassinou Catarina.

  Fiquei repassando todas as interações que tive com Primazia, sua armadura dourada e seu sorriso psicótico, trocando tudo pelo rosto de Rebeca. Foi mesmo Rebeca?  Quem mais poderia ser? Primazia era a única que realmente parecia ter aderido ao apelido "Garota da Maçã".

  Eu só tinha 16 anos, não deveria estar passando por isso. Eu não entendia. Por que eu? Por que não alguém que realmente soubesse lidar com essa vida? Alguém forte como Gabriel ou sensata como Emilly. Algum aspirante a super-herói, sonhando em fazer uma boa ação para o mundo e a construir uma história. Alguém que fosse bom de coração, que soubesse o que fazer e não surtasse a cada acontecimento. Eu estava com medo. Céus, eu estava com tanto medo. Eu queria desaparecer. Voltar a ser criança, quando as coisas ruins acontecem e você mal se dá conta, porque os adultos não querem te preocupar.

  Eu nunca quis ser uma heroína. Salvar o mundo com uma capa nunca foi para mim. Claro, não é como se eu tivesse outros planos, eu não tinha uma faculdade para ir quando terminasse o ensino médio e não fazia ideia de qual carreira seguir. Eu não queria explorar o mundo, não queria trabalhar em uma grande corporativa ou viver da minha arte. Porque não existiam lugares que me atraíssem, carreiras que me apetecessem ou artes que me bastassem. Eu sempre fui só uma garota simples. Uma Jovem-Alma e jamais uma Campeã da Alma. Sempre fui apenas Dalila Silvestre, a garota sem ambições, dos cabelos e olhos castanhos como outras milhões de pessoas, apenas existindo com todo o resto do mundo.

  E então... E então houve um atentado, os trilhos, a maçã, entidades, sangue, tanto sangue. E então metas estavam sendo criadas, segredos foram revelados e novas coisas aconteceram, uma atrás da outra, sem me dar tempo ou escolhas. E eu senti dor e pânico e medo. E então meu namorado me odeia, meu irmão é um mercenário e eu estou sendo perseguida por uma terrorista. E céus, eu só queria voltar para casa e dormir aquele dia no metrô, como eu sempre fazia, como a minha vida deveria ser todos os dias.

— Dalila — Iddie chamou, sua voz cortando a enxurrada de pensamentos acontecendo dentro da minha cabeça. — Não pode ficar aqui para sempre.

— Posso sim — chorei, tentando me fundir com a parede, simplesmente desaparecer e esquecer que tanta coisa mudou sem que eu percebesse. — Aqui é minha casa agora.

— Por favor, pare de drama — ouvi ela bufar, se aproximando até sentar-se no topo do meu joelho.

  Ergui a cabeça para olhar nos olhos de Iddie, eles brilhavam em um rosa calmo assustador, atípico para Iddie.

— Por favor — pedi com a voz trêmula. — Não seja cruel comigo, agora não Iddie — solucei sem controle, me sentindo ainda mais patética do que o habitual.

— Você é mesmo só uma adolescente, não é? — Iddie falou tranquila, alheia ao meu surto.

— Sim — exclamei, chocada que ela só tenha percebido isso agora. — Eu não estou pronta para tudo isso, eu não quero tudo isso — meu corpo tremeu com o choro feio que escapava da minha boca. — Eu não quis matar ela, eu não quis matá-la, eu só queria devolver vocês e eu não consegui, não consegui... — apertei os olhos para não ter que olhar para Iddie, deixando sair tudo que eu vinha segurando desde a noite que Catarina morreu. — Me desculpa, Iddie, eu sinto muito, por tudo, Egor... Egor me contou.

  Iddie soltou um murmúrio de interesse, não parecendo surpresa com nada que eu tenha dito. Abri os olhos para encará-la, sem entender por que ela não estava gritando comigo, jogando a culpa por tudo em mim e me chamando de fraca, por que Iddie estava sendo legal, sentada no meu joelho, a mão esquerda apoiada nele enquanto olhava as unhas da direita, seu rabo se enrolando preguiçosamente.

— Posso lidar com Egor enlouquecendo, mas não com você — Iddie sorriu ao repetir as palavras que eu disse durante o ataque na escola. — Precisa se levantar e fazer alguma coisa, se alguém tem poder para deter Primazia é você.

— Por quê? Eu já deixei ela matar Catarina mesmo, acho que ficou bem claro que não sou a pessoa certa para isso.

— Não... — Iddie hesitou só por um momento, antes de suspirar como se estivesse prestes a fazer uma coisa muito difícil. — Não acho que a culpa da morte da Cat tenha sido sua — então ela olhou dentro dos meus olhos e, mais séria do que nunca, reafirmou: — Não foi sua culpa.

  Fiquei parada, sem saber o que dizer, vendo a entidade cruzar os braços e desviar o olhar para a porta do banheiro.

— Não acha? Mas você disse...

— Eu sei o que eu disse — disse rapidamente. — Você é uma boa garota, Dalila, eu estava com raiva quando te culpei.   Solucei bobamente, sentindo um peso ser tirado das minhas costas. Eu chorei. Chorei muito. Por todas as palavras, as acusações e insinuações. Chorei por todo esforço que coloquei nisso, por toda raiva e medo. Chorei porque Iddie não me culpava. Chorei porque isso era mais aliviador do que pensei que seria. Chorei porque eu era só uma adolescente sem saber como lidar com a vida. Porque era humana.

— Agora levanta daí, esse lugar é nojento — Iddie mandou antes de voar para fora da cabine.

  Ri fraco disso. Enxuguei as lágrimas, um sorriso afetuoso persistindo no meu rosto. Se até Iddie acreditava, talvez eu pudesse ao menos tentar fazer isso. Fazer alguma coisa. Porque eu não estava mais sozinha.

— Cadê Egor? — perguntei quando saí da cabine.

— É o banheiro feminino e Egor se diz um cavalheiro — Iddie brincou, tinha um sorriso afetuoso em seu rosto quando olhou para mim.

  Sim, nós poderíamos fazer isso.

🍎🍎🍎

  Eram sete horas quando Gabriel chegou em casa. Nosso pai já havia saído. Usei o restante da tarde para pesquisar mais sobre Rebeca, escrever um e-mail contando da minha descoberta para Gabriel e tentando me preparar para nosso encontro. No geral, o dia passou rápido como qualquer outro, quase nem parecia que seria o dia em que Primazia cairia.

— Por favor, me diz que você recuperou a maldita capa — Gabriel jogou-se no sofá quando chegou, tomando um gole de café frio.

— Não, eu não consegui — tomei a xícara da sua mão, indo até o fogão para esquentar o café de novo. — Júnior está ocupado estudando para as provas, Regina está insistindo que ele mude de escola no meio do semestre, ele não pode receber visitas, não consegui nem passar do jardim da casa dele e ele também não está falando muito comigo.

— Sua sogra deve estar surtando com todos esses ataques — presumiu, indo na direção do quarto.

— Achou algo sobre Rebeca? — segui atrás, entregando a nova xícara com café quente.

— Nada que você já não tenha falado — aceitou o café, entregando-me em troca uma sacola. — Veste isso.

  Peguei a sacola com desconfiança, abrindo-a com hesitação. — Um terninho? — ergui a cabeça para olhar a cara de Gabriel, esperando que ele dissesse se tratar de alguma brincadeira. — Você quer que eu lute vestindo um terninho?

  Iddie gargalhou com isso, entrando na sacola e pegando os óculos escuros que estavam no topo.

— Não vou usar isso — protestei com a escolha de visual.

— Você tem um uniforme? — Gabriel sorriu presunçoso atrás de sua xícara ao me ver sem respostas.

— Eu não sou uma heroína! Não preciso de uniforme!

— Vá se vestir, vamos sair em dez minutos — Gabriel apenas me ignorou, saindo do quarto em seguida.

  Resisti à vontade de discutir, me trancando no banheiro e vestindo o tal terno, constituído por camisa social branca, paletó e calças pretas e gravata vermelha. Tomei a liberdade de fazer minhas alterações.

— Saia e all star? — Gabriel notou assim que eu entrei na sala, fazendo uma careta para as mudanças.

— E meia arrastão — completei, dando de ombros, por favor, eu já tinha passado da idade de escolherem minhas roupas.

— Você não pode vestir isso — Gabriel se levantou do sofá e agarrou meus ombros, tentando me fazer voltar para o banheiro. — Essa saia é muito curta.

  Ergui uma sobrancelha para a desculpa que ele deu, rindo do ciúme protetor de Gabriel.

— O que você vai fazer? Contar para o nosso pai? — fui até o espelho, arrumando meu cabelo em um rabo de cavalo, a franja presa atrás da orelha.

— Papai diria o mesmo que eu — resmungou emburrado. — Toma — colocou os óculos na minha mão.

  Girei o acessório nas mãos, sem conseguir sentir nada de especial, nenhuma áurea mágica ou tecnologia avançada, apenas um óculos escuro padrão.

— Tem certeza de que ela não vai reconhecer meu rosto? — hesitei, colocando os óculos no rosto. — Eu reconheci você quando te vi com isso.

— Dessa vez o encantamento é real, Feitiço me garantiu que é impossível alguém descobrir nossa identidade com esses bebês.

— Como ele ainda não se matou? — Iddie se admirou e eu me fiz a mesma pergunta.

  Antes de sair me encarei uma última vez no espelho, não deixando de me sentir um pouco mais no personagem, Jovem-Alma, a super-heroína herdeira dos poderes de Catarina, aquela que derrotaria Primazia... Ao lado de um mercenário brincalhão, uma demônia cínica e um anjo sabe-tudo. E de alguma forma isso pareceu certo.

   Gabriel e eu entramos no carro, blues tocando no fundo, um frio no estômago surgindo, enquanto dirigíamos rumo ao encontro mais estranho que já tive. Que ótimo jeito de encerrar o dia.

— Nunca pensei que viveria algo parecido com isso — comentei quando não aguentei mais, tirando os óculos para encarar Gabriel. — É insano, quer dizer, e se não conseguirmos? E se algo der errado? Vamos morrer?

  Gabriel soltou uma risada, esticando a mão para bagunçar meu cabelo de forma carinhosa. Olhei para baixo, alisando a curta saia de pregas que estava usando, talvez eu tenha mesmo exagerado no tamanho.

— Fique tranquila — foi tudo o que o meu irmão me disse.

— Obrigada? — inclinei a cabeça, olhando para ele na esperança de que me desse alguma certeza.

  Mas Gabriel não poderia prometer aquilo que não estava sob o controle dele. Meu único consolo a essa altura era não estar sozinha, porque eu sabia que teríamos uma luta complicada para vencer.

— Você vai se sair bem, vamos apenas encurralar a maluca, tirar algumas informações, essas coisas, se quiser pode até bater um pouquinho na cara dela — explicou simplista, batendo os dedos no volante ao ritmo da música que tocava.

  Era inconcebível para mim que Gabriel parecesse tão calmo com essa situação, cantarolando e falando da SUPER-VILÃ que MATOU gente pra CARAMBA e nem mesmo a DIVISÃO QUIMERA tinha conseguido pegar ainda.

— Quantas vezes você me deixou dormindo em casa para fazer esse tipo de serviço? — não pude conter o tom de mágoa na minha voz.

  Gabriel teve a decência de parecer envergonhado, lançando-me um breve olhar de desculpas.

— Eu sei que você se ressente por eu não ter contado antes.

— Você nunca me contou, eu descobri sozinha.

— Racionalmente nunca quis você nessa vida, é perigoso — confessou baixinho, uma emoção desconhecida gravando suas feições. — Mas estou feliz por ter escolhido isso, sem influência minha, sabe?

— E você acha que eu quero você nessa vida? Gabriel...

— Eu esperava que você entendesse agora — parou o carro no sinal vermelho, encolhendo os ombros enquanto falava. — Todo esse tempo, todas essas vezes em que saí à noite, estava cuidando de você, sendo um bom irmão.

— Essa não deveria ser sua função — virei o rosto para a janela, mordendo o lábio inferior.

— Também não deveria ser sua função vingar a morte da Cat, mas olha só, estamos fazendo isso — ironizou com um breve rolar de olhos.

  O carro andou mais alguns quilômetros, o assunto morrendo porque nós dois sabíamos que não tínhamos muito mais o que discutir. Era isso. Nenhum de nós quis isso. Nós dois estávamos nisso. Algumas coisas não se tratam de uma escolha, às vezes a gente só faz o que tem que fazer.

  A boate Tentação era muito mais longe que a Catwalk, o caminho sendo preenchido pelas risadas eventuais de Iddie e os sussurros de Egor, ambos vendo algo no meu celular.

— Catarina — comecei após olhar as entidades, alguns pensamentos curiosos vindo à mente. — Como ela era?

  Gabriel considerou a pergunta e eu desejei poder ler sua mente, em busca de saber o que se passou pelos seus pensamentos e o que ele decidiu verbalizar. 

— Intimidadora.

— Intimidadora? — repeti com uma risada fraca, sem ter certeza se tinha ouvido bem. — Ela não era uma heroína?

— Dal, cada pessoa tem princípios diferentes, o que significa ser um herói para você, pode ser diferente para outra pessoa.

— Eu sei, mas o que quer dizer com Catarina sendo “intimidadora” — fiz aspas, sem disfarçar meu ceticismo.

  Gabriel fez um barulho enquanto pensava na resposta.

— Ela era muito poderosa e muito seletiva com as batalhas que escolhia lutar.

  Notei Iddie e Egor se silenciarem, atentos às palavras do meu irmão. Iddie devia estar esperando que ele falasse alguma coisa com a qual ela discordasse, apenas para ter um motivo para jogar o chapéu de Gabriel pela janela.

— Ela não queria essa vida, tanto que eu a vi bem mais como Catarina do que como Donzela Vermelha — passou a mão pelos fiapos de cabelo em seu queixo. — Na época eu e mais uma porção de gente achávamos que ela era bem egoísta.

— Por querer viver uma vida normal? — não contive a acusação na minha voz, porque eu me identificava com Catarina, embora soasse hipócrita que ela, de todas as pessoas, quisesse ter uma vida normal.

— Porque parecia que ela queria esconder esse poder, hoje eu sei que ela estava tentando proteger o mundo dele — apontou para as entidades no banco de trás. — Você tem noção do quão extenso seus poderes são, Dal? Você pode literalmente controlar o mundo — fez um gesto amplo com uma das mãos, a outra ainda no volante. — Vamos, não me olhe assim, tenho certeza de que já os usou para controlar alguém.

  Pensei em Júnior e no quão fácil foi guiar nossas conversas para ter o resultado que eu esperava, fazê-lo pensar o que eu queria. De repente me senti mal. Eu amava Júnior e manipulá-lo soava errado de todas as formas possíveis. Pensei no porteiro da escola, bastou prestar um pouco de atenção para conseguir enganá-lo. Pensei no meu pai, invadindo sua privacidade, sabendo de coisas as quais eu não deveria ter acesso. Todos nunca saberiam que eu os ouvi em seu lugar sagrado, espionando seu eu mais íntimo.

  Catarina ficaria decepcionada com a forma como eu estava usando os poderes que ela me deu? Senti vergonha.

— Cat acumulou muitos inimigos durante a vida, tinha grandes aliados e sempre foi muito cotada pelo governo — seus dedos continuaram a bater no volante mesmo quando a música parou. — Isso me preocupa, tenho medo de que em breve cheguem até você.

— Acha que é possível?

— Tenho tentado evitar isso — me lançou um olhar preocupado. — De qualquer forma, Cat era descontraída, não existia cara triste quando ela estava por perto.

— Isso é verdade — Egor concordou, animando-se com a leveza do assunto e se juntando a nós.

— Também era muito emocional, às vezes se envolvia demais com as pessoas que salvava e isso era ruim para todo mundo — sorriu com a lembrança. — Ela perdia o controle dos poderes quando ficava emocional demais, era normal as pessoas serem atingidas por penas feitas da energia da Iddie.

  Olhei para Iddie e a expressão nostálgica em seu rosto.

— Acha que vou ser como ela um dia? — perguntei sem pensar.

  Não que eu quisesse ser como Catarina. Às vezes apenas me lembro dela, sua alegria fácil, sua frieza inabalável perante a situações de perigo, sua franqueza acolhedora. Todos falam de Catarina como se ela fosse uma grande mulher, que salvou várias vidas e ainda conseguiu viver a dela, se casou duas vezes, tinha uma casa bonita, uma vida estável, amigos queridos e uma filha... E ok, talvez essa última parte não tenha terminado tão bem. Mas Catarina fez um legado, viveu uma boa vida e deixou saudades ao partir. E isso parece ser o que qualquer pessoa poderia desejar.

— Ela acreditava que seria melhor — foi Egor quem respondeu primeiro.

— Eu acredito em você — Gabriel colocou a mão no meu ombro de forma carinhosa. — Ainda vamos fazer muitas missões desse tipo irmãzinha, estou ansioso para treiná-la para ajudar nos negócios da família.

— Seus negócios — corrigi risonha, embora não pudesse deixar de me sentir um pouco mais animada ao imaginar Gabriel e eu saindo em mais missões desse tipo.

— Se você entrar serão negócios da família — Gabriel insistiu com uma risada, virando o carro numa rua deserta.

— Ao contrário de você, eu tenho moral e não sou uma mercenária.

— Não sou tão irresponsável assim, toda informação que eu vendo pro vilão, também vendo pro herói — Gabriel saiu do carro. — Assim eles podem destruir um ao outro e eu saio com o dinheiro de ambos — completou e bateu a porta.

— Você é péssimo — reprovei, ainda que tivesse um tom risonho no final. — Eu sinto muito que tenha tido que ir por esse caminho para me dar uma boa vida — falei um pouco mais séria, porque tínhamos chegado.

— Você faria o mesmo por mim — pensou um pouco. — Com menos estilo, é claro — então encerramos a conversa, estava na hora de lidar com Primazia, Iddie e Egor já sentados nos meus ombros em silêncio.

  Exatamente como na foto, em letras neon vermelhas, o nome da Tentação foi gravado na entrada. Uma placa menor anunciava a comemoração do Dia dos Heróis e Heroínas. Embora muito maior, o isolamento acústico da Tentação não era tão bom quanto o da Catwalk, eu conseguia ouvir a música eletrônica e os gritos festivos do lado de dentro, o barulho não exatamente acalmando minha ansiedade.

  Do lado de fora foi formada uma longa fila, todas as pessoas fantasiadas de super-heróis do mundo real, da ficção ou inventados, se balançando ao som da música baixa que era ouvida e tomando as bebidas que compraram no bar ao lado, conversando animadas, alheias ao que aconteceria.

— Existe um dia dos vilões? — brinquei, colocando meus óculos de novo, mantendo minha respiração controlada, meu tom comedido.

— Existe — Bola Branca respondeu sem sorrir ou brincar, me guiando na direção do prédio à frente.

— Não vamos para a boate? — lamentei, desejando poder me divertir entre aquelas pessoas também, qualquer coisa para escapar de Primazia.

— Nos seus sonhos, Jovem-Alma — Gabriel usou meu codinome e nesse momento eu soube que agora ele era o Bola Branca e era assim que deveria me referir a ele.

  Fomos na direção do prédio, um antigo e de apartamentos abandonados, com uma escada de incêndio externa que facilitava o acesso à cobertura.

— E eu pensando que os super-heróis se teleportavam para os lugares — tentei quebrar a tensão crescente, uma risada nervosa aqui e outra ali, até parecia que eu estava me acostumando com todas essas situações de morte eminente.

— É um dos elementos considerados essenciais para uma equipe — Bola Branca contou, apesar da sua atenção estar voltada para o celular.

— Essenciais? — indaguei.

— Um dos requisitos para uma equipe de aprimorados perfeita é alguém que possa se teletransportar ou estar em mais de um lugar ao mesmo tempo — Egor contou, suas asas batendo em um ritmo constante mesmo estando sentado. — Também está incluso um telepata, um feiticeiro, um empata, uma mascote ou civil, um hacker, um curandeiro e alguém bonito e jovem com um poder destrutivo e boas intenções.

— Temos a telepata e uma espécie de hacker — comentei impressionada.

— Sabia que o Egor não precisa bater as asas para voar? Nós literalmente podemos voar sem precisar de asas — Iddie segredou. — Ele faz isso para se exibir.

— Você está com inveja por que eu tenho asas? — Egor perguntou em tom inocente, um leve rosado cobrindo suas bochechas.

  Chegamos até o topo do prédio, uma grande área plana e pouco segura. Em um dos cantos havia um grande bloco de concreto, onde foi colocado o para-raios. Bola Branca me levou para trás da estrutura para que eu ficasse escondida e pudesse observar tudo o que estava acontecendo.

  Me concentrei em respirar fundo e deixar para lidar com meu emocional frágil depois. Não era hora para isso. Fazia meses que todo mundo estava treinando sem parar para derrotarmos Primazia. Nós não iríamos fraquejar. Nós não iríamos recuar.

— Eu vou falar com ela primeiro e dar um jeito de deixá-la indefesa, é quando você vai poder sair e fazer o que você e seus bichinhos flutuantes quiserem — Gabriel explicou devagar, sem um pingo de diversão em sua voz, embora ainda colorisse suas falas.

— Entendi, entendi — fiz um gesto com a mão para que pulasse a parte da explicação.

— Jovem-Alma, estou falando sério, se você tivesse seguido minhas ordens na escola talvez Primazia já estivesse morta... Presa — se corrigiu rapidamente.

— Você estava levando uma surra.

— É claro que eu... — parou de falar quando Iddie derrubou seu chapéu. — Pode mandá-la parar com isso?

— Não — sorri, levantando a mão para um high five com Iddie.

— Eu não sou pago para isso — Bola Branca resmungou, indo buscar seu chapéu.

— Ela chegou — Egor foi o primeiro a notar, falando baixinho, como se pudesse ser ouvido.

  Iddie sufocou um gritinho animado. Ela estava ansiando por esse momento há muito tempo e eu só podia torcer para que dessa vez não fosse em vão. Esperava que com a ajuda do Bola Branca pudéssemos conseguir dar a todas as vidas perdidas a vingança que mereciam.

  Em mais um desses momentos em que nada mais importa, exceto pelo agora, Primazia chegou e com ela o tempo parou. A observamos pousar no telhado, sua armadura brilhando a luz da noite. Engoli em seco, estava na hora. Ela andou até a borda do prédio, encarando a fila de pessoas que circulava a boate do outro lado da rua, a vontade em sua própria pele e sem parecer desconfiar de nada.

— Você pode ler a minha mente — Bola Branca concedeu antes de andar na direção da vilã.

  Iddie e Egor se aproximaram dos dois o máximo que conseguiram, procurando ouvir o que acontecia. E eu apenas me encolhi no canto em que estava, sentindo falta da minha capa e da segurança de anonimato que ela me dava. O tempo todo mantive meus objetivos em mente, focando apenas em Primazia, na raiva e no rancor que vinha se acumulando a cada ataque, cada golpe, cada vida roubada. Estava na hora.

— Você sabe se esconder — Bola Branca disse assim que se aproximou o suficiente, tomando o cuidado de deixar alguns metros de distância entre eles.

— Faz parte do ofício — Primazia respondeu quando se virou, um sorriso suave aparecendo em seu rosto.

  Olhei o coque trançado no alto de sua cabeça, exatamente como as tranças que Rebeca costuma usar nas aulas. A coroa reluzindo, assim como as argolas douradas nas orelhas, como os brincos que havia visto Rebeca comprando.

  Respirei fundo, precisava me controlar ou poderia acabar agindo por impulso. Quis chamar Iddie e Egor para perto de mim, não querendo ficar sozinha.

— Foi fácil te encontrar — ela completou, dando um passo na direção de Bola Branca.

— Você sabe, existem métodos mais fáceis do que ameaçar uma escola — seu tom soou amargo, cheio de escárnio.

  Era tão estranho ver Gabriel entrar no personagem do Bola Branca. Tão diferente do garoto que roubava minhas cerejas e reclamava do tamanho da minha saia. Bola Branca era elegante, profissional e perigoso. Distante em sua fala, misterioso com seus objetivos e um mercenário ambicioso.

— Eu não fiz aquilo por você, Bola Branca — ela disse no mesmo tom que ele, erguendo mais a cabeça. — Vamos começar a troca?

— Antes — levantou um dedo, sinalizando para que ela esperasse. — Quero saber se você está sozinha.

— Por quê? Pretende me atacar? — riu falsamente, mas quando viu Bola Branca permanecer cético, acrescentou: — Sim, eu estou sozinha — pude sentir ela torcer a boca em desgosto. — Eu não preciso daqueles idiotas vinte e quatro horas, eu posso lidar com você sozinha.

   Foi a vez de Bola Branca forçar uma risada, andando até a borda do prédio. Primazia o seguiu, ficando de costas para mim.

— Não parece, sai por aí arrastando eles como se fossem bichinhos que você gosta de manter por perto.

— Eles são... — considerou. — Um acréscimo interessante.

— Claro que são — Bola Branca sorriu malicioso, vendo-a pegar um envelope dourado e estender em sua direção.

  Ele levantou o braço, cauteloso, pegando o envelope e abrindo-o para conferir o dinheiro.

— Eu ouvi dizer que é isso que o senhor cobra por uma investigação básica — cruzou os braços de forma defensiva.

  Primazia parecia se segurar para não pegar sua arma e atirar para todos os lados. Seus olhos iam de um lado ao outro, como se estivesse esperando alguma coisa acontecer. Me perguntei se ela sempre foi assim ou se a figura do personagem "Bola Branca" era mesmo tão intimidante. Talvez ela soubesse que havia sido descoberta, que estávamos prestes a dar um fim em tudo que ela começou.

  "Uau! Olhe só para todo esse dinheiro. Olhe para essa maluca, Dal. Doidona. Parece que ela está prestes a pular no meu pescoço."

  Os pensamentos de Gabriel aliviaram a tensão que sentia recair sobre nós a cada segundo em silêncio. Eu até consegui sorrir, agradecendo por ele estar comigo.

— Como acabou nessa vida, loirinha? — perguntou sem parecer ligar para a resposta, ocupado em contar as notas.

  Primazia relaxou a postura, seus olhos subindo para o céu, sem estrelas, uma imensidão azulada turvada pelas nuvens.

— O clichê normal dos vilões — passou a mão pela franja desfiada que cobria sua testa. — Eu não fui aceita como heroína, então decidi ser uma vilã.

— Clássico — Bola Branca disse indiferente, colocando o envelope com dinheiro no bolso interno no paletó. — O dinheiro está correto — então estendeu um envelope branco na direção da mulher, o qual Primazia agarrou com gosto.

— Mas com essas informações eu vou me tornar uma heroína de verdade — completou sua história, correndo os longos dedos pelo envelope, unhas brilhando com esmalte rosa.

— Você é uma cliente especial — Bola Branca disse antes de apontar uma arma para a cabeça dela.

  Primazia ergueu os olhos do envelope. Ela não parecia surpresa com Bola Branca se voltando contra ela, mas ainda deu um passo para trás, as mãos caminhando para sua própria arma, presa ao quadril.

— Toque nessa arma e eu vou... — Bola Branca tentou ameaçar, sendo completamente ignorado, Primazia pegou a arma mesmo assim, tirando-a do quadril antes que Bola Branca pudesse reagir, apontando para ele em seguida. Os dois se encararam por um tempo, um na mira do outro.

— Eu te respeitava, Bola Branca — ela suspirou, um sorriso rasgando suas feições. — Parece que você não é o mercenário sem coração que gosta que pensem que é.

— Não tem medo de morrer, loirinha? — Bola Branca provocou, cerrando o punho ao redor da arma.

— A única pessoa que já me deu medo nessa vida foi morta pelas minhas próprias mãos — seu sorriso se alargou, parecendo se divertir ao sair contando isso por aí. — Catarina morreu sozinha como a porca imunda que ela era, sem um único amigo para enterrar seu corpo velho e podre.

  Não precisei do grito de Iddie para sair do lugar em que estava, correndo até Primazia, projetando um escudo para impedir os explosivos que ela lançou em minha direção assim que me viu, pequenos corações grudando na superfície verde da energia de Egor. Joguei o escudo para o céu, assistindo quando os corações que estavam nele explodiram.

  Não pensei, apenas senti, a raiva queimando minha visão, vermelho nublando cada canto que eu olhava. Primazia estava na minha frente e eu iria acabar com ela nem que fosse a última coisa que eu fizesse. Ela não iria falar de Catarina. Não iria nunca mais falar de ninguém se eu pudesse evitar. Eu só queria tirar esse sorriso do rosto dela. Puxei Primazia pelo braço, dando uma joelhada em seu estômago e criando um novo escudo para impedi-la de bater com o cano da arma na minha cabeça.

— Você tinha que aparecer — Bola Branca reclamou.

  Joguei o corpo de Primazia no chão, mas ela agarrou meu cabelo, me levando junto com ela, rolamos pelo telhado, chegando a cair do prédio. Não pude me importar menos, tentando fazer com que seu corpo batesse nas janelas enquanto caíamos, sorrindo quando ouvi os barulhos de dor que saíram dos seus lábios. Dessa vez eu não iria falhar. Dessa vez todos ficariam seguros, porque eu estava disposta a dar minha vida antes que Primazia sobrevivesse para machucar mais alguém.

  Suas asas ativaram antes que caíssemos, nos levando para o céu, planando sobre o prédio abandonado. Usei as pernas para atingir seu peito, evitando cair enquanto segurava firme em seu cabelo, a coroa que ela usava caindo em algum lugar da rua. Primazia desferiu um soco no meu queixo, me deixando atordoada por um segundo, mas eu não a soltei. Me recusei a soltar.

  Bola Branca atirou em uma de suas asas, nos levando de volta ao terraço. Nossos corpos bateram com força no concreto, senti meus dentes se chocarem uns contra os outros, meu corpo tremendo com o impacto e a dor se perpetuando por cada parte como um eco de más decisões, o terno de rasgando em algumas partes, assim como minha pele.

— Levanta logo, Dalila — a voz de Iddie martelou no meu ouvido, motivadora, não maldosa.

  E eu me levantei.  Fiquei de pé com a ajuda do Bola Branca. Caminhamos juntos até Primazia, sentada no chão rindo de alguma coisa.

— Vocês estão trabalhando juntos? — gargalhou alto, jogando a cabeça para trás, levantando as mãos para arrumar seu penteado torto. — Eu deveria ter previsto isso, foi fácil demais te encontrar, Garota da...

  Chutei seu rosto antes que ela terminasse de falar, usando o primeiro golpe que aprendi com meu irmão, sorrindo quando a vi voltar ao chão. Me ajoelhei ao seu lado, puxando sua cabeça para que ficássemos cara a cara. Seus olhos castanhos escuros refletiam a loucura que podíamos libertar no mundo com o uso de uma máscara; dentes brancos à mostra, sempre sorrindo; seu rosto travado em uma fachada de felicidade, quando tudo que ela queria era gritar sobre o quanto me odiava, porque eu tinha os poderes que ela jamais conseguiu.

— No fim, eu fui a escolhida e não você — cuspi as palavras, sentindo satisfação quando seu sorriso estremeceu.

  Os olhos de Primazia caminharam pelo meu rosto e eu imagino o que ela deve ter visto. Um óculos escuro trincado, um rabo de cavalo e uma boca torcida em desgosto.

— Belos brincos — elogiou quando olhou minhas orelhas, apenas para erguer o braço e atirar em Bola Branca.

  Virei a cabeça para trás, vendo meu irmão cair no chão com o impacto. Foi rápido. Inesperado. Mas é claro que ela atirou nele, não tínhamos prendido seus braços.

— Egor! — gritei, acenando para o anjo checar o que estava acontecendo. — Isso foi baixo — agarrei a arma de sua mão, jogando a peça do outro lado do telhado.

— Eu matei minha própria mãe, Dalila, acho que já desci o suficiente.

  Não me surpreendi quando ela disse o meu nome. Rebeca demonstrou esse conhecimento no shopping. O que me faz questionar...

— Se já sabia quem eu era, por que insistiu em encontrar Bola Branca primeiro?

— Dal — Egor voou perto de mim, agitado e assustado. — Ela não usou explosivos dessa vez, foi um tiro.

  Virei a cabeça mais uma vez, vendo meu irmão ainda caído no telhado. Imóvel. Corri até ele, largando o corpo de Primazia de lado, porque o tempo havia parado por outros motivos. Gabriel. Não importava mais quem Primazia era ou o que estava pretendendo. Eu só conseguia pensar no meu irmão. Eu não podia perdê-lo. Ele não. Por favor, ele não.

— Gabriel — falei baixinho quando cheguei perto do seu corpo, vendo o sangue manchar o tecido branco da blusa social que usava, empoçando no chão, completamente imóvel. — Ei, irmão, acorde.

  Bola Branca gemeu de dor, os olhos cerrados quando passou a mão pelo peito, procurando saber onde tinha sido o impacto. Seu chapéu havia rolado em algum momento da luta e a lente dos seus óculos estava trincada, a armação torta em seu rosto. Abri os botões da sua camiseta, tentando achar de onde vinha o sangramento, minhas mãos ficando vermelhas, pegajosas e com um cheiro insuportável. De novo não. Por favor. Eu não aguentaria passar por isso de novo. Não morre. Não morre. Não morre.

— Dal, acorde — Iddie me fez olhar na direção da vilã. — Não a deixe fugir, Gabriel vai ficar bem.

— É sua chance — Bola Branca gemeu de novo, afastando minhas mãos de perto. Algo me diz que ele até tentou sorrir.

— Não vou fracassar — prometi, assistindo o corpo de Primazia se erguer, como quando vemos monstros ressurgirem e psicopatas continuarem a perseguir suas vítimas nos filmes.

  Ela estava com as asas danificadas e longe de suas armas. Não poderia ser tão difícil. Levantei-me determinada, ergui os punhos, levantei a cabeça e flexionei um dos joelhos, esperando que ela fizesse o primeiro movimento. Mas ela apenas ficou parada, me encarando, seu corpo pendendo levemente para a direita. Sangue escorreu por sua face, manchando a máscara cor-de-rosa e os dentes brancos. 

— É incrível como você nunca consegue salvar ninguém — declarou, sua voz sibilante como a cobra que ela era.

  E essas palavras pesaram. Machucaram. Porque eram verdadeiras. Senti a raiva queimar. Eu queria matá-la. Queria tirar aquele sorriso presunçoso do rosto dela. Levantei o punho direito e, sem sequer me dar conta, o movimento fez com que uma sequência de flechas enfeitadas com penas, todas brilhando em vermelho escarlate, fossem enviadas em alto velocidade na direção do rosto de Primazia. Meus olhos se arregalaram com a realização do que eu havia acabado de fazer. Finalmente havia conseguido a projeção de energia da Iddie. E então pisquei devagar, aterrorizada quando a vilã caiu no chão e não se mexeu mais. Morta.

  Evitei respirar, esperando que ela se levantasse. O que não aconteceu. Primazia ficou caída no chão do prédio, uma poça de sangue cada vez maior se formando ao seu redor.

— Você apenas... — Iddie foi a primeira a ter coragem de falar, parecendo não acreditar na cena que tinha acabado de acontecer. — Você realmente a matou.

  Pisquei de novo. Respirei fundo. Sem ter coragem de ir até Primazia para ver o estrago que fiz. Minhas mãos tremeram e eu quis correr para longe da cena e voltar horas atrás, quando eu estava chorando no banheiro sujo do shopping.

  O gemido dolorido de Bola Branca me acordou do meu transe. Corri em sua direção, ajudando-o a se sentar.

— Está tudo bem, a bala passou de raspão — tranquilizou-me, aplicando pressão embaixo do braço com o paletó. — Droga, isso é dinheiro sujo, literalmente — jogou o envelope de Primazia no chão, o papel ensopado com sangue. — Olha para isso Dal, como eu vou colocar essa merda num banco?

— Eu... — comecei, sem ter certeza do que dizer, olhando o cenário com horror.

  Gabriel tirou os óculos, revelando olhos castanhos preocupados.

— Ei — puxou meus ombros para um abraço de lado, minha cabeça descansando no ombro que não foi ferido. — Está tudo bem, estou bem.

— Primazia, por outro lado... — Iddie zombou, gritando de animação em seguida, mais agitada que o normal.

  Egor se encolheu no meu ombro, as penas de suas asas fazendo cócegas no meu pescoço.

— Preciso tratar disso, você pode me ajudar a chegar até um lugar? Conheço uma médica — deu alguns tapinhas de consolo nas minhas costas, agindo de forma muito tranquila para quem tinha acabado de presenciar um assassinato. — Não se preocupe com a maluca, vou pedir para alguém cuidar do corpo dela.

  Ficamos de pé, caminhando devagar em direção à saída. Gabriel esticou o pescoço antes de sairmos, vendo o estrago que eu havia feito.

— Céus, Dal, não dá nem para saber a verdadeira identidade dela — tentou rir, desencadeando uma tosse dolorida.

— Seu idiota — resisti a vontade de bater em seu ombro.

— Relaxa irmãzinha, essa não é a primeira vez que você vai matar alguém.

— Isso não é um consolo!

— Fique feliz, vou deixar você dirigir meu carro — chacoalhou as chaves no meu rosto. — Espero que você tenha apreendido desde a última vez ou vamos ter que adicionar aulas de direção ao seu currículo.

  Antes de descermos, olhei uma última vez na direção de Primazia. Suspirei. Tudo havia acabado. E por algum motivo eu não me sentia melhor.

  Derrotar a vilã parecia a coisa certa a se fazer, o final feliz depois de uma jornada agitada. O grande momento em que podemos dar as costas e caminhar em direção ao pôr do sol.

  Se Os Sete Samurais me ensinou uma coisa é que no fim os heróis saem perdendo tanto quanto os vilões. Não havia fogos de artifício, uma multidão aplaudindo e a sensação de dever cumprido. Sentia que ainda havia muita coisa que não falei para Primazia, a raiva ainda estava dentro de mim, queimando por não poder ter tido a satisfação de ver em seu rosto o arrependimento, a mágoa, o peso de seus atos... Qualquer coisa que não fosse um sorrisinho convencido e suas últimas palavras certeiras no meu ego.

  Não pude deixar de sentir que não foi o suficiente. A morte de Primazia não mudou todo sangue que foi derramado ou todos os traumas e sequelas que ela deixou. As pessoas que ela matou ainda estavam mortas; as coisas que ela destruiu ainda estavam destruídas.

  Balancei a cabeça. Vendo a alegria de Iddie, ouvindo as piadas de Gabriel e a voz calma de Egor.

— Vencemos! — eles disseram.

  E eu enterrei toda minha insatisfação e insegurança para comemorar nossa vitória. Vencemos. A Número 1 havia caído. As mortes foram vingadas. Estava tudo bem. O que mais eu poderia querer?

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